04 Outubro 2019
A fé dos profetas e salmistas não é isenta de questionamentos e dúvidas com respeito à atitude de Deus. Também eles sabem ouvir o Senhor que os interroga sobre a justiça e a fidelidade à sua palavra. Assim enquanto a injustiça se multiplica, o profeta a denuncia: “Até quando, Senhor?” Da mesma forma, Jesus obriga os discípulos a se questionarem radicalmente. Cabe a nós, portanto, responder agindo. Sim, Deus terá a última palavra, mas não será sem nós. Ele nos chama: “Não fecheis vosso coração!” A fé é um dom, com certeza, mas também uma escolha, um acolhimento, uma recepção.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 27º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (06 de outubro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: “O justo viverá por sua fé” (Habacuc 1,2-3; 2,2-4).
Salmo: Sl. 94(95) - R/ Não fecheis o coração; ouvi vosso Deus!
2ª leitura: “Não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor” (2 Timóteo 1,6-8.13-14)
Evangelho: “Se vós tivésseis fé!” (Lucas 17,5-10)
Haveria conciliação entre o evangelho de hoje e o que lemos em Lucas 12,35? À primeira vista, é exatamente o contrário. Neste, ao voltar da festa de núpcias, o mestre, feliz por encontrar os empregados esperando para lhe abrir a porta «assim que viesse a bater», põe-se a serviço dos seus «servidores». Com mais uma diferença agravante: no evangelho de hoje, é o mestre que permanece em casa tranquilamente, enquanto seu empregado trabalha no campo.
Não busquemos, então, conciliar estas duas parábolas, mas perguntemo-nos a respeito do que Jesus está falando. É visível que, nestes dois casos, a figura do «mestre» não representa o mesmo personagem. O mestre do evangelho de hoje representa a todos nós: «Se algum de vós», pergunta Jesus. Ele parte da vida corrente de sua época, dos hábitos comuns de seu tempo, e quer nos fazer compreender que a nossa dedicação ao Reino de Deus não deve ser inferior ao que é exigido de nós na vida de todo o dia.
E vai longe: o serviço do Reino, ou seja, da supremacia do amor, não deve conhecer pausa, mesmo se podendo tomar formas muito diferentes. Principalmente: não temos de nos prevalecer de nossas ações, por mais generosas que elas sejam. Deus teria podido muito bem passar por outros e não por nós. Aliás, como dizem as Escrituras, tudo o que fazemos de bem tem Deus por origem.
Tudo o que podemos fazer consiste em deixar passar através de nós a energia amorosa de Deus.Assim, a nossa liberdade esposa a liberdade divina. O servidor e o Senhor se fazem um só, e tudo o que produzimos - ações, pensamentos e desejos - tornam-se obra de aliança.
No evangelho de hoje, o ponto de partida é qualquer um de nós, não importa quem, provido de alguma autoridade. Em Lucas 12, o mestre que volta das núpcias é Deus. A primeira coisa a notar é que Deus ausentou-se. No evangelho de hoje, também há a separação entre o mestre e o seu empregado, mas este tem muitas ocupações enquanto espera a volta de seu senhor.
Já em Lucas 12, a única ocupação dos servidores é esperar. Compreendamos que tudo o que fazemos em nossas vidas, inclusive o necessário, só pode ser em preparação e em antecipação do nosso último encontro. Há sempre algo mais além em tudo o que nos mobiliza e nos preocupa. Assim como para os servidores de Lucas 12, a nossa espera está marcada pela esperança, que é a certeza do nosso último e o mais pleno encontro com Deus, o Ser que nos funda.
Em resumo, o que quer que façamos, somos habitados por esta espera. Cabe a nós tomarmos consciência dela e, na medida do, possível, cultivá-la. Fica mais fácil quando ganhamos idade e, progressivamente, somos levados a centrarmo-nos no essencial.
Quantas coisas temos fortemente desejado e que, uma vez possuídas, a elas nos tornamos indiferentes! Nossos servidores do capítulo 12 não têm outra ocupação nem preocupação exceto a espera. De certo modo, chegam à mesma conclusão que o empregado do evangelho de hoje: «somos servos inúteis» ou «desocupados», conforme a tradução.
