A bioética é um farol para tratar os dilemas das relações entre humanos e não humanos. Entrevista especial com João Carlos de Aquino Almeida

A presença de animais nas universidades enriquece a experiência universitária, levantando questões éticas importantes sobre o tratamento que dispensamos aos animais, explica o pesquisador

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 09 Agosto 2024

Os campi universitários são espaços de convivência não apenas entre humanos, mas também entre humanos e não humanos. Habitados por animais silvestres, como anfíbios e aves, e animais domésticos, como gatos e cachorros, eles tornaram-se locais de socialização, nem sempre pacífica, entre esses atores.

A fim de compreender os dilemas que envolvem essas relações, como interações afetuosas, riscos de transmissão de doenças, ataques e traumas, a partir da bioética, diferentes pesquisadores realizaram um trabalho abordando essas complexidades. A pesquisa resultou na publicação do livro Viver em harmonia: sobre o convívio de humanos e não-humanos nas universidades (CRV: Paraná, 2024).

O livro, esclarece o professor João Carlos de Aquino Almeida, “não diz quais atitudes tomar em situações nas quais tenhamos conflitos com animais na universidade, mas acaba sendo um manual sobre como realizar uma intervenção bioética em qualquer espaço de coabitação e convivência a fim de analisar dilemas bioéticos”. As propostas surgidas nas pesquisas não se aplicam somente aos campi, mas também a condomínios, parques e outros locais de convivência entre animais humanos e não humanos, complementa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Almeida, um dos organizadores, contou que a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF serviu de modelo de pesquisa. O campus da UENF “abriga cerca de 138 espécies de animais silvestres, entre anfíbios, aves e mamíferos, o que corresponde a 77,3% da fauna registrada para a área urbana da cidade de Campos dos Goytacazes”, descreve. Além disso, a “UENF é também lar de vários cães e gatos, incluindo animais comunitários, errantes, visitantes da comunidade do entorno e animais abandonados”, informa. Segundo o pesquisador, “a presença desses animais exemplifica bem a diversidade e os desafios de integração enfrentados pela universidade, tornando-a um microcosmo onde se podem observar as complexas interações entre diferentes formas de vida”.

Segundo o professor, “o bem-estar animal e o direito animal têm se tornado campos de conhecimento essenciais devido ao crescente reconhecimento dos direitos dos animais e à importância de sua proteção”, relata. Para o entrevistado, os movimentos de proteção animal e as legislações têm sido cruciais, “promovendo a superação do especismo e garantindo que os animais não sejam tratados como propriedade, mas como seres com autonomia e valor intrínseco”, finaliza.

João Carlos de Aquino Almeida (Foto: UENF)

João Carlos de Aquino Almeida é professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), metre e doutor em Ciências Biológicas (Biofísica) pela UFRJ, com estágio doutoral na University of Illinois at Urbana-Champaign (UIUC). Desenvolve pesquisas em torno do efeito de substâncias bioativas sobre células neoplásicas e microrganismos e sobre implicações bioéticas dos avanços biotecnológicos.

Confira a entrevista.

IHU – Em que sentido uma universidade é um espaço de integração nem sempre pacífica de diferentes seres, não somente humanos?

João Carlos de Aquino Almeida – Quando falamos de universidade, imaginamos espaços amplos frequentados por muitas pessoas. No entanto, não são apenas as pessoas que circulam por esses ambientes. Gatos, passarinhos e cachorros, como o famoso “cachorro caramelo”, também compartilham esses espaços em busca de carinho ou de uma refeição. Esse convívio nem sempre é harmonioso, pois, além das interações afetuosas, há também riscos de transmissão de doenças, ataques e traumas (de ambos os lados), o que gera opiniões divergentes sobre a presença desses animais no campus.

IHU – Como se caracterizam os animais que fazem parte do espaço universitário?

João Carlos de Aquino Almeida – A Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, nosso modelo de estudo, é um exemplo concreto da diversidade que temos tanto de pessoas como de animais que convivem nesse espaço. Concebida pelo antropólogo Darcy Ribeiro e com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, a UENF oferece 15 cursos presenciais, que comportam 5.000 alunos de graduação, 1.200 alunos de pós-graduação e cerca de 900 servidores, entre técnicos-administrativos e docentes. Vemos aí que já temos uma grande diversidade de pessoas em termos de formação, crenças, princípios e valores. Além dessa diversidade humana, o campus abriga cerca de 138 espécies de animais silvestres, entre anfíbios, aves e mamíferos, o que corresponde a 77,3% da fauna registrada para a área urbana da cidade de Campos dos Goytacazes. A UENF é também lar de vários cães e gatos, incluindo animais comunitários, errantes, visitantes da comunidade do entorno e animais abandonados. A presença deles exemplifica bem a diversidade e os desafios de integração enfrentados pela universidade, tornando-a um microcosmo onde se podem observar as complexas interações entre diferentes formas de vida.

IHU – Quais as diferenças no manejo e cuidado de animais domésticos e selvagens nas universidades?

João Carlos de Aquino Almeida – Os animais domésticos, como cães e gatos, geralmente dependem diretamente dos cuidados humanos para sobreviver, necessitando de alimentação, abrigo e cuidados veterinários. Eles evoluíram juntamente com a nossa espécie e, atualmente, não possuem um ambiente natural exclusivo longe do convívio com os humanos. Manter essa convivência social é importante, pois a falta dela pode levar esses animais a adotarem comportamentos ferais, o que não é desejável, pois podem atacar animais silvestres e humanos.

As universidades precisam implementar programas de manejo ético para melhorar a qualidade de vida dos animais comunitários, controlando suas populações e promovendo adoções responsáveis, para que haja um equilíbrio no convívio em geral e na preservação dos animais silvestres. Em contraste, os animais silvestres requerem uma abordagem de manejo que respeite sua natureza e seu habitat, muitas vezes focada em minimizar o impacto humano e de animais domésticos para garantir sua conservação. Esses animais incluem espécies que vivem próximas aos ambientes urbanos, como corujas, gambás, bem-te-vis, quero-queros e outras comuns na região.

IHU – Quais são os principais desafios no cuidado e nas relações entre humanos e animais nas universidades?

João Carlos de Aquino Almeida – Os principais desafios incluem a gestão dos conflitos entre diferentes espécies, a prevenção de ataques de cães a humanos, o manejo adequado dos animais abandonados, a promoção de um ambiente seguro e saudável tanto para humanos quanto para animais, e a implementação de políticas consistentes de cuidado e bem-estar animal. Mas falando assim parece que é simples, que os problemas são os mesmos em todos os lugares e situações e que, na verdade, nós podemos criar um manual que traga respostas objetivas para cada situação. Bom, isso infelizmente não existe e é por isso que temos que lançar mão das ferramentas da bioética, que aplica conceitos éticos de maneira objetiva na solução de problemas, ou dilemas, como chamamos, sempre com o propósito de preservar a vida em última instância.

IHU – Por que é importante pensarmos sobre essas interações entre humanos e animais?

João Carlos de Aquino Almeida – Pensar sobre essas interações é crucial para promover um ambiente acadêmico mais compassivo, ético e sustentável. A presença de animais nas universidades enriquece a experiência universitária, levantando questões éticas importantes sobre o tratamento que dispensamos aos animais. Isso é fundamental também para a formação dos estudantes. Imagine um estudante de biologia ou veterinária que não tem a oportunidade de desenvolver um senso ético em relação aos animais que habitam o mundo ao seu redor. Isso vai além de apenas estudar leis que tratam da ética profissional. Essas interações podem e devem ser realizadas no contexto de ações de extensão e de pesquisa, contribuindo para a formação dos alunos. Além disso, a biofilia, conceito que descreve nossa necessidade inata de estar em contato com a natureza e outras formas de vida, reforça a importância dessas interações para todos os membros da comunidade. Estar em contato com animais e a natureza contribui significativamente para a nossa saúde mental e física, promovendo um senso de bem-estar e conexão com o mundo natural.

IHU – O que a bioética oferece em termos de repertório para lidarmos com essa biodiversidade no ambiente universitário?

João Carlos de Aquino Almeida – A bioética funciona mais ou menos como a caixa de ferramentas do mecânico. O professor Volnei Garrafa, um grande bioeticista brasileiro, diz que não existe uma bioética, mas bioéticas, ou seja, diferentes ferramentas que vamos escolher de acordo com o contexto que vamos investigar. Temos a bioética principialista, muito comum quando lidamos com questões de saúde, com seus princípios de beneficência, não maleficência, autonomia e equidade, que foca mais na relação médico/paciente. Temos a bioética utilitarista, que tem um enfoque mais coletivo, de causar o maior benefício ao maior número de indivíduos, só para citar duas delas, que vamos utilizar de acordo com a situação com que nos defrontamos. E podemos até utilizar mais de uma delas, assim como um mecânico pode utilizar mais de uma ferramenta para consertar um carro.

Os problemas, ou dilemas bioéticos, são o nosso carro, mas muitas vezes não há um conserto definitivo, e temos que ver qual ferramenta vamos utilizando à medida que os problemas aparecem. É lógico que os dilemas bioéticos são muito mais complexos do que o conserto de um carro, porque lidam com visões de mundo, crenças, princípios e valores morais dos indivíduos, conceitos éticos e legais em situações que sempre vão se modificando. Por isso, não há receitas prontas, não há manuais de como fazer, muitas vezes não há nem uma solução possível que seja um consenso, mas as pessoas podem aprender a ser capazes de negociar soluções que sejam as melhores, mesmo que momentaneamente, na resolução de conflitos. Então a visão bioética se constrói a partir de um treinamento, que se afina com a prática constante, a fim de se formar um profissional, ou um cidadão, que seja capaz de pensar criticamente e utilizar a bioética na resolução de conflitos.

IHU – Como o bem-estar animal e o direito animal se tornaram campos de conhecimento essenciais no debate público nas últimas décadas?

João Carlos de Aquino Almeida – O bem-estar animal e o direito animal têm se tornado campos de conhecimento essenciais devido ao crescente reconhecimento dos direitos dos animais e à importância de sua proteção. No Brasil, a Constituição Federal, no artigo 225, §1º, inciso VII, que trata do direito a vivermos em um ambiente ecologicamente equilibrado, e a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) são exemplos de legislações que tipificam o crime de maus-tratos e estabelecem a dignidade animal. Movimentos de proteção animal têm sido fortalecidos por normatizações legais e pela perspectiva bioética, promovendo a superação do especismo e garantindo que os animais não sejam tratados como propriedade, mas como seres com autonomia e valor intrínseco.

Esse reconhecimento tem impulsionado debates públicos e políticas de proteção animal. No nosso caso em particular, percebemos que a falta desse conhecimento muitas vezes gera ações e atitudes de pessoas que, hoje, podem ser considerados como crimes de maus-tratos e, por isso, na nossa prática sentimos a necessidade de municiar as pessoas com este tipo de informação previamente, para que elas possam ter elementos que as capacitem a ter uma melhor participação no debate bioético.

IHU – O que é a comunicação não violenta e como ela contribui nesse processo de socialização entre humanos e animais?

João Carlos de Aquino Almeida – A comunicação não violenta, desenvolvida pelo psicólogo Marshall Rosenberg, é um método que busca promover a empatia e a compreensão mútuas através de uma abordagem pacífica e respeitosa. Baseia-se em quatro componentes principais: observação sem julgamento, expressão dos sentimentos, identificação das necessidades subjacentes e formulação de pedidos claros. Essa metodologia ajuda a criar um ambiente de diálogo onde as necessidades de todos os envolvidos são consideradas e respeitadas. Ela contribui para o processo de socialização ao promover interações baseadas no respeito e na consideração das necessidades de ambos os lados.

Isso equivale a dizer que nesse tipo de debate acolhemos as opiniões de quem gosta e de quem não gosta de animais, acolhemos as percepções individuais, crenças e conceitos, sem barreiras, visando à promoção do diálogo e do debate produtivo. Isso pode facilitar a resolução de conflitos em vários cenários e, no caso específico, associado à visão bioética, a metodologia nos ajuda na busca por soluções e na criação de um ambiente harmonioso e seguro para todos os seres envolvidos.

IHU – Do que fala o livro “Viver em harmonia: sobre o convívio de humanos e não-humanos nas universidades” e como ele nos oferece horizontes para pensar todas estas dimensões?

João Carlos de Aquino Almeida – A proposta inicial do livro foi testar a metodologia de criação de espaços deliberativos virtuais em um ambiente determinado para a resolução de dilemas. Essa metodologia, que já tinha sido aplicada noutras situações, no ensino médio e fundamental, com públicos mais homogêneos em termos de conhecimento, valores e percepções, foi testado no ambiente da academia, com um tema bastante polêmico que foi a questão dos animais comunitários na universidade.

Nesse processo, além da construção das oficinas e espaços de discussão, vimos que era necessário fazer um trabalho mais amplo, aquilo que chamamos de uma intervenção bioética, que vai muito além da realização das oficinas para discussão dos problemas e construção de consensos, ou algo próximo a isso. Acabamos percebendo que, para que o que foi deliberado tivesse chance de ser efetivado, precisaríamos realizar um trabalho mais amplo, primeiro fornecendo informações científicas, jurídicas e bioéticas, capacitando as pessoas a participarem efetivamente do processo deliberativo, e, como disse, isso não está nos manuais e livros; é uma prática reflexiva e de ações que tem que ser ensinada continuamente, é o “pensar bioético”.

Digo “continuamente”, pois os problemas mudam, as situações mudam, as pessoas são diferentes, entram e saem do cenário ao longo do processo. Os canais de deliberação não só precisam ser criados, como precisam ser tornados permanentes também. A capacitação das pessoas deve ser constante; devem ser criadas também estruturas dentro da organização funcional, no caso da universidade, para que se chegue a resoluções bioéticas e para que elas possam ser efetivadas, em um processo que denominamos de intervenção bioética.

Então esse livro é sobre isso. Ele não diz quais atitudes tomar em situações nas quais tenhamos conflitos com animais na universidade, mas acaba sendo um manual sobre como realizar uma intervenção bioética em qualquer espaço de coabitação e convivência a fim de analisar dilemas bioéticos. Em especial, porque foi o nosso modelo, mas não exclusivamente, com relação ao convívio entre animais humanos e não humanos no campus universitário.

Nesse sentido, ele traz ainda informações valiosas com relação à questão animalitária, graças à contribuição de vários colegas com suas ideias vindas de diferentes campos do conhecimento. Desde o direito animal, a bioética ambiental, a substituição de modelos animais no ensino, o manejo de animais errantes em unidades de conservação ambiental e, claro, a análise dos dilemas com que nos deparamos e caminhos para as suas resoluções dentro do contexto estudado, o que serve de exemplo metodológico para a resolução de outros conflitos.

IHU – Deseja acrescentar algo?

João Carlos de Aquino Almeida – Eu gostaria apenas de agradecer ao IHU pela oportunidade de falarmos sobre o nosso livro, que acreditamos ser uma iniciativa que visa promover um convívio melhor entre todos os seres, o que é importante para uma vida melhor e mesmo para o nosso futuro como espécie, e a todos os colegas que contribuíram para a construção desse livro. Obrigado! 

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