02 Outubro 2007
Com a tese “Estado de exceção e vida nua: violência policial em Porto Alegre entre os anos de 1960 e 1990”, a historiadora Susel Oliveira da Rosa fala de biopolítica e das vidas que se pode “deixar morrer”, ao narrar como a violência e a tortura, práticas comuns durante a ditadura militar, seguem fazendo parte das práticas das instituições policiais brasileiras atuais. “A repressão aos movimentos sociais é uma prática bem antiga no Brasil (anterior à ditadura militar) que, mais ou menos explícita, permanece extremamente atual”, conta ela na entrevista que segue, cedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line.
Susel Oliveira da Rosa graduou-se em História, pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Realizou mestrado e doutorado também na área de História, pela PUCRS e pela Unicamp, respectivamente. Trabalha com temas como violência, biopolítica, estado de exceção, mundo moderno e contemporâneo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No século XIX, tínhamos um Estado soberano que, no seu final, foi transformado em biopolítico. Foucault vê a biopolítica como uma espécie de estatização da nossa vida. O retorno de um Estado Soberano poderia transformar essa realidade em que a violência não é mais "preocupante" e sim banalizada?
Susel Oliveira da Rosa - Não creio que possamos pensar em retorno do Estado Soberano. Ao assinalar a "assunção da vida pelo poder", Foucault (1) elaborava um diagnóstico do presente, refletindo sobre a atualidade, marcando as continuidades e rupturas. Para o filósofo francês, ao longo do século XIX, a política tomou a vida como objeto, quando o direito soberano de “fazer morrer e deixar viver” transformou-se em “poder de fazer viver e deixar morrer”. Podendo decretar a morte de seus súditos (fazer morrer), o soberano exercia também o poder sobre a vida (deixar viver). Na medida em que o Estado passou a se ocupar da saúde e da higiene das pessoas, em nome do "futuro da espécie", do "bem-comum" e da "saúde das populações", esse antigo direito soberano cedeu lugar à biopolítica. A partir de então, em nome dos que "devem viver" (fazer viver), estipula-se quem "deve morrer" (deixar morrer) – "a morte do outro, da raça ruim é o que vai deixar a vida em geral mais sadia".
No limiar da modernidade biológica, a espécie ingressava no jogo das estratégias políticas, como assinalou também Hannah Arendt (2), mostrando que a vitória do animal laborans – a superioridade da vida sobre todo o resto – colocou a vida biológica no centro dos interesses políticos. Entendo que esse contexto propicia a banalização da violência na atualidade. Entretanto, não significa que nos séculos anteriores era melhor ou pior ou que devemos retomar a idéia da soberania. O diagnóstico desses filósofos, re-apropriados por Agamben (3), é importante para entendermos o funcionamento da política e dos mecanismos de poder na atualidade. A base da democracia moderna, diz Agamben, não é o homem livre, "com suas prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente o homo, mas o corpus é o novo sujeito da política". É a reivindicação e a exposição desse corpo que marca a ascensão da vida nua como o novo corpo político moderno – "são os corpos matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente". É o "corpus" que é reivindicado pela democracia moderna, a necessidade da exposição desse corpo é perceptível nas declarações de direito, como no texto de hábeas corpus: "hábeas corpus ad subjiciendum, deverás ter um corpo para mostrar".
IHU On-Line - O que há de resquício de ditadura na violência empregada pela polícia hoje?
Susel Oliveira da Rosa - O que eu tento mostrar, ao longo do trabalho, é que se a violência e a tortura intensificaram-se durante a ditadura militar, de formas diferenciadas - já que em ditaduras ou regimes autoritários a violência estatal é explícita - elas acompanham a trajetória das instituições policiais no Brasil até a atualidade. Por exemplo: no ano 2000, um relatório das Nações Unidas demonstrou que o terror psicológico e a tortura física continuam a ser perpetrados nas principais cidades brasileiras (nas delegacias, nos presídios e até mesmo em orfanatos). Terror psicológico e tortura que foram incrementados durante o regime militar, entre os anos de 1964 e 1984.
IHU On-Line - Como funcionava a Dopinha em Porto Alegre?
Susel Oliveira da Rosa - A Dopinha foi um órgão clandestino, precursora da SCI (Serviço Central de Informações) e do DOI/CODI. Funcionou em um casarão da Rua Santo Antônio, no Bairro Bom Fim, em Porto Alegre, como um verdadeiro campo de exceção no qual a ação soberana de seus coordenadores decidia a vida e a morte dos prisioneiros que por lá passaram. A existência dessa estrutura paralela aos próprios órgãos de repressão tornou-se pública em 1966 quando do assassinato do sargento do Exército, Manoel Raimundo Soares. Na morte de Manoel, estiveram envolvidos agentes da Dopinha, segundo a CPI da Assembléia Legislativa do Estado que investigou o caso. Com a repercussão do crime, a Dopinha foi citada no Relatório do Promotor Cláudio Tovo, no discurso de um deputado no Congresso Nacional e na CPI da Assembléia Legislativa que investigou crimes e abusos envolvendo policiais e militares, em Porto Alegre. Isso fez com que seus dirigentes fechassem o órgão clandestino, afinal, na época, teoricamente, os agentes da repressão não tinham carta branca para agir. Os dois primeiros anos da ditadura foram anos de repressão e de cassações. Contudo, ainda existia, mesmo que restrito um espaço de crítica – os anos tidos como mais difíceis, em termos de fechamento do regime, perda total de respaldo legal com Atos Institucionais como o AI-5 e o AI-14, ainda estavam por vir. Num livro recentemente lançado, o jornalista José Mitchel (4), correspondente do Jornal do Brasil em Porto Alegre durante a ditadura, situa a Dopinha como o primeiro órgão secreto da repressão política surgido no país. Segundo Mitchel, era lá que "militares revolucionários se reuniam nos fins das tardes, para saber, via rádio, das principais informações de Brasília".
IHU On-Line - Como Michel Foucault e Giorgio Agamben dão "explicações", em suas obras, para a banalização da violência?
Susel Oliveira da Rosa - As aspas em "explicações" são muito bem vindas. Procuro problematizar – e não "explicar" – a banalização da violência, a partir das noções de biopolítica" (Foucault), "vida nua" e "estado de exceção" (Agamben). Foi a biopolítica que tornou possível, para Foucault, ao racismo ter se transformado em racismo de Estado. Ao contrário do que poderíamos pressupor, quando o Estado passa a estabelecer políticas públicas para cuidar do corpo da população, protegendo e estimulando, purificando e ordenando a vida, tomando a vida como elemento político por excelência, a violência não diminui, mas passa a ser uma violência depuradora: cuidando da vida de alguns e autorizando a morte de outros. A biopolítica traça cotidianamente os limites entre a vida protegida (que deve ser preservada, ordenada) e a vida nua (que pode ser descartada).
Agamben afirma que vivemos hoje em um "estado de exceção permanente". Os cuidados com a segurança, as "prevenções" ao terrorismo, a desnacionalização do cidadão, a exportação de democracia, atestam isso. Os dispositivos de exceção são hoje amplamente utilizados como medida de segurança pelos estados "democráticos". Nesse "estado de exceção", nazismo e fascismo permanecem atuais, já que a vida nua é o critério político supremo. Como uma produção específica do poder - não podemos pensar em um homem sem linguagem e sem cultura: nem sequer a criança é vida nua, diz Agamben – a vida nua é a vida "matável e insacrificável do homo sacer". É a vida colocada fora da jurisdição humana e cujo exemplo supremo é a vida no campo de concentração. Estando fora da jurisdição, a "vida nua" pode ser exterminada sem que se cometa qualquer crime ou sacrilégio. Ser um perseguido político em época de ditadura significava, nesse sentido, ter sido colocado no "limiar entre vida e direito", deter o estatuto de "vida nua", vida matável, perigo, sujeira a ser eliminada. Vida nua que atingiu/atinge outros tantos brasileiros não envolvidos em causas políticas, moradores de bairros pobres, de favelas etc., alvos constantes de um empreendimento de reciclagem ou da "indústria da remoção do refugo humano", como diz Baudrillard (5).
IHU On-Line - Há diferenças entre a violência que se aplicava durante a ditadura e a repressão que a polícia faz contra hoje, por exemplo, os movimentos sociais, como o MST?
Susel Oliveira da Rosa - Existe uma especificidade de momentos históricos e políticos que precisamos considerar. No entanto, a repressão aos movimentos sociais é uma prática bem antiga no Brasil (anterior à ditadura militar) que, mais ou menos explícita, permanece extremamente atual. Pensado na repressão aos movimentos sociais, como o MST, lembro do relato de um dos ex-capitães do BOPE/RJ (no livro Elite da tropa), ao ser enviado para "conter" u ma manifestação de estudantes de uma universidade particular no Rio de Janeiro: "Se os pobres desdentados e negros descem o morro e fecham a avenida, a ordem é botar pra f*, baixar o cacete e, se o tempo fechar, atirar antes e perguntar depois. Agora, se são os filhinhos de papai da zona sul, lourinhos, com sobrenome de rua, o tratamento tem de ser cinco estrelas, policiamento vip, até porquê, se o tempo fechar, a corda arrebenta do nosso lado [...]. Se um de meus policiais erguesse o braço, era certo que um fotógrafo pularia da primeira árvore, bem no meio da cena, e o flagrante da vi-o-lên-cia po-li-ci-al estaria nas manchetes do dia seguinte". A diferença entre a vida protegida e a vida nua é visível na fala do policial, podendo-se deduzir qual tratamento seria dispensado a movimentos como o MST.
IHU On-Line - A violência policial ganha, na atualidade, maior "visibilidade" quando comparada a outros momentos históricos?
