O governo Lula está à mercê da direita. Entrevista especial com Rudá Ricci

Para o pesquisador e analista político, o atual governo não enfrenta as grandes questões do século e está totalmente cooptado pelo Congresso, a julgar por suas propostas e decisões

Lula com ministros e líderes do Congresso Nacional | Foto: Ricardo Stuckert / PR

Por: Baleia Comunicação | 17 Junho 2024

O governo Lula III viveu na última semana aquele que talvez tenha sido a pior desde a posse, em janeiro de 2023. Ainda que a crise deste período estivesse contratada, considerando que seria previsível que Arthur Lira jogasse duro nos últimos meses de seu mandato, foi o próprio Executivo Federal que teceu a rede em que enredou. A greve dos professores das universidades e dos institutos federais revelou de forma cristalina as contradições da atual gestão.

“Eu queria só entender o que o governo acha que fez de diferente com o movimento sindical em relação aos professores, porque eu vejo o mesmo tom. No período de avanço da extrema-direita no governo, o PT recuou, os professores também, porque iam perder o emprego, iam ser presos”, pondera Rudá Ricci, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Quando se observam as escolhas feitas pelo governo Lula III, fica claro que, para além do discurso, a escolha não são os mais pobres. “O governo fez uma opção e não é a área social, mas o mercado, principalmente o mercado financeiro, cambial, não é nenhum setor produtivo. Esse governo é o pior dos três governos Lula, é o mais desorientado e é o mais alinhado à direita”, problematiza.

O desafio diante de tantas contradições está em fazer o governo perceber seus erros e sair de uma zona restrita ao discurso e avançar pragmaticamente. “Não estou dizendo que precisamos ser contra o governo, estou dizendo que precisamos ter uma leitura clara do que estamos fazendo e vivendo. Porque o Lula, no início da gestão no ano passado, disse, em vários encontros de movimentos sociais, que os movimentos sociais tinham que pressioná-lo, porque a direita pressionava. Os movimentos estão pressionando e ele não muda nada. Então, aquilo era só discurso”, reitera Ricci. “O governo foi capturado pela direita e pelo Congresso; ele não está negociando, ele foi capturado, está à mercê. E a sociedade brasileira precisa reagir, até para recuperar o antigo Lula, porque esse Lula está capturado pela direita – é isso que estou dizendo”, complementa.

Rudá Ricci (Foto: Ricardo Machado | IHU)

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. É autor de Terra de ninguém (Unicamp, 1999), Dicionário da gestão democrática (Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A participação em São Paulo (Unesp, 2004), entre outros.

Confira a entrevista.

IHU – A eleição de Lula no último pleito contou com amplo apoio dos profissionais da educação, especialmente docentes das Universidades e dos Institutos Federais. Diante dos impasses colocados pela greve federal, é possível afirmar que o governo virou as costas para a categoria?

Rudá Ricci – Claro. É evidente. E ele vai pagar caro por isso. Aliás, o governo estimulou uma disputa nas representações sindicais nesse período. Por exemplo, para falamos em relação aos professores universitários, o Sindicato de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico Proifes e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior Andes tiveram as suas negociações fragmentadas. Dirigentes do Ministério da Educação, como o [José Lopez] Feijóo, estimulou ainda mais um ataque ao Andes, dizendo que havia interesse partidário radicalizado. A mesma coisa com relação ao setor administrativo da educação, que os técnicos também estavam em greve e estavam pedindo um reajuste que não tinham há seis anos.

Esse pessoal que está no governo começou a estimular nas redes sociais que os professores são uma elite, que estão cuspindo no prato, que não merecem reajuste e questionando por que razão não fizeram greve durante o período do Bolsonaro. Eu queria entender o que o PT fez durante o governo Bolsonaro, se ele avançou como ele está falando que o movimento sindical tinha que avançar, se o PT convocou manifestação ou se recuou a ponto de se aliar à direita, como é o caso do Arthur Lira. Eu queria só entender o que o governo acha que fez de diferente com o movimento sindical em relação aos professores, porque eu vejo o mesmo tom. No período de avanço da extrema-direita no governo, o PT recuou, os professores também, porque iam perder o emprego, iam ser presos.

Há uma maldade nessa condução da informação do governo em relação à greve junto à grande imprensa. Há uma maldade que eu nunca vi antes, em governos de centro-esquerda no Brasil, é algo inédito, difícil de explicar.

