O pesquisador faz uma ampla abordagem da dimensão mística na cultura, cruzando autores, correntes literárias e as complexidades de um fenômeno, que, segundo o entrevistado, não deve ser reduzido à espiritualidade
Para o professor e pesquisador Eduardo Losso, não é frutífero chamar escritores modernos de místicos, o que se aplica, inclusive, a Clarice Lispector. “Como falei, não interessa chamar Clarice de mística. Por outro lado, o que não falta em sua obra são momentos de experiência mística e elucubrações que muito devem ao pensamento místico”, afirma Losso em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Por isso, devemos dizer que nem Clarice nem tais teóricos são místicos. Eles produzem, contudo, aquilo que chamo de diferentes modalidades de secularização da mística.
A vivência da experiência mística na cultura pode, portanto, emergir de eventos cotidianos que suspendem a ordem “natural” das coisas cujos eventos abundam na obra de Clarice Lispector. “Elevadas experiências místicas podem vir de um certo tipo de assombração que os pobres produzem nos ricos, que os animais podem produzir em uma família de classe média, a ponto de se comer uma barata, que, como diz Viveiros de Castro, está em ligação direta com a empregada? Empregada e Macabéa são ‘a mosca na sua sopa’?”, complementa.
“Uma das questões mais radicais que a teoria da mística pode suscitar para o debate epistemológico atual é justamente como vamos reformular nosso olhar ético, estético e cosmológico diante de espiritualidades ameríndias e afro-brasileiras”, pontua Losso. “Xamãs como Davi Kopenawa, mães e pais de santos de terreiros e novas Clarices estão lendo o livro do mundo a todo momento, do seu jeito. Não é o meu caso. Meu deleite é o de ler a leitura deles: sua literatura”, complementa.
Eduardo Losso (Foto: Arquivo Pessoal)
Eduardo Guerreiro Brito Losso é professor adjunto de Teoria da Literatura do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e coeditor da Revista Terceira Margem, do PPG-CL da UFRJ. É graduado em Letras, mestre e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ, com estágio na Universität Leipzig, Alemanha. Entre os livros que organizou, destacamos Diferencia minoritaria en Latinoamérica (Georg Olms, 2008), O carnaval carioca de Mário de Andrade (Azougue, 2011) e Música Chama (Circuito, 2016). Ainda é autor de Renato Rezende por Eduardo Guerreiro B. Losso (EdUERJ, 2014).
IHU On-Line – Como você compreende a mística?
Eduardo Losso – Não tomo a palavra “mística” a partir de um sentido dado. Ao longo do tempo, achei mais instigante entender qual o desejo que o termo instiga nos que se fascinam por ela e qual a repulsa que ela provoca nos que a evitam com o mesmo fervor. Resolvi não aderir nem a um nem a outro e observar de longe a carga de tensão do conceito em muitas discussões públicas e acadêmicas.
A princípio, a palavra é utilizada pelo senso comum como algo da ordem do sobrenatural, da revelação divina, a promessa de felicidade da Nova Era. Em círculos religiosos e teológicos, é a irrupção da presença de Deus que alguém pode experimentar, para quem foi concedido um estado de graça ou que alcançou tal estado após muito esforço ascético. Para quem se enamora desse tipo de círculo (esotérico e religioso, cristão ou oriental), a noção tem um brilho esfuziante: é a finalidade da existência, o cimo da realidade.
Já para uma mentalidade acadêmica laica, muito calcada no uso que iluministas e marxistas fizeram desse campo semântico (mistério, fetiche, dogma), a palavra remete a noções de crendice, superstição e fanatismo. Percebe-se que na diferença de uso das duas acepções já se inscreve um abismo ideológico. Para quem de um lado ouve a palavra, ela é sinônimo de embevecimento, do outro lado, ela é sinônimo de alienação.
O que observei, ao longo dos anos, é que ambos lados geralmente não conseguem sair de seus preconceitos. O primeiro se apega ao imperativo de encantamento, o segundo se aferra ao imperativo de desencantamento. Nenhum deles remonta à história tanto do conceito quanto da palavra, que está intrinsecamente ligada à história da poesia, da filosofia, da religião, da ideia do Ocidente e do Oriente e mesmo de como se vê povos africanos e ameríndios; em suma, nenhum dos dois pensa em termos de genealogia da cultura. E se quisermos entender algo das implicações dos usos e conceitos, dos efeitos de consenso e dissenso, é preciso pensar em termos históricos.
Há uma trajetória etimológica que vale a pena remontar. O verbo grego muo inicialmente significava cerrar lábios ou olhos. O sentido geral de obstruir o que se vê ou se diz passou para a acepção de segredar, que impregnou o adjetivo mystikos, referente aos mistérios antigos e à obrigação de manter segredo de seus rituais e ensinamentos. Se um mistério como Eleusis (cidade grega) iniciava uma massa grande de pessoas (milhares) num longo trajeto geográfico percorrido de Atenas até essa região, com ingestão de um alucinógeno, um mistério como o dionisismo já implicava a prática orgíaca e omofágica. Porém, o mistério mais significativo para o desdobrar da história da palavra está no orfismo, que inaugurou a crença na alma imortal e a prática de purificação (por meio de vegetarianismo e meditação) para uma vida pós-morte bem-aventurada. Nele, o par mística e ascese já se dá numa ligação indissociável, com fortes consequências antropológicas.
