"Jesus, o Cristo Rei, estabeleceu o único critério: a relação de inclusão do ausente. Com isso, estão incluídos todos e todo o mundo habitado. Não vale o medo, mas a fé a serviço da justiça social, humanitária. Hoje, a Igreja valoriza o Juízo Particular, na hora da morte, que o Juízo Final", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
A festa de Cristo Rei do universo foi instituída, na Igreja, pelo Papa Pio XI, em 1925, com o objetivo de se opor ao movimento de leigos que rejeitavam os valores do cristianismo.
O evangelho que inspira a nossa reflexão é o polêmico Mt 25,31-46, cuja temática é o Juízo Final, quando o Filho do homem vier em sua glória, isto é, com seu poder sobre a natureza e a história. Essa passagem inspirou a arte e foi a base da pastoral do medo da morte e do inferno na Idade Média e Moderna.
Você deve estar se perguntando pelo porquê dessa afirmativa. Imagine que você esteja no ano de 1513, na cidade de Florença, na Itália, numa missa. O padre se chama Francesco. Numa homília, tendo lido Mt 25,31-46, ele prega: “Haverá sangue por toda parte. Haverá sangue nas ruas, sangue no rio; as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue... dois milhões de demônios estão soltos... porque mais mal foi cometido ao longo destes dezoito anos do que no decorrer dos cinco mil anteriores”.
A reação provocada em todos os presentes terá sido de uma angústia escatológica, seguida dos pensamentos: o fim do mundo estava próximo; estou com medo de ir para o inferno; Jesus está voltando. Sentado no seu trono, ele vai nos julgar, separando as ovelhas dos cabritos, os bons dos maus. As ovelhas, os justos, irão para a vida eterna e os maus, os cabritos, para o castigo eterno de um inferno dantesco, conforme afresco de Dante Alghieri (1265-1321), medonho e pavoroso.
A motivação bíblica para a Igreja ensinar desse modo tem sua origem em Ap 21,1-6, mas, sobretudo, em Mt 25,34 diz: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo”. Unido ao versículo 41: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o Diabo e para os seus anjos”. O fogo eterno é o sinal da não vida, a morte eterna. A interpretação, motivado pela busca de poder da Igreja na sociedade, a cristandade, excluiu a ligação do julgamento proposto por Jesus, o do acolhimento do nu, do doente e do preso, e fez sedimentar a ideia do Juízo Final que seria realizado por Jesus.
Pregadores da Igreja difundiam que o fim do mundo estava prestes a acontecer. O dominicano Manfredo de Vercelli induziu mulheres a deixarem seus maridos para se reencontrarem com eles no Juízo Final.
“Logo, sem tardar, em muito pouco tempo” era fórmula usada pelos pregadores para se referirem ao fim do mundo. Peças teatrais sobre o Juízo Final espalharam-se pela Europa.
Jesus é claro, o critério para se salvar não é a titulação em vida, o poder econômico, mas o acolhimento do necessitado, do empobrecido, do doente, do faminto, do estrangeiro. Esses são critérios que definem um justo.
Mt 25,31-46 fecha o último discurso de Mateus e se une à abertura do primeiro, que fala das bem-aventuranças dos pobres. Mateus faz uma inclusão literária, o que estava no início, os pobres, são agora retomados como critério para ter a vida eterna. A Igreja com esse texto, encerra o tempo comum e abre o advento, tempo de preparação para o Natal.
Nas iconografias inspiradas no Juízo Final de Mateus dos séculos XII e XIII aparecem vários elementos: Jesus, o grande juiz, cercado de anjos e apóstolos. O anjo de destaque é Miguel, pois a ele cabe a tarefa de pesar as almas, atitude que se caracteriza pela salvação ou condenação da alma. É também desse século a figura do advogado diante do juiz que não aparece no texto de Mateus. Os parentes do juiz podem suplicar em favor dos condenados. Aparecem as figuras de Maria e João Evangelista aos pés da cruz, suplicando, pedindo ao juiz (Jesus) para agir com misericórdia. Maria assume, no século XIII, o papel de suplicante em favor das almas. As iconografias do Juízo Final permanecem nos séculos seguintes, mas foram perdendo força para a visão de que a ressurreição ocorreria na hora da morte pessoal, o Juízo Particular, ideia que a Igreja sustenta em nossos dias.
Volto a insistir, ainda que, lamentavelmente, Igrejas ainda pregam o pavor do juízo implacável de Deus, esse juízo, seja ele particular ou final, o critério não é simplesmente as obras de caridade, mas a relação estabelecida com o pobre, o excluído, o doente, que para o judeu impuro, pois a doença era punição de Deus, o estrangeiro que não podia entrar na sinagoga. Jesus, o Cristo Rei, estabeleceu o único critério: a relação de inclusão do ausente. Com isso, estão incluídos todos e todo o mundo habitado. Não vale o medo, mas a fé a serviço da justiça social, humanitária. Hoje, a Igreja valoriza o Juízo Particular, na hora da morte, que o Juízo Final.
Termino com a intuição de Nelson Cavaquinho, na música Juízo Final, eternizada na voz de Clara Nunes:
“O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/ O mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente/ É o Juízo Final/ A história do bem e do mal/ Quero ter olhos para ver a maldade desaparecer".