IHU – Como compreender a postura, no mínimo paradoxal, de ministros que são professores – Camilo Santana (Educação), Fernando Haddad (Fazenda), Esther Dweck (Gestão e Inovação) –, aparentemente insensíveis à pauta dos docentes em greve das Universidades e dos Institutos Federais?

Rudá Ricci – Esses ministros, em especial Camilo Santana e o Haddad, são políticos liberais de centro e centro-direita no que diz respeito à política educacional. O Haddad, quando foi ministro da Educação, a despeito da propaganda feita, liderou um retrocesso imenso na educação brasileira. Eu vou citar o retrocesso – inclusive debati com ele naquele período.

O primeiro, e, talvez, mais importante retrocesso, é que ele vinculou toda a educação brasileira às avaliações externas. Quanto à educação básica relativa ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – Ideb e ao Exame Nacional do Ensino Médio – Enem; ele transformou o Enem. Em relação ao ensino universitário, ele trouxe o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – Enade.

Essas avaliações são quantitativas, focadas em metas governamentais que não se preocupam em nada com a identidade do aluno. Ou seja, tudo aquilo o PT sempre pregou na educação, baseado em Paulo Freire, o Haddad destruiu. Não é que ele articulou ou somou, na verdade ele destruiu a política educacional que era tradição do PT.

A diferença básica é que quando se pensa em educação humanística, a preocupação está voltada para a situação de vida e os conhecimentos prévios dos alunos. Por exemplo, o aluno que passa fome: não adianta imaginar que terá um Ideb alto porque isso é um ponto fora da curva; aluno que sofre bullying, violência ou tem problema de saúde mental na família, o impacto é direto. Isso tudo que estou falando é resultado de pesquisas de, pelo menos, cinquenta anos na área educacional, da psicologia e da neurologia. O Haddad simplesmente abandonou esse debate. E na virada o século XX para o XXI o Brasil discutia e avançava muito aceleradamente.

Lembro que as reformas educacionais estaduais, por exemplo, de Minas Gerais, de São Paulo com a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENPE, do Rio Grande do Sul nas redes municipais, todas essas reformas adotaram concepções latinas de educação, como as reformas da Espanha, de Portugal e assim por diante. O ministro Haddad destruiu isso e trouxe a concepção administrativista dos Estados Unidos.

Para não me delongar mais, essa concepção foi rejeitada nos EUA, gerou um fracasso total do ponto de vista pedagógico. Há um livro publicado no Brasil, da principal orientadora dessa política dos EUA, do Ideb com premiação de notas por escola, que é Diane Ravitch. Ela publicou um livro [Vida e morte do grande sistema escolar americano (Sulina, 2011)] no Brasil dizendo o que foi esse fracasso, detalhando-o. Ela diz que o grande problema das avaliações externas é que os professores são obrigados a ensinar truques para os alunos ficarem experts em testes, mas eles não desenvolvem a inteligência. Pelo contrário, inteligência significa a capacidade de tomar decisão – a expressão vem do latim. Ela diz com todas as letras: nós erramos. Mas o Haddad trouxe essa concepção.

O Camilo Santana, por sua vez, é vinculado à maior empresa que vem investindo para capturar fundos públicos da educação brasileira, que é a Fundação Lemann, que tem a concepção mais atrasada da educação da América inteira. Então, não tem como achar, porque é um governo Lula, que os ministros, porque foram da Educação, terão têm uma visão avançada. Eles têm uma visão muito atrasada do ponto de vista pedagógico e gerencial, que não considera a vida do aluno, da família e do professor. Aliás, ele coloca quase sempre a culpa nos três. A culpa do Ideb estar baixo é do aluno, tem que ter aulas de reforço, do professor, que não pode ganhar nenhuma premiação, da escola. Isto é, trata-se de uma inversão básica de qualquer concepção progressista. E joga no lixo autores clássicos da concepção educacional brasileira, como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes. Estamos vivendo um atraso acelerado e gerações vão pagar por isso.

IHU – O que a postura de Lula, especialmente na reunião de 10 de junho, em relação aos grevistas e à greve das universidades, demonstra da conexão governista com a realidade concreta?

Rudá Ricci – Demonstra que o governo fez uma opção política e de classe. Veja: um ministro que é indiciado – não é que há algum tipo de dúvida, ele já está indiciado por corrupção –, e que é da direita, tem uma segunda chance no governo pelas palavras do próprio presidente Lula. E o movimento sindical não tem uma segunda chance, é colocado na parede. Então, está claro qual é a opção. Temos que ver qual é o reajuste da área educacional e qual é o reajuste que temos em outras áreas, como a policial e militares; ele já fez uma opção, não há dúvida.

O ministro Haddad acaba de falar que vai segurar o valor de reajuste do orçamento da Saúde e da Educação em 2,5%. Fizeram isto em relação ao Plano Safra para o agronegócio? Não. O governo fez uma opção de classe.

IHU – O senhor postou na rede social X (ex-Twitter) dizendo que a fala de Lula sobre a greve nas universidades radicaliza a ruptura com todo o ideário petista. O que isso significa em termos práticos?

Rudá Ricci – Significa que a atual direção petista está em uma saia justa. Lembremos que a Gleisi Hoffmann liderou uma crítica à política econômica no começo do ano e foi calada pelo ex-ministro José Dirceu. E significa, portanto, que o governo Lula e o lulismo vão tentar derrubar essa ala, mesmo sendo da corrente majoritária que dirige o PT. Eles vão colocar alguém que é muito mais afeito e maleável às opções do governo federal; eu não tenho dúvida. Esse é o processo interno que muitas vezes a imprensa não vê, mas quem está nos bastidores enxerga.

IHU – Em 2013, Haddad era prefeito de São Paulo quando autorizou o aumento das passagens do transporte municipal em R$ 0,20, o que acabou desencadeando o movimento estudantil – Passe Livre – com uma força avassaladora. À época, ele ignorou os insatisfeitos e os resultados foram as chamadas “Jornadas de Junho”. O Haddad de 2024 está repetindo o Haddad de 2013 ao ignorar a questão da greve docente federal? É possível prever as consequências?

Rudá Ricci – Prever não; na política e na sociologia não fazemos previsão. O que dá para aprender com o passado é que, primeiro, o Haddad não mudou em nada e não aprendeu com 2013. E, em segundo lugar, o que aconteceu na quarta-feira, que foi uma mobilização à noite das mulheres contra o PL do Estupro [PL 1.904/2024] em várias capitais, como Brasília e São Paulo, pode sugerir – não que o que aconteceu em 2013 se repita – que o clima de revolta com o avanço de uma leitura e uma política de direita no Brasil mudou; é uma novidade.

Eu já fui governo, inclusive governo do PT, e posso dizer claramente que, se acontecesse algo dessa natureza naquela época, haveria uma reunião de secretariado, indicando que algo estaria errado. Lembrando que o Haddad não se reelegeu prefeito de São Paulo por causa dessas posturas e perdeu voto na periferia; ele não perdeu voto da classe média, mas da periferia paulistana.

A grande questão é o que é um governante que aprende com a vida e com a relação dos governos com as demandas sociais, e o que é um governo que impõe o que ele pensa independentemente das relações adversas. Essa é a questão que está posta para nós.

IHU – Em que sentido o arcabouço fiscal de Haddad mantém o paradigma de subserviência ao financismo e se configura em uma versão “palatável” do teto de gastos aprovado no governo Temer? Em que sentido avança socialmente?

Rudá Ricci – Não tem avanço nenhum em relação ao teto de gastos. Inclusive, o ministro Haddad está ultimamente pautando suas falas pelo valor do dólar, pelo câmbio; a imprensa está divulgando.

Vou ser sincero, eu tenho muita experiência, porque comecei a militar na política com 15 anos e tenho mais de 40 anos de experiência política como dirigente/militante ou como analista político. Essa coisa do Lula falar e o dólar baixar, o Haddad falar e subir, isso tem a ver com instrução de alguém do governo em relação aos editores de economia dos grandes jornais – pode ter certeza –; isso não é espontâneo, é uma articulação.

IHU – Fernando Haddad anunciou que irá propor a Lula a vinculação (ou limitação) do orçamento da Saúde e da Educação ao arcabouço fiscal. O que esse tipo de proposta ilustra sobre a orientação política e econômica do governo?

Rudá Ricci – O governo fez uma opção e não é a área social, mas o mercado, principalmente o mercado financeiro, cambial, não é nenhum setor produtivo. Esse governo é o pior dos três governos Lula, é o mais desorientado e é o mais alinhado à direita. E, não tem nada a ver com o cerco da direita, com uma tentativa de cooptação do Congresso. É exatamente o inverso: o Congresso cooptou esse governo. Ou começamos a ter clareza do que está acontecendo ou vamos ficar nos enganando. Não estou dizendo que precisamos ser contra o governo, estou dizendo que precisamos ter uma leitura clara do que estamos fazendo e vivendo. Porque o Lula, no início da gestão no ano passado, disse, em vários encontros de movimentos sociais, que os movimentos sociais tinham que pressioná-lo, porque a direita pressionava. Os movimentos estão pressionando e ele não muda nada. Então, aquilo era só discurso.

IHU – Um outro tema que correlaciona a dimensão econômica e ambiental é a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, em que Lula afirmou que “não podemos perder a oportunidade”. Em que sentido o governo se mostra, na prática, contrário à urgente transição energética?

Rudá Ricci – É mais uma contradição no discurso, porque na prática não há. O que eu queria entender são os discursos que o presidente Lula fez em todas as viagens, principalmente na Europa ano passado, sobre a questão da transição ecológica e o que ele falou agora sobre a Amazônia [a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas]. Mais do que isso, eu gostaria de saber claramente se essa é a posição da ministra Marina Silva ou da ministra Sonia Guajajara. Ou quero ouvir até a equipe do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Eu conheço esses ministros, de longa data, eles nunca falaram algo parecido com isso.

A novidade é um governo Lula falar isso. É algo estarrecedor. Mais um dado do que o Lula está oferecendo para entendermos por onde vai esse governo, é impossível; é absolutamente nítida a opção que o governo fez. O governo Lula não tem nada a ver com as grandes questões de transformação do século XXI.

IHU – O governo federal organizou o leilão de importação do arroz para garantir o preço do produto. Apesar de ainda não ter estimado as perdas, o setor agrícola gaúcho garante que há estoque para abastecer o mercado nacional. O que significa o gesto do governo?

Rudá Ricci – Essa, talvez, tenha sido a situação mais vexatória do governo nessas últimas semanas. Ele faz um anúncio que levou muita gente a entender que os arrozeiros estavam especulando com a tragédia do Rio Grande do Sul. O governo então anuncia uma política coerente com essa interpretação, anuncia a importação de arroz, o que também deixou quem é da área, como eu, um pouco preocupado. Porque quando há estoque regulador, no caso de arroz, não é necessário importar muito, mas o governo anunciou uma importação altíssima de arroz.

E, no meio do caminho, ficamos sabendo que dentro do Ministério também tinha gente trabalhando em cima da tragédia para favorecimento próprio. É algo estarrecedor, porque não bate com que o governo central fala e a ação concreta dos operadores do ministério. É uma das situações mais vexatórias de um governo que eu vi nos últimos tempos e o governo não explicou, não puniu exemplarmente. Ele simplesmente cancelou e mandou fazer outro processo licitatório para a compra de arroz, agora com a participação da Controladoria-Geral da União e do Ministério Público. Por que não fez antes?

Isso é o que me leva a crer que o governo foi capturado pela direita e pelo Congresso; ele não está negociando, ele foi capturado, está à mercê. E a sociedade brasileira precisa reagir, até para recuperar o antigo Lula, porque esse Lula está capturado pela direita – é isso que estou dizendo.

IHU – A urgência do PL que criminaliza as vítimas de estupro, com penas maiores que a dos estupradores, é uma espécie de rifa da saúde de mulheres e meninas por barganha política?

Rudá Ricci – Isso não tem barganha nenhuma. A direita, porque isso não foi a extrema-direita, liderada pelo Arthur Lira, percebeu a conjuntura – tudo isso que estou falando – e decidiu ir para cima da sociedade brasileira e empurrar ainda mais o Brasil para a direita, para o ultraconservadorismo, para o fim da humanismo; é uma disputa de valor, é uma imposição por uma lei de um valor que não é nem conservador. Os conservadores nunca foram imorais, e essa proposta do PL do Estupro é absolutamente imoral, desumana. O que aconteceu foi que a direita – e não foi a extrema-direita, mas é claro que acompanha – liderou uma tentativa de golpe cultural dos valores da sociedade brasileira na surdina, tanto que a votação da urgência da decisão sobre a PL na pauta, quase nenhum deputado entendeu, foi uma manobra da mesa. Não foi da extrema-direita, foi do Arthur Lira. É bom que a gente entenda qual é a disputa que está acontecendo. Por isso que eu digo: o governo Lula está capturado pela direita; ele não está negociando com a direita.

Leia mais