Também nós devemos esperar o mestre que vem ao nosso encontro. Tudo o que tivermos feito até o presente encontra-se superado. Eis-nos numa nova espera. Conclusão: jamais esperamos demais; bem depressa seremos satisfeitos. A vida está sempre diante de nós.
Esta comparação entre as parábolas dos capítulos 12 e 17 de Lucas convida-nos a dirigir nossa atenção para a atitude contrária à do mestre. Como dissemos, a parábola do capítulo 17 nos adianta capítulo 12, trata-se do comportamento do Mestre, ou seja, do próprio Deus, deste Deus que não vemos e que aparentemente ausentou-se do nosso universo. Mas eis que quando vem nos encontrar, o que se dá no Cristo, Ele muda de lugar: de Mestre, faz-se o servidor.
Lembremos João 13: Jesus “depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela: depois põe água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido”. Deus se põe a nosso serviço; o mais alto torna-se o mais baixo. Ainda uma reviravolta a mais: os discípulos, por sua vez, de servidos deverão se fazer servidores, para alcançarem esta senhoria que ninguém teria podido imaginar. «Os primeiros serão os últimos»: estamos assim muito longe da atitude espontânea de qualquer um de nós (a que está no evangelho de hoje).
Aqui, a despeito de toda a aparência, o maior é o empregado, o que serve. Mas por que no capítulo 12 Jesus fala de núpcias a propósito da ausência do mestre? Penso que é preciso ver aí uma alusão pascal: a crucifixão tem sido apresentada muitas vezes como as núpcias do Cristo com a humanidade. É aí que ele se pôs ao nosso serviço totalmente, corpo e alma.
Ei-lo que volta para nos encontrar depois dos três dias da ausência pascal. Como para os peregrinos de Emaús, é ele quem reparte o pão conosco. Um pão carregado de sentido: ele, a uma só vez, está morto e vivo; a vida, nova, pela morte. Não nos surpreendamos se, no capítulo 17, vemos o Senhor ser o primeiro a comer deste pão.
Em comentário precedente, falei que Deus estava presente sim na vida de Lázaro, mas que só se manifestou na crise da morte. Frase que pode surpreender, mas que está em coerência com toda a Bíblia. Podemos dizer que Deus deixa as coisas irem muito longe, tão longe quanto os homens queiram conduzi-las. No Salmo 22 vemos que Deus só intervém quando se está às portas da morte; em Isaías 53, a morte é esperada e atravessada, e vemos aí uma profecia, uma figura da páscoa do Cristo. A nossa 1ª leitura está na linha destes textos, com uma variante: não se vê Deus intervir, mas anunciar sua intervenção «num prazo definido», no momento do «desfecho», hora que virá com certeza.
Enquanto se espera, temos «destruição e prepotência, discussão e discórdia». O que significa que Deus entregou tudo nas mãos dos homens, mas não pode «deixar seu amigo conhecer a corrupção». A liberdade do homem pode produzir a morte, mas na hora da morte, hora para a qual o Cristo veio ao mundo, o próprio Deus, que é a vida, manifestou-se como contrário da morte. Foi preciso chegar até aí, para que Deus, em sua ação, se revelasse como morte à morte.
«Escreve» diz a primeira leitura, «guarda o precioso depósito» deste ensinamento, diz a segunda. No tempo que precede a hora da manifestação, na hora «da destruição e da prepotência», Deus não está totalmente inativo. Ele não força o homem a isto ou aquilo, é verdade, mas se põe como seu interlocutor, põe-se em situação de aliança.
Em Cristo, podemos vê-Lo acompanhar o homem em tudo o que tem de atravessar. Está «com». O que se traduz em Palavra: em palavra profética, a palavra que anuncia e promete a realização da vida e que, em figuras, constrói isto diante de nós.
Palavra depositada no livro, no “compêndio” confiado a Timóteo na 2ª leitura, confiado à Igreja.
Palavra realizada em Jesus Cristo; mas eis que, para nós, esta mesma realização se torna palavra, palavra do Evangelho, solicitando a nossa liberdade até a esta mais nova realização, a «volta do Cristo» fechando a história e superando todas as nossas mortes.
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A fé e seus questionamentos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU