Como na versão odisseica de Homero, a versão do massacre israelense aos palestinos tem, na confusão conceitual do sionismo e do semitismo propagado pela extrema-direita global, o estratagema que mina por dentro o debate sobre o genocídio
Para o sionismo cristão, “Israel não é apenas um Estado, mas um sinal profético da iminência do fim dos tempos”, assim define o jornalista Sergio Schargel. Essa ideologia faz com que a direita e a extrema-direita confundam antissionismo e antissemitismo, conforme explica o historiador Adriano de Freixo. “‘Antissionismo’ é a oposição à ideologia supremacista e colonialista. A questão é que a direita sionista deliberadamente estabelece a confusão entre antissionismo e antissemitismo, classificando qualquer crítica às posturas e atos de Israel, principalmente em relação às populações palestinas, como antissemitas, quando na verdade elas, via de regra, são simplesmente antissionistas”, pontua.
A violência aparece como um artifício retórico que busca justificar o massacre, explica o cientista político. “A justificativa por autodefesa e a justificativa de que a violência é um mal necessário para a vinda de Cristo”, salienta Schargel. “No entanto, o objetivo final dessa visão não é a convivência pacífica entre judeus e cristãos, mas a conversão em massa dos judeus ao cristianismo”, adverte. “Para os sionistas cristãos, o papel de Israel no plano divino é apenas um estágio transitório antes de uma transformação total, na qual os judeus, como povo, serão forçados a abraçar a fé cristã para serem salvos”, assinala.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, os entrevistados evidenciam que o sistema teológico dispensionalista fundamenta o desejo colonialista israelense de ocupar todo o território palestino. Na análise de Freixo, “a partir de uma interpretação literal da Bíblia, eles defendem que a Palestina foi dada por Deus aos judeus até o fim dos tempos, que a existência de uma Israel terrena é pré-condição para a realização das profecias apocalípticas e que os judeus têm um papel primordial no programa divino, com a sua conversão e aceitação de Jesus Cristo como o Messias sendo um dos eventos centrais dos últimos dias”.
No campo da política brasileira, a extrema-direita se apropriou do discurso sionista para ampliar os ganhos políticos. “O bolsonarismo operou uma instrumentalização de uma Israel imaginária, utilizando-a para legitimar seu projeto de poder e gerar apoio de dois grupos distintos” e reduziu “Israel a um emblema, a uma figura sacralizada usada para fins internos da política”, salienta Schargel. “Não faltaram exemplos de flerte de Bolsonaro com o nazifascismo e o antissemitismo”, mas a afinidade com o projeto sionista possibilitou a “aproximação de grupos políticos distintos, o afastamento das imagens de nazifascismo e antissemitismo e, ainda, rejeitar e rechaçar a antiga associação da esquerda com a defesa da Palestina”, complementa.
Para Freixo, o posicionamento a favor de Israel por parte da extrema-direita acontece por conveniência política. Os líderes políticos que aparecem enrolados na bandeira de Israel usam o “oportunismo eleitoral”, estando mesmo “de olho no eleitorado evangélico”.
Adriano de Freixo (Foto: Divulgação)
Adriano de Freixo é graduado em História, especialista em História das Relações Internacionais e mestre em História Política pela UERJ. É doutor em História Social pela UFRJ e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF), onde atua no curso de Graduação em Relações Internacionais e nos PPGs em Estudos Estratégicos (PPGEST) e Ciência Política (PPGCP). Coordena o PPG em Estudos Estratégicos (PPGEST) e do Laboratório de Estudos sobre a Política Externa Brasileira (LEPEB). Autor e organizador de diversos livros, entre os quais destacamos "Os militares e o governo Jair Bolsonaro: entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo" (Zazie Edições, 2020), "Futebol: o outro lado do jogo" (Desatino, 2014) e "Minha pátria é a língua portuguesa: a construção da ideia da lusofonia em Portugal" (Apicuri, 2009).
Sergio Schargel (Foto: Arquivo pessoal)
Sergio Schargel é doutor em Comunicação pela UERJ, mestre em Letras pela PUC-Rio e mestre em Ciência Política pela UNIRIO, além de especialista em Literatura Brasileira pela UERJ. Bacharel em Comunicação Social em Jornalismo e em Publicidade e Propaganda, ambas pela PUC-Rio, além de bacharel em Letras pela Estácio de Sá. Foi professor substituto da Universidade Federal de São João del-Rei em Letras entre 2023 e 2024. Venceu o Prêmio Abralic de melhor dissertação do biênio 2020-2021, que se transformou no livro "O fascismo infinito, no real e na ficção" (Bestiário, 2022/2023). Também é autor de "Bolsonarismo, Integralismo e Fascismo" (Folhas de Relva, 2024) e "Minha bisavó matou um cara" (Revista Piauí, 2023).
IHU – O que significa o dado trazido pelo Pew Research Center, instituto estadunidense, de que 3 a cada 10 brasileiros apoia o governo de Israel mesmo com as notícias associadas à ocupação militar em Gaza e o morticínio de dezenas de milhares de crianças?
Adriano de Freixo – Creio que há algumas questões que devem ser levadas em consideração. A primeira é o grande apoio a Israel entre os evangélicos, notadamente pentecostais e neopentecostais, segmento que representa 26,9% da população brasileira (mais de 47 milhões de pessoas), segundo o Censo de 2022. Israel também conta com o respaldo incondicional da direita – laica e religiosa – brasileira, principalmente em sua vertente mais radical identificada com o bolsonarismo, que corresponde a cerca de 1/3 do eleitorado. A interseção entre esses números mostra um quantitativo bastante similar aos resultados obtidos pela pesquisa do Pew Research Center.
Outra questão relevante é o fato da mídia ocidental, a brasileira incluída, tender a ter, quase sempre, uma postura pró-Israel ou, no mínimo, mais simpática a ele. Isso é bastante perceptível quando se faz uma leitura mais atenta do noticiário sobre o atual conflito Israel-Hamas. Por exemplo, dados sobre o conflito como o número de mortos ou a eficácia de ataques das partes beligerantes, quando provém de fontes israelenses são noticiados como fatos; quando provém de fontes palestinas contém sempre o adendo “segundo o Ministério da Saúde de Gaza”, “segundo a Autoridade Palestina” etc. Ou quando a notícia se refere às vítimas do conflito: as vítimas israelenses sempre têm nome, sobrenome, histórias de vida; as vítimas palestinas são números, dados estatísticos despersonalizados e desumanizados. É claro que isso influencia a opinião pública. Mesmo que nos últimos meses, a cobertura midiática tenha assumido um tom um pouco mais crítico, devido à impossibilidade de negar as atrocidades cometidas pelas Forças de Defesa de Israel contra a população civil em Gaza, esse tom ainda é muito abaixo do que deveria ser, quando se leva em consideração a proporção real do que está acontecendo naquela região.
Sergio Schargel – O que você tem que considerar, quando enxerga esses dados, é que, na concepção dessas pessoas, essa violência é vista como um mecanismo de defesa. Poucos são aqueles que vão negar a violência de Israel; a maioria vai justificá-la quase que de forma infantil, como um “foi ele quem começou”. Eu vi muito isso quando trabalhei com a comunidade judaica e uma adesão de sua parcela ao bolsonarismo, em minha tese de doutorado em Ciência Política. E isso é ainda mais forte no sionismo cristão, que tem muito mais presença e força nesse sentido — até pelo tamanho reduzido da comunidade judaica brasileira, são cerca de 100 mil pessoas, e suas divisões e correntes internas.
Para essas pessoas, Israel é muito mais um símbolo imaginário do que um Estado-nação real. Israel é menos entendido como um Estado-nação em conflito e mais como um ícone teológico, escatológico ou político. A máquina de propaganda que justifica a violência como autodefesa também encontra eco em visões teológicas que naturalizam o sofrimento dos palestinos como parte de uma narrativa escatológica inevitável. A violência colonialista de Israel é vista, por esses grupos, como um mal necessário para a vinda de Cristo.
Esse ponto ficou muito claro em um dos entrevistados com quem trabalhei. Para ele, a culpa da guerra era exclusivamente da Palestina: “Israel já fez milhares de propostas para eles terem terra, oficializar, só que diversas vezes Israel recebeu um não em relação à oficialização de dois Estados”. Ou seja, Israel só se defende. Então, tem essas duas facetas: a justificativa por autodefesa e a justificativa de que a violência é um mal necessário para a vinda de Cristo.
IHU – Quais são as diferenças entre sionismo e semitismo, mas também entre seus termos antônimos, antissionismo e antissemitismo?
Adriano de Freixo – Bem, o termo “semita” remonta ao livro do Gênesis, na narrativa do Dilúvio. Após a catástrofe, os filhos de Noé teriam sido os responsáveis por repovoar o mundo. Assim, na tradição bíblica, “semitas” seriam os povos descendentes de Sem. Modernamente, o termo é resgatado e ressignificado por estudiosos do campo da linguística no final do século XVIII, início do XIX, quando nos estudos de filologia comparada passaram a utilizar o termo “semita” ou “semítica” para denominar uma família de línguas relacionadas entre si – hebraico, árabe, siríaco, dentre outras.
A questão é que no século XIX temos a emergência dos nacionalismos, quase que simultaneamente ao surgimento das teorias raciais pretensamente científicas, que difundem o conceito biológico de raça e estabelecem uma hierarquia entre as raças. É nessa interseção que vai haver a confusão entre um termo proveniente da linguística e a ideia de raça, passando a se falar em uma “raça semita”. “Semita” passa a ser então praticamente sinônimo de “judeu”, embora, em tese, o termo também abarcasse outros povos do Oriente Médio e do norte da África. É nesse contexto, que surge o antissemitismo contemporâneo, termo esse que pode ser entendido como “ódio aos judeus”.
Na verdade, o antijudaísmo é um fenômeno bastante antigo. Na Idade Média, na Europa, os judeus eram perseguidos como os “assassinos de Cristo” e associados ao satanismo e à bruxaria (vide os processos da Santa Inquisição). Depois, na época moderna, passam a ser associados à usura, ao dinheiro conseguido através da exploração do povo. Não é à toa que, em várias partes da Europa, os judeus se tornam os bodes expiatórios em momentos de crise política e econômica, com as lideranças políticas e governantes estimulando os massacres e as perseguições a eles, como nos pogroms que acontecem na Rússia Czarista nas últimas décadas do século XIX.
No antissemitismo contemporâneo, o ódio aos judeus ganha um novo elemento: a ideia da “raça semita” como uma “raça inferior”, “degenerada”. Os judeus se tornam os personagens centrais de inúmeras teorias da conspiração que circulavam na Europa e chegam nas Américas na passagem do século XIX. É esse antissemitismo que se consolida na primeira metade do século XX e que teve sua expressão mais extremada e bárbara no nazismo.
É como reação a tudo isto que, no final do século XIX, surge o movimento sionista, que pode ser definido como o nacionalismo judaico, que tinha como objetivo central a construção de um “lar nacional judaico”, um Estado nacional para os judeus dispersos pelo mundo e, muitas vezes, perseguidos e tratados como o “estrangeiro”, o “outro”, o “não integrado”. É importante ressaltar que, nas primeiras décadas do movimento sionista, havia uma forte presença de sionistas de esquerda, de origem socialista, e também que havia discussões sobre a possibilidade do Estado judeu não ser necessariamente na Palestina.
Porém, a partir da criação do Estado de Israel, em 1948, esse nacionalismo judaico mais progressista foi gradativamente perdendo espaço e embora ainda haja uma esquerda sionista em Israel, que defende a laicidade do Estado e a “solução de dois Estados”, ela é cada vez mais minoritária. Por outro, à medida em que o sionismo se torna a ideologia oficial do Estado de Israel e a direita sionista – laica e religiosa – vai se tornando hegemônica, ele vai assumindo características cada vez mais supremacistas, colonialistas e racistas. Embora esses elementos já estivessem presentes no discurso de alguns grupos sionistas antes de 1948, é a partir da criação do Estado de Israel, do surgimento da questão palestina e dos constantes conflitos com os vizinhos árabes que isso se exacerba. Por exemplo, existem torcidas organizadas de clubes de futebol israelenses – a mais conhecida é a do Beitar Jerusalem – assumidamente de extrema-direita que defendem a eliminação dos árabes e entoam cantos racistas nos estádios.
Não custa lembrar que em 1975, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 3379, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, e ela considerava o sionismo como uma forma de racismo. A revogação dessa resolução só se deu em 1991, pelo fato de Israel ter colocado essa questão como pré-condição para participar das discussões que culminaram nos Acordos de Paz de Oslo.
É nesse sentido que podemos definir “antissionismo” é a oposição à essa ideologia supremacista e colonialista. A questão é que a direita sionista deliberadamente estabelece a confusão entre antissionismo e antissemitismo, classificando qualquer crítica às posturas e atos de Israel, principalmente em relação às populações palestinas, como antissemitas, quando na verdade elas, via de regra, são simplesmente antissionistas. E os aliados de Israel no Ocidente replicam essa visão distorcida. Vide a repressão às manifestações pró-Palestina que ocorreram nas universidades dos EUA e que foram classificadas pelo governo norte-americano – e na época, o presidente ainda era o Joe Biden – como “antissemitas”. E com o governo Trump essa repressão se intensificou ainda mais.
Sergio Schargel – Antes de tudo, precisamos ter em mente que a ideia de “semita” para classificar os judeus já é, por si só, uma distorção. Isso faz, inclusive, com que algumas pessoas generalizem o antissemitismo como ódio tanto aos judeus quanto aos árabes. Claro que, na prática, o termo antissemitismo já está enraizado e é quase impossível dissociá-lo, mas não deixa de ser um termo errôneo, já que se aplica a línguas, não a etnias. Aliás, a própria discussão sobre se existe ou não uma etnia judaica é imensa, e esbarra na própria noção do que é o judaísmo, seus limites e suas extensões.
Dito isso, há uma diferença básica e essencial entre antissemitismo e antissionismo: um foca em Israel, o outro nos judeus. Se uma pessoa diz: “Israel é um Estado que promove uma violência colonialista”, isso, limitado a este contexto, é claramente antissionista. Por outro lado, se ela diz algo como “os judeus são intolerantes e violentos”, é obviamente antissemita. Qualquer generalização do judaísmo enquanto raça/etnia, cultura ou religião, como uma massa amorfa homogênea, ignorando as inúmeras correntes internas, é antissemitismo.
O sionismo é um movimento político vinculado ao nacionalismo judaico; o semitismo, por outro lado, é uma categoria linguística usada de forma inadequada para definir identidades religiosas ou étnicas. Assim, antissionismo diz respeito à crítica ao projeto político do Estado de Israel, enquanto antissemitismo refere-se ao preconceito contra os judeus como povo. O primeiro é uma posição política; o segundo, uma forma de racismo.
É claro que essa é uma simplificação grosseira de um debate amplo e que, muitas vezes, não tem fronteiras tão bem definidas quanto na teoria. Em que ponto o antissionismo vira antissemitismo? Existem antissemitas sionistas, Bolsonaro é um exemplo claro. Diversos dos sionistas cristãos também. A base teológica do sionismo cristão está ligada a uma crença escatológica que condiciona o retorno de Jesus à reconstrução de Israel como nação judaica. No entanto, o objetivo final dessa visão não é a convivência pacífica entre judeus e cristãos, mas a conversão em massa dos judeus ao cristianismo. Para os sionistas cristãos, o papel de Israel no plano divino é apenas um estágio transitório antes de uma transformação total, na qual os judeus, como povo, serão forçados a abraçar a fé cristã para serem salvos. Isso é, naturalmente, antissemita (mesmo sendo sionista), pois rejeita a individualidade e o direito à autonomia dos judeus.
IHU – O que seria neste contexto o sionismo cristão? Como se caracteriza? Quais são suas principais formas de expressão?
Adriano de Freixo – O sionismo cristão pode ser definido como um movimento de cristãos que apoiam incondicionalmente o Estado de Israel e o sionismo. Esse apoio se dá por questões de ordem teológica, pela crença de que o atual Israel é o renascimento da Israel dos tempos bíblicos, o lugar onde se realizarão as profecias apocalípticas. No entanto, esse movimento, mesmo sendo de base religiosa, tem um forte impacto político, influenciando decisões tanto no âmbito da política doméstica, quanto no da política externa nos EUA e, mais recentemente, no Brasil de Bolsonaro. A política externa do Governo Ronald Reagan (1981-1989), por exemplo, foi bastante influenciada por esses grupos. Basta dizer que a maior organização sionista existente no mundo hoje, não é formada por judeus, mas por cristãos evangélicos. É a “Christians United for Israel”, organização estadunidense que, segundo as informações constantes em seu site, conta com mais de dez milhões de membros.
Sergio Schargel – O sionismo cristão, ou doutrina do dispensacionalismo, crê na necessidade do restabelecimento de Israel pelo povo judaico como passo imprescindível para o retorno de Cristo. É, inclusive, o maior movimento sionista do mundo. Além dessa visão religiosa, essas pessoas ainda enxergam Israel por meio de uma lente política, vista como um bastião do Ocidente encrustado no Oriente.
Um exemplo eloquente dessa percepção ocorreu no ano passado, quando manifestantes pró-Bolsonaro, durante um protesto, chegaram a declarar que Israel seria um “país cristão”. A afirmação rapidamente se tornou meme e motivo de escárnio, mas revela, de forma involuntária, como muitos enxergam Israel: não como uma nação judaica, mas como um símbolo cristão, independentemente da realidade factual.
Como eu disse antes, este movimento, embora à primeira vista pareça expressar simpatia e apoio aos judeus e ao Estado de Israel, carrega em si uma lógica profundamente antissemita. Essa forma de sionismo cristão vê o restabelecimento de Israel como uma condição necessária para a segunda vinda de Jesus Cristo. No entanto, longe de promover uma verdadeira aceitação ou apoio incondicional ao povo judeu, o movimento se baseia em uma interpretação apocalíptica que visa a conversão de todos os judeus ao cristianismo.
IHU – De onde vem a fusão simbólica (talvez o termo melhor fosse “confusão”) entre neopentecostalismo e Israel?
Adriano de Freixo – O primeiro ponto a ser ressaltado é a associação automática que as denominações neopentecostais tendem a fazer entre o Estado de Israel, criado em 1948, e a Israel do Velho Testamento, das 12 Tribos. O moderno Estado de Israel seria, assim, a continuidade da Israel bíblica, dos patriarcas.
Outro ponto importante é a influência da teologia dispensacionalista em muitas dessas denominações. Dessa forma, nós vemos denominações neopentecostais dando grande ênfase aos livros do Velho Testamento e ornando suas igrejas com símbolos sagrados do judaísmo e bandeiras de Israel. No extremo, temos até pastores se vestindo como rabinos, caracterizando assim uma espécie de filossemitismo. A questão é que, muitas vezes, um filossemita é um antissemita que adora judeus, como bem lembra o jornalista Franklin Foer, ao discutir o futebol e a questão judaica em seu conhecido livro “Como o Futebol Explica o Mundo”.
Sergio Schargel – Como você bem coloca, a fusão/confusão remonta a essa crença de que Israel seja, na realidade, uma nação cristã. Claro que isso não significa que essas pessoas acreditem que ela seja, de fato, cristã, mas sim um passo necessário para o cristianismo. O que quero dizer é que essa identificação simbólica não surge de uma aproximação histórica com o judaísmo real, mas da criação de um “Israel imaginário”. Para esses grupos, pouco importam os judeus; o que importa é uma Israel idealizada, vista como bastião ocidental de defesa contra um Oriente hostil e como representação simbólica da conveniência escatológica. Nesse cenário, Israel não é apenas um Estado, mas um sinal profético da iminência do fim dos tempos.
IHU – O que é o dispensacionalismo e qual a sua lógica teológica?
Adriano de Freixo – O dispensacionalismo é um movimento que surge na Inglaterra no século XIX e que se difunde rapidamente, com grande repercussão, principalmente nos EUA. Ele não constitui uma denominação, não existe uma “Igreja Dispensacionalista”, mas as suas teses e seu sistema teológico estão presentes ou exercem influência em diversas denominações evangélicas, não só pentecostais e neopentecostais, mas também nas igrejas protestantes históricas.
Bem, para tentar explicar o sistema teológico dispensacionalista, de forma bem sucinta e bastante simplificada, focando no que efetivamente interessa para o que estamos discutindo, o primeiro ponto a ser ressaltado é que ele parte de uma interpretação literal da Bíblia, ou seja, não há margem para qualquer outra interpretação, o que está escrito deve ser entendido ipsis litteris. Em segundo lugar, há uma grande ênfase na escatologia, a doutrina dos “últimos dias”. Assim, os dispensacionalistas creem que os eventos passados relatados nas Escrituras realmente ocorreram, são eventos históricos e não alegorias, e que as profecias apocalípticas sobre a segunda vinda de Cristo – que acontecerá de forma física e no mundo físico – realmente se concretizarão.
É a partir desses dois pontos que a gente compreende o papel de Israel para os dispensacionalistas. Diferentemente de outras concepções teológicas, eles defendem a ideia de que as promessas feitas por Deus a Israel no Velho Testamento, não foram transferidas para a Igreja Cristã e que, portanto, a existência de Israel como nação terrena é fundamental para a realização dos planos divinos.
Assim, segundo a escatologia dispensacionalista, os eventos dos últimos dias aconteceriam mais ou menos da seguinte forma: em primeiro lugar, haveria o “arrebatamento”, quando os cristãos vivos e mortos subirão aos céus; a seguir, ocorreria a “Grande Tribulação”, um período de grande aflição e dor, que culminaria no “Armagedon”, a batalha final entre o bem e o mal (que deverá acontecer no território da Israel terrena); e finalmente, após o segundo advento e antes do julgamento final dos ímpios, Jesus Cristo reinaria na terra por mil anos (a ideia do “milênio), tendo Jerusalém como capital. As promessas feitas a Israel no Velho Testamento se cumpririam, pois, nesse reino milenar, os judeus finalmente aceitariam o Messias e se converteriam.
Podemos perceber, assim, a influência do dispensacionalismo no sionismo cristão. A partir de uma interpretação literal da Bíblia, eles defendem que a Palestina foi dada por Deus aos judeus até o fim dos tempos, que a existência de uma Israel terrena é pré-condição para a realização das profecias apocalípticas e que os judeus têm um papel primordial no programa divino, com a sua conversão e aceitação de Jesus Cristo como o Messias sendo um dos eventos centrais dos últimos dias. Isso sem contar certas leituras, bastante correntes na direita cristã, que associam o “Anticristo” ao Islã.
Sergio Schargel – Em uma simplificação um pouco grosseira, o dispensacionalismo é uma doutrina teológica que se tornou bastante influente nas religiões neopentecostais ao redor do planeta, com particular presença no Brasil. De acordo com essa corrente, o retorno dos judeus à Terra Prometida é interpretado como o cumprimento literal das promessas feitas por deus a Israel no Antigo Testamento, e como um sinal inequívoco de que o fim dos tempos está próximo. Como eu disse, isso se soma a aspectos políticos: Israel como uma nação aliada em uma terra “estranha” e a rejeição da associação entre a esquerda e a Palestina.
Com isso, essa lógica teológica teve desdobramentos políticos evidentes no bolsonarismo, que soube instrumentalizar esse imaginário religioso. A crença de que a restauração de Israel precede o fim do mundo foi habilmente utilizada para consolidar apoio evangélico. Mais do que isso, a defesa de Israel mostrou-se uma estratégia conveniente para Bolsonaro, pois permitiu fortalecer laços tanto com os neopentecostais quanto com judeus sionistas, agradando a dois grupos ao mesmo tempo em uma aliança improvável. A aproximação com parte da comunidade judaica, nesse caso, foi ainda importante para Bolsonaro por outro motivo: permitiu se afastar das acusações de nazifascismo e antissemitismo, utilizando um escudo discursivo graças ao flerte com Israel.
IHU – Que Israel é esta que permeia o imaginário cristão neopentecostal?
Adriano de Freixo – Em primeiro lugar, como já mencionei, a Israel bíblica aparece como a grande referência. A Israel contemporânea é vista de forma idealizada, muito distante do que é de fato Israel real, com suas contradições internas, divisões políticas e religiosas e diferenças culturais. Ignora-se a questão palestina, a história da região, as tensões existentes. Como assinala Michel Gherman, é a “Israel imaginária”, branca, cristã, ocidentalizada, o lugar de realização das profecias bíblicas.
Sergio Schargel – Uma Israel muito distinta da realidade. Longe de ser a Israel em permanente conflito, multiétnica, com culturas e políticas coexistindo, trata-se de uma Israel unívoca, unilateral e limitada. As contradições e violências são apagadas, e Israel se torna limitada a um apêndice cristão no Oriente Médio. Não é uma Israel política, mas uma Israel simbólica e mítica. Uma Israel imaginária que não corresponde ao país real, mas ao símbolo religioso cristalizado em torno da Terra Prometida e da profecia bíblica.
A partir disso, torna-se fácil a demonização da Palestina. Afinal, se Israel é elemento imprescindível para a vinda de Cristo, e se a Palestina se opõe a essa Israel divina, logo, por extensão, a Palestina representa o diabo. A associação é simplista, mas funcional. Ainda mais funcional por facilitar a associação da esquerda com essa Palestina, estendendo a demonização para a própria esquerda. Se não são humanos, a violência é justificada. Por isso, voltando à sua pergunta inicial, muitas dessas pessoas não se importam com a violência israelense ou creem que ela seja um mal necessário.
Para essa lógica, Israel é o sinal visível de que Deus continua atuando na história e de que o fim dos tempos se aproxima. A criação do Estado em 1948 é interpretada como o cumprimento de profecias milenares.
IHU – No fundo, o que está em jogo é um certo messianismo, uma ideia aparentemente arcaica. A questão que surge é, no entanto, um contraponto à premissa. Nesse sentido, qual a atualidade do messianismo hoje? Quais seus efeitos políticos?
Adriano de Freixo – O Messianismo é algo profundamente arraigado no imaginário político ocidental. A ideia de um “Salvador” que inaugurará uma era de prosperidade e/ou resgatará a grandeza perdida de uma nação é um dos mitos políticos mais recorrentes ao longo da história. De Hitler a Trump, passando por Bolsonaro, ele tem sido constantemente acionado na contemporaneidade, via de regra, com consequências desastrosas. A necessidade de manter a base de apoio mobilizada e de diluir a frustração pelas promessas não realizadas se traduz na construção de uma retórica “amigo”/”inimigo”, os “eleitos”/os ”outros” que leva à beligerância e ao conflito. Logo, o messianismo – laico ou religioso – como força mobilizadora está longe de ser arcaico: ele é bastante “moderno”, se inserindo na lógica da “longa duração”, com uma grande capacidade de adaptação, adequação e ressignificação em lugares e conjunturas distintas.
Sergio Schargel – Seja na política ou na religião, o messianismo permanece influente. Parte considerável da fragilização democrática global se deve a ele. Isso é muito claro no caso do Bolsonaro — que ainda tem a triste coincidência do “Messias” em seu nome. Ele foi interpretado por parte de seus eleitores e apoiadores como uma figura messiânica, o “ungido de Deus” que salvaria o Brasil da corrupção e da decadência. Na verdade, messianismo e reacionarismo sempre tiveram uma ligação — não à toa, o programa de Bolsonaro se chamava Projeto Fênix.
Não foi nada complicado, portanto, a transição do messianismo religioso para o messianismo político, pois já havia um caldo cultural bastante receptivo a uma liderança desse tipo. O messianismo oferece uma estrutura de sentido para tempos de crise: quando a política convencional falha, quando as instituições são vistas como contaminadas e quando a confiança no futuro se esgota, surge a figura do “salvador”, do “enviado”, que redime o povo e restaura uma ordem superior. No caso do Brasil contemporâneo, esse discurso se expressou com clareza no slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que combina nacionalismo, teologia e excepcionalismo moral.
IHU – Como o sionismo cristão e a devoção a Israel encobrem uma lógica que carrega traços profundamente antissemitas?
Adriano de Freixo – Embora pareça paradoxal, as bases teológicas do sionismo cristão acabam por ser profundamente antissemitas. Como já mencionei, o atual Estado de Israel é visto como continuidade da Israel bíblica, tendo assim um papel central nas narrativas sobre o fim dos tempos, como por exemplo, aquelas sobre a conversão dos judeus ou sobre o local – geograficamente definido – onde se travaria a batalha final entre o bem e o mal. A sua existência física seria, então, uma condição sine qua non para a segunda vinda de Cristo. Nesse sentido, apesar do sionismo cristão exaltar Israel como parte central da engrenagem escatológica, no fundo, ele não enxerga a fé dos judeus como legítima, já que o seu destino final seria a conversão ao cristianismo em cumprimento às profecias. Ou seja, o objetivo final não é a coexistência pacífica entre cristãos e judeus, mas o desaparecimento destes últimos para a realização do texto apocalíptico.
Sergio Schargel – Apoiar Israel não significa apoiar judeus. Não faltam exemplos históricos de antissemitas pró-sionismo, e muito menos exemplos atuais. O apoio a Israel se dá apesar dos judeus, não por causa deles. A lógica é simples: no sionismo cristão, crê-se que a vinda de Cristo em Israel significa a transformação de todos os judeus em cristãos. Aqueles que rejeitarem isso terão como destino a danação. Em outras palavras, Israel é venerado, mas os judeus são anulados enquanto sujeitos históricos e religiosos reais.
A devoção neopentecostal a Israel não se funda na aceitação ou valorização do judaísmo como tradição plural e autônoma, mas numa leitura instrumental em que os judeus são apenas coadjuvantes em um enredo escatológico. Nesse enredo, os judeus são importantes apenas enquanto sinal profético. O destino deles seria, inevitavelmente, a conversão ao cristianismo ou a destruição durante o período da tribulação. Esse tipo de leitura é, em essência, condicional e utilitária. Os judeus são valorizados enquanto cumprirem o seu papel no plano divino, mas não são respeitados como portadores de uma fé legítima ou de uma história independente.
IHU – Qual a relação do bolsonarismo com a instrumentalização política de Israel? Por que isso é perigoso?
Adriano de Freixo – Uma das características da nova extrema-direita global – tanto a cristã, quanto a não religiosa – é o posicionamento pró-Israel. A extrema-direita cristã, pelos motivos já mencionados; a não religiosa, porque vê em Israel um “bastião” do Ocidente e de seus valores em meio ao mundo islâmico, que seria a grande ameaça à civilização ocidental. Nesse sentido, o antissemitismo deixa de ser um elemento central no discurso dessa extrema-direita não religiosa, sendo substituído pela islamofobia.
Quando observamos a trajetória política de Jair Bolsonaro, podemos notar uma inflexão bastante importante, a partir do início da década passada. Até então, Bolsonaro era um deputado do baixo clero – eleito pela primeira vez em 1992 –, cuja atuação parlamentar girava, essencialmente, em torno da defesa de interesses corporativos dos militares e das corporações policiais, associada a um discurso anticomunista da época da Guerra Fria e a um saudosismo da ditadura. Porém, a partir daquele momento, ele incorpora ao seu discurso os temas da chamada “agenda moral”, da “pauta de costumes”, tão cara à direita cristã, como bem assinala a cientista política Marina Basso Lacerda em seu excelente trabalho “O Novo Conservadorismo Brasileiro”.
Ao mesmo tempo, ele começa a “atualizar” o seu discurso anticomunista incorporando ao seu vocabulário expressões da nova extrema-direita – que teve em Olavo de Carvalho, um de seus principais divulgadores – como “Globalismo”, “Marxismo Cultural”, “Foro de São Paulo”. É nesse momento que Israel começa a aparecer com frequência em seu discurso, ou mais precisamente, a Israel imaginária sobre a qual comentamos ainda há pouco.
Mas isso não impede que na coalizão bolsonarista – que é bastante ampla – existam grupos da extrema-direita tradicional, explicitamente antissemita, como se pode observar no aumento exponencial de células neonazistas no Brasil nos últimos anos, pari passu com a ascensão e consolidação do bolsonarismo, ou em eventos como o vídeo de Roberto Alvim, então Secretário de Cultura do governo Bolsonaro, em 2020, emulando Joseph Goebbels. Ou mesmo em uma foto do próprio Jair Bolsonaro, em 2015, abraçado a um professor que se vestia como Adolf Hitler e adotava um visual similar ao do líder nazista, incluindo o bigode e o penteado. Essa mesma pessoa, no ano seguinte, seria candidato a vereador na Cidade do Rio de Janeiro pelo PSC, partido que à época abrigava a família Bolsonaro. Ou seja, é uma adesão a Israel por conveniência política, mas que não deixa de carregar traços de antissemitismo.
Sergio Schargel – O bolsonarismo operou uma instrumentalização de uma Israel imaginária, utilizando-a para legitimar seu projeto de poder e gerar apoio de dois grupos distintos. Essa apropriação não tem como objetivo compreender a complexidade histórica e política do Estado israelense, tampouco solidarizar-se com o povo judeu enquanto sujeito coletivo com direitos e contradições. Ao contrário: Israel é reduzido a um emblema, a uma figura sacralizada usada para fins internos da política brasileira. E isso é, ao mesmo tempo, revelador e perigoso.
A relação estreita com Israel proporcionou a Bolsonaro ganhos políticos em diversas frentes e ampliou sua aceitação entre segmentos da comunidade judaica brasileira, especialmente entre aqueles alinhados com uma visão sionista de direita. A aproximação com o governo de Benjamin Netanyahu, a visita ao Muro das Lamentações acompanhado de pastores e a promessa de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém não foram gestos diplomáticos neutros: foram sinais claros ao eleitorado evangélico e também a setores do judaísmo conservador.
A imposição dessa imagem do judeu idealizado tem profundas implicações. Ela transforma a identidade judaica em um instrumento político, moldado para servir aos interesses do bolsonarismo. A figura do judeu, assim concebida, é despojada de sua complexidade histórica e cultural, sendo reduzida a um símbolo conveniente que reforça a narrativa bolsonarista. Isso cria um cenário em que os próprios judeus que não se encaixam nessa imagem idealizada são marginalizados e silenciados.
Tanto melhor que esse aceno afaste a incômoda imagem do nazifascismo. Afinal, como pode um nazifascista ser apoiado por um pedaço da comunidade judaica? Uma forma, portanto, de rejeitar imagens e comparações incômodas com movimentos de extrema-direita do passado. Afinal, um antissemitismo explícito e extremo, que prega violência física, após o Holocausto e Israel, não é tão bem-visto quanto antes de 1945. Não faltaram exemplos de flerte de Bolsonaro com o nazifascismo e o antissemitismo. Em mais de uma oportunidade, fantasiou que teria um bisavô italiano que lutou a favor de Hitler na Segunda Guerra, quando, na verdade, seus antepassados vieram para o Brasil no século XIX. Uma mentira sobre a qual insistiu tanto que, no mínimo, revela um desejo. Um flerte com Israel é útil em várias frentes, portanto. Permite aproximar-se de grupos políticos distintos, afastar as imagens de nazifascismo e antissemitismo e, ainda, rejeitar e rechaçar a antiga associação da esquerda com a defesa da Palestina.
IHU – Como compreender o gesto de políticos que se dizem patriotas e que se colocam, ao menos retoricamente, como defensores dos interesses do Brasil, de fazer aparições públicas enrolados na bandeira de Israel? Qual o objetivo dessa prática?
Adriano de Freixo – Por um lado, há a identificação ideológica entre a extrema-direita brasileira e a direita sionista israelense, personificada no governo de Benjamin Netanyahu; por outro, existe o oportunismo eleitoral de possíveis candidatos à presidência, de olho no eleitorado evangélico e no espólio político de Jair Bolsonaro. Pode-se dizer que o bolsonarismo e os atores políticos com ele identificados adotam um “patriotismo de resultados” ou de “conveniência”, pois se apropriam das cores e dos símbolos nacionais para seus projetos político-eleitorais pessoais, ao mesmo tempo em que adotam posições e posturas antinacionais. Um caso exemplar é a reação dessas lideranças e agentes políticos às recentes sanções do governo Trump contra o Brasil. Vimos “Patriotas” defendendo atos arbitrários de uma potência estrangeira contra o seu próprio país. Logo, não há nada de surpreendente em que eles se enrolem na bandeira de Israel ou usem bonés do MAGA. Não dá para não lembrar de um velho samba do grande Geraldo Pereira, “Falso Patriota”, que diz assim: “Não canta nosso samba/Não gosta de pandeiro/Veste um tecido nosso/Diz que é do estrangeiro/Fala mal do que é nosso, diz que é brasileiro”.
Sergio Schargel – Bom, temos visto nos últimos dias como esse patriotismo é uma fachada. Um patriotismo servil, um nacionalismo muito limitado e subserviente aos interesses estadunidenses. Não vou entrar em profundidade nessa questão, mas essa submissão às interferências de Trump escancarou ainda mais o que já sabíamos: como essa exaltação do Brasil e da brasilidade [na extrema-direita] é, na prática, limitado. Eles insistem no malabarismo retórico de que defender o tarifaço e ser patriota não é uma contradição, mas uma afirmação da soberania nacional que teria sido deturpada pela “ditadura do STF”. E com Israel é a mesma lógica.
O nacionalismo do bolsonarismo sempre foi por conveniência, ele nunca hesitou em abrir mão conforme a necessidade. Diferente, por exemplo, do nacionalismo do integralismo. Mesmo tendo sido influenciado e até financiado pelo fascismo italiano, o integralismo de fato exaltava e formulava a importância do desenvolvimento de uma identidade nacional (paradoxalmente livre de influências estrangeiras). Bolsonaro absorveu muita coisa do integralismo, como eu trato no meu livro, Bolsonarismo, integralismo e fascismo, mas nunca foi tão longe, mesmo revisitando o lema integralista de “Deus, pátria e família”. Sua retórica de valorização nacional sempre foi muito limitada ao que o cenário político demandava.
No caso de Israel, como eu falei, a questão tem mais relação com o símbolo que o país se tornou. Muitos desses “nacionalistas” não enxergam problemas na exaltação israelense porque, para eles, Israel é menos uma nação política e mais uma nação religiosa. Não é a Israel política que eles exaltam — no máximo, e de forma muito restrita, a enxergam como uma aliada dos EUA a quem são subservientes —, mas principalmente o símbolo escatológico. Esse contexto não indica solidariedade internacionalista, mas desejo de associação com uma ideia mítica de Israel, como nação forte, moralmente eleita e símbolo da guerra contra o "mal". É um pensamento essencialmente maniqueísta e messiânico, como vocês apontaram.
IHU – Desejam acrescentar algo?
Adriano de Freixo – Só gostaria de agradecer o convite do IHU para aprofundar nesta entrevista alguns dos pontos que levantamos em nosso recente artigo A “Marcha para Jesus”, o sionismo cristão e os usos políticos pela ultradireita de uma Israel imaginária. São questões que, definitivamente, entraram no debate político nacional e não podem ser ignoradas ou secundarizadas. Mais uma vez, obrigado.
Sergio Schargel – A princípio, não. Só agradecer ao IHU pela oportunidade de conversar com uma instituição tão relevante. Ressaltar também que é essencial que o debate sobre Israel, sionismo e apoio evangélico brasileiro seja feito com rigor e sem simplificações.