"As representações em figuras desse domingo nos preparam para a recepção do advento do Filho de Deus na limitação humana e humilde que se faz presente no meio de seu povo com o Mistério da Encarnação. Portanto, a festa de Cristo Rei nos fala que seu poder real sobre todos os povos é terreno e transcendente, é eterno, e seu reino não terá fim."
A reflexão é da teóloga Lina Boff, smb, religiosa da Congregação das Servas de Maria do Brasil – S.M.B. Ela é doutora em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (1994). Ela é professora emérita da PUC-Rio, pós-doutorada em pneumatologia de Lucas pela Pontifícia Universidade Gregoriana - Roma. Autora de vários artigos e livros, ela atua na PUC-Rio e junto ao Centro Loyola de Fé e Cultura.
1ª Leitura - Dn 7,13-14
Salmo - Sl 92, 1ab.1c-2.5 (R.1a)
1ª Leitura - Ap 1,5-8
Evangelho - Jo 18,33b-37
A festa de Cristo Rei foi instituída pelo papa Pio XI, proclamando, solenemente, a Realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus passou a ser invocado como Rei dos povos, das nações e o rei do universo. Isso se deu em dezembro de 1925. É, portanto, uma festa que só tardiamente foi introduzida no calendário litúrgico. Nesse ponto cabe-nos buscar no Antigo e Novo Testamento as referências bíblicas dessa proclamação.
A missa dessa festa começa por uma das mais belas visões do Livro de Daniel, que estão a serviço do rei da Babilônia, Nabucodonosor. O profeta tem visões e explica ao rei o sentido de suas visões. Nessa breve leitura de dois versículos, na sua visão do Filho do Homem, Daniel entrevê o reino do futuro Messias. Assim fala: Nas minhas visões noturnas, contemplava, vir sobre as nuvens do céu, o Filho do Homem (cf. Dn 7,13).
O testemunho mais antigo que considera Javé como rei remonta em Isaías no século VIII, quando, numa visão, narra sua vocação de profeta e nesse momento faz uma exclamação: “Eu vi com meus olhos o Rei e Senhor dos exércitos” (Is. 6,5). A concepção de rei e reino não é um elemento constitutivo da fé israelítica.
O Rei e Senhor de Isaías é o Filho do Homem de Daniel que vem entre nuvens é o filho do Altíssimo, o Filho de Deus. A expressão “filho Altíssimo” nos remete às palavras dirigidas a Maria de Nazaré:, ao receber a anunciação do Anjo, diante da angústia da jovem, a teofania lhe dá a estranha e, ao mesmo tempo, a grande notícia: “Conceberás e darás à luz um filho. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo e seu Reino não terá fim”(Lc. 2,35).
Nosso rei não é como os monarcas, os reis políticos, os reis da economia da fome. Esses vêm ao povo com pompa e glória e com coroa. As representações que se fazem de Cristo-rei muitas vezes imitam-nas. Grande erro! O nosso Rei traz uma coroa de espinhos e um manto de irrisão, de escárnio. Maria é a rainha que tem a coragem profética de se levantar e suplicar ao Deus Goel, (aquele que faz justiça) que deponha os poderosos e eleve os humildes da terra. É uma rainha que toma partido: o dos pobres e humilhados. E é a rainha-mãe que cuida dos abandonados e caídos na estrada. Esse rei e essa rainha, frente ao nosso mundo, são revolucionários, pois pedem uma profunda conversão em função da justiça para todos e da salvaguarda de todo o Criado.
É bom dar graças ao Senhor! Ou O Senhor é rei, veste-se de majestade!
O Salmo 92 é um hino que desenvolve a doutrina tradicional dos Sábios. Daniel e seus companheiros pertenciam à classe governamental dos Sábios, aqueles que cantam e tocam as obras de Javé e levantam sua voz para proclamar a profundidade de seus projetos em favor dos justos, dando fruto mesmo na velhice.
Na segunda leitura entrevemos o tempo da restauração da humanidade e do universo, no reino do amor de Cristo que nos lavou dos nossos pecados derramando todo seu sangue na cruz. Com seu sangue fez de nós uma Realeza, Sacerdotes e “sacerdotisas” para Deus seu Pai. Por Cristo, Deus criou o universo. Por ele, quer reconciliá-lo e salvá-lo. Cristo é a origem, o centro e o fim do nosso universo. Sem ele a nossa vida e o universo perdem seu sentido.
Essa mensagem nos convida, ou melhor, nos convoca a tomar consciência de que a redenção da humanidade e do universo que habitamos tem início com um ato de amor, chega ao seu ápice na cruz e desemboca na formação do novo Povo de Deus, o Novo Israel.
Como povo da realeza de Cristo, povo sacerdotal e chamado à santidade, vê-se, na figura humana que vem nas nuvens, Aquele que veio inaugurar o reino da justiça, da paz, da irmandade e da fraternidade. Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, Aquele que é, Aquele que era e Aquele que vem, o Todo poderoso e seu reino durará pelos séculos dos séculos. Amém!
A fé cria e salva. Embora o cenário mundial da humanidade e do universo sejam sombrios, nós temos um último recurso, a fé no Deus que, em Sabedoria (cf. Sb 11,26), se anunciou como “o apaixonado amante da vida”, citado pelo papa na Laudato Si, n. 77 e 89.
O Evangelho vem confirmar que o reino de Jesus não é daqui. Interrogado por Pilatos: Tu és rei? Jesus responde: Meu reino não é deste mundo. Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade do meu reino. Diante desta resposta podemos afirmar que o reino anunciado por Jesus, se nos apresenta na sua dimensão terrena que aponta para a escatológica.
Por isso, irmãs e irmãos, na nossa evangelização nada se perde, tudo se faz novo: nossas lutas e nossos projetos, nosso testemunho e nossa palavra convicta da fé que professamos e da vocação a que somos chamadas e chamados, tudo é resgatado e levado à sua plenitude. Mesmo quando nosso anúncio de mulheres e de homens, de jovens e de pessoas carregadas de dias e de anos, cair no ostracismo ou no esquecimento, tudo é resgatado.
As representações em figuras desse domingo nos preparam para a recepção do advento do Filho de Deus na limitação humana e humilde que se faz presente no meio de seu povo com o Mistério da Encarnação. Portanto, a festa de Cristo Rei nos fala que seu poder real sobre todos os povos é terreno e transcendente, é eterno, e seu reino não terá fim.
A exegese contemporânea e a teologia buscam fundamentos do reino de Cristo no Antigo Testamento e sua realização no Novo Testamento como reinado contraditório aos reinos de todos os tempos e do nosso tempo. Não é o rei que vem na ostentação e na prepotência, mas o Rei verdadeiro amante da vida plena, que vem pelo Espírito que o ressuscitou e está no meio de nós, vivo e atuante na construção de uma nova história e de um mundo plenificado.