Susel Oliveira da Rosa - "Visibilidade" sim. Contudo, isso não significa reflexão. No excesso de visibilidade midiática dos acontecimentos, quando tudo passa a ser história, temos a contrapartida da banalização e do esquecimento. O que é notícia hoje amanhã deixa de ser. A própria velocidade atual suplanta o acontecimento com inúmeros outros que o seguem. Ou seja, se em função do alcance da mídia, a violência policial é mais visível na atualidade, essa violência está mergulhada no inexperenciável mundo contemporâneo. A morte e o assassinato da "vida nua" pode ser notícia, mas não se transforma em experiência. A maioria dos casos que narro, de Manoel Raimundo, Mirajor Rondon, Luis Alberto Arébalo, Antonio Clóvis, Guiomar Nunes, Jefferson Pereira e Júlio César foram "notícia", mas não romperam o círculo vicioso de consumo midiático da violência que alimenta espectadores indignados e impotentes: homens do ressentimento, diz Agamben, parafraseando Nietzsche (6).
No estado de exceção, são as vidas matáveis dos súditos os alvos da violência policial. Quiçá a vida matável de todos os súditos, já que, atualmente, assim como o campo configura-se numa localização sem ordenamento, todos somos ou podemos nos transformar em homo sacer, na medida em que vida e norma (jurídica) não ocupam lugares determinados e "a vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou a uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente". Nem vida nem morte: a produção de uma sobrevida é atualmente o obséquio do biopoder, fortalecido pela nossa incapacidade de traduzir em experiência a maioria dos eventos.
IHU On-Line - Em sua opinião, a democracia está sitiada por um Estado permanente de exceção?
Susel Oliveira da Rosa - Eu diria que a democracia, atualmente, pressupõe a exceção, pois no estado de exceção direito e anomia mostram "sua secreta solidariedade" – "a ordem jurídica contém em si o seu contrário: a suspensão da lei e seus direitos". O estado de exceção não se define, como a ditadura, pela plenitude de poderes. Antes, ele é caracterizado por um "vazio e uma interrupção do direito", no qual as determinações jurídicas estão desativadas. Paradoxalmente, esse espaço vazio de direito é essencial à ordem jurídica.
Notas:
(1) O filósofo francês Michel Foucault situa-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores um pós-moderno. Seus primeiros trabalhos (História da loucura, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas, A arqueologia do saber) seguem uma linha estruturalista, o que não impede que seja considerado geralmente como um pós-estruturalista, devido a obras posteriores, como Vigiar e punir e A história da sexualidade.
(2) Hannah Arendt foi uma teórica política alemã, muitas vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa designação. Arendt estudou filosofia com Martin Heidegger na Universidade de Marburgo, relacionando-se passional e intelectualmente com ele. Posteriormente, Arendt foi estudar em Heidelberg, tendo escrito na respectiva universidade uma tese de doutoramento sobre a experiência do amor na obra de Santo Agostinho, sob a orientação do filósofo existencialista Karl Jaspers. O trabalho filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência, e a condição de mulher. Sobre seu trabalho, existe o Cadernos IHU Em Formação número 17 intitulado Hannah Arendt & Simone Weil - Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX.
(3) Giorgio Agamben nasceu em Roma, em 1942. Formado em Direito, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, é responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin . Foi professor da Universitá Di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política de segurança do governo norte-americano. Atualmente leciona Estética na Facoltà Di Design e Arti della IUAV (Veneza). Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas obras lançadas no Brasil, estão Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I, A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental e Infância e história: destruição da experiência e origem da história, publicados pela Ed. UFMG, além de Profanações e Estado de exceção, ambos publicados pela Boitempo Editorial.
(4) O jornalista José Mitchell trabalhou num dos períodos mais duros da ditadura militar. Como repórter da sucursal gaúcha do Jornal do Brasil, cobriu fatos importantes, como o seqüestro do casal uruguaio Lílian Celiberti e Universindo Diaz e a cobertura quase diária da Auditoria Militar. Foi durante uma dessas audiências que o preso político Carlos Araújo lhe denunciou que havia sido torturado na “cadeira de dragão”. Mitchell, enfrentando a censura imposta à imprensa, enviou a matéria, que, por surpresa, saiu nas páginas do JB.
(5) Jean Baudrillard foi um sociólogo e filósofo francês. Enfrentou uma época bastante conturbada em seu país, como a depressão da década de 1930. Sociólogo, poeta e fotógrafo, este personagem polêmico desenvolve uma série de teorias que remetem ao estudo dos impactos da comunicação e das mídias na sociedade e na cultura contemporâneas. Partindo do princípio de uma realidade construída (hiper-realidade), o autor discute a estrutura do processo em que a cultura de massa produz esta realidade virtual.
(6) Friedrich Nietzsche é um filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998); O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916); e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada "Nietzsche e Paulo". A edição 15 dos Cadernos IHU Em Formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche.
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Estado de exceção e violência policial: da ditadura à atualidade. Entrevista especial com Susel Oliveira da Rosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU