30 Setembro 2016
“Somos simples servidores”. Em algumas traduções da bíblia encontramos: “Somos servos inúteis”. Tal tradução é muito limitada, pois fomenta a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve. Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis para o projeto de Deus.
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum (25/09/2016) que corresponde ao texto de Lc 17, 5-10.
O evangelho de hoje nos propõe uma atitude que, à primeira vista, parece inaceitável: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir o jantar. Ele é um simples servidor do Reino, tem de fazer seu serviço, sem discutir.
Mas a intenção de Jesus é outra: Ele aponta para a dedicação integral no servir. A parábola desmascara a atitude daquele que, no serviço do Reino, busca seus próprios interesses, alimenta sua vaidade e busca ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço ao Reino?
No entanto, trabalhar para buscar o louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder... esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.
Generosidade, gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos outros, libertando-nos de nosso pequeno eu. São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do “próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas, ligadas ao coração, elas revelam-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...
São elas que alargam o nosso coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
“Somos simples servidores”. Em algumas traduções da bíblia encontramos: “Somos servos inúteis”. Tal tradução é muito limitada, pois fomenta a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve. Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis para o projeto de Deus.
Esta é a grandeza e recompensa do servidor no grande trabalho que realiza em favor do Reino: ultrapassar-se sempre, mas no amor; o êxito? entregue-o a Deus!
Afinal, é o Senhor quem realiza em nós o querer e o fazer, para além de nossa boa disposição (Fil. 2,13).
A grandeza, a dignidade, a capacidade redentora de toda atividade em favor dos outros provém do fato de ser vivido numa profunda união pessoal com Cristo e com o desejo intenso de que nossa ação esteja em sintonia com a vontade e a glória do Pai, e não com as nossas buscas de compensações.
O chamado de Jesus é para “co-laborar”, para trabalhar com Ele; e deste chamado ninguém é excluído, porque Ele abriu essa possibilidade para todos (“chama todos e cada um em particular”). Qualquer que seja o trabalho , ele se define pelo afeto pessoal a Jesus, pela identificação com seu projeto libertador.
Por isso, são decisivas algumas indicações que contribuem para fazer do serviço ao Reino uma “experiência espiritual”: a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, o crescer em gratuidade e a relativização de compensações, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer...
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia nos é dado gratuitamente) nos motiva a viver o trabalho como serviço, libertando-o radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga, e esvaziando-o de toda pretensão egoísta.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...
Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço. Como dizia Santo Inácio de Loyola aos estudantes de Coimbra, “são outros os soldos” que nos compensam.
Uma tentação sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan apostólico. Fica a impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega.
A verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo de agir de Deus, superando todo autocentramento e todo voluntarismo; quem assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente um ser de gratuidade”.
A gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por aquele que é plenamente consciente de sua pobreza e indignidade radical, por aquele que, por ter-se sentido pecador e amado ao mesmo tempo, não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação.
E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de só agradar a Deus que tanto lhe ama.
A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da ação salvífica do próprio Deus.
E esta conversão à gratuidade possui uma dupla dimensão:
- é abandono da confiança em si mesmo e esvaziamento do culto ao próprio eu.
A pessoa que confia em seu próprio esforço para se projetar e brilhar, sem abrir espaço à graça de Deus, vê-se condenada à esterilidade, experimenta a aridez interior, a insatisfação de quem se empenha inutilmente, a angústia de quem se esforça sem conseguir a alegria da comunhão, e o desamparo de quem se vê triste, só e desolado.
Eis o que significa “gratuidade”: cair na conta de que tudo é dom e graça de Deus, que as boas obras, por mínimas que sejam, são um presente que Deus lhe concede poder realizá-las, que todo trabalho que se faça (mais ou menos importante, mais público ou mais escondido, com ou sem compensações...) é uma maneira pessoal de co-laborar com Aquele que fez de sua vida uma entrega por pura gratuidade.
“Quantas dádivas! Sobrevivemos e crescemos graças a um cem número de valiosos dons; e a natureza é um canto permanente ao Criador que nela se anuncia e espelha – ela é desdobramento de um amor sem limites.
Ao ver-se beneficiado, há quem exclame: “Não precisava tanto!”
Seja você assim. Você participa dessa misteriosa gratuidade. Abra os olhos para essa diversidade a lembrar que as portas para ser e amar estão sempre abertas.
Familiarizado com a dádiva, seja eco permanente da gratidão” (Frei Cláudio Van Balen).
- Seu “serviço apostólico” na comunidade é pura gratuidade ou você busca compensações e elogios?
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