Com Fílon de Alexandria (c. 20 a.C.-50 d.C.), primeiro grande filósofo a convergir a escritura judaica com a filosofia grega, introduz-se o projeto de uma interpretação alegórica da Bíblia. Tal prática exegética foi transmitida para a tradição cristã nascente, iniciada por Clemente de Alexandria (c. 150-215 d.C.) e Orígenes (c. 184-253 d.C.), que estabeleceu o uso da palavra diretamente ligado à exegese alegórica, isto é, trata-se do sentido oculto, superior, espiritual, para além do significado literal das passagens da Escritura. Percebe-se que a ideia de ocultamento do segredo dos mistérios deu lugar ao desocultamento exegético do texto sagrado. A reviravolta alternante entre o oculto e o revelado é comum nas práticas místicas: o escondido existe para ser revelado, o revelado existe para ser escondido. Com o passar do tempo, o exercício constante de criatividade e imaginação próprio da decifração exegética alegórica foi produzindo um código de símbolos, especialmente naqueles ligados aos rituais de batismo e eucaristia. A conotação espiritual impelia sempre para a formulação de sistemas simbólicos.
Contudo, apenas no século XVII o adjetivo se transformou em substantivo, com a noção de estado alterado de consciência adquirido por êxtase ou a consecução de uma verdade velada que transforma completamente a vida. Michel de Certeau, que analisa em detalhe o processo de estabelecimento desse sentido, mostra que ele estava ligado à proposta de formação de uma nova disciplina que identificasse textos teológicos de autores contemplativos com vistas a examinar e desenvolver a prática espiritual. Tal identificação era também uma forma de separação (bem artificial) da mística de outras áreas da teologia e do conhecimento em geral. Como o Ocidente criou, de um lado, uma enorme tensão entre o desenvolvimento de disciplinas dentro de academias, universidades e mesmo dentro da Igreja e, de outro, o anseio contemplativo e espiritual, tanto a universidade quanto a Igreja foram repudiando qualquer tentativa de pensar e escrever que contivesse entusiasmo místico. Se o século XVII foi o momento em que o substantivo ‘mística’ apareceu, para engavetar tipos espirituais e entusiasmados (ao carimbar o selo do que é demoníaco e do que é santo), foi finalmente também o momento de expropriação da aura ainda mística de pré-ciências e filosofias diversas.
Não é à toa que a ideia de “Ocidente” está ligada a racionalidade, sensatez, realismo e cientificidade e “Oriente” ou “primitivismo” estão ligadas a intuição, contemplação, iniciação, ritual, ascese, superstição e espiritualidade. É como se o Ocidente não fosse formado e desenvolvido por diversos elementos místicos e como se não houvesse cientificidade e filosofia séria no Oriente. Há uma longa história sobre isso estudada por vários scholars, cito especialmente o importante trabalho de Wouter Hanegraaff como exemplo.
Com o tempo, inclusive, a palavra mística ficou mais associada a religiões orientais do que ao cristianismo, como se ela não tivesse sido gestada e longamente desenvolvida dentro de discussões e práticas tipicamente teológicas. Associar “mística” a “Oriente” é uma das maiores falácias do senso comum em relação à mística.
Do mesmo modo, há o que podemos chamar de senso comum acadêmico, que reproduz o descarte sistemático de traços místicos e espirituais em qualquer coisa que possa ser estudada como interessante. Tal repúdio é vastamente praticado como resguardo de seriedade científica mas não conhece nada, inclusive academicamente falando, do assunto. Não faz ideia de que existe toda uma teoria da mística, composta por filósofos como William James, Henri Bergson, Walter Terence Stace , o brasileiro Henrique de Lima Vaz, psicólogos como Joseph Maréchal e Carl Jung, psicanalistas como Sudhir Kakar, William B. Parsons, Guy Rosolato, Catherine Millot; historiadores como Robert Charles Zaehner, Evelyn Underhill, Mircea Eliade; teólogos como Karl Rahner, Paul Tillich, Hans Urs von Balthasar, Thomas Merton; e teóricos mais recentes como Steven T. Katz, Robert K. C. Forman, Julia Kristeva, Catherine Clément e Michel de Certeau. Merecem especial destaque os historiadores específicos, tanto clássicos como Henri Bremond quanto os mais recentes como Jacques Le Brun, Kurt Ruh e Bernard McGinn, cujas obras monumentais dão uma ideia da imensa dimensão do campo, quase comparável à literatura e à filosofia. Diante de uma bibliografia de fontes, crítica e teoria tão numerosa, é espantoso que o desejo de estudar, por exemplo, o simbolismo do tarô, relações entre literatura e esoterismo, arte e teologia, filosofia e hermetismo coloque pesquisadores sob suspeita, imputa-lhes uma marca de ingenuidade sem sequer examinar o tipo de abordagem e metodologia.
Quando setores da universidade abolem qualquer possibilidade de estudo no campo culturalmente considerado espiritual, ou desautorizam todas as possibilidades de examinar o elemento espiritual em objetos que possam ter essa dimensão simplesmente porque atribuem em qualquer intenção desse tipo um sinal de cegueira, mania, devoção, loucura, fixação, carolice, não percebem que tal elemento reprimido dentro do campus vai certamente, inequivocamente, surgir fora dele da pior forma.
Quando pressupostos esotéricos surgem no topo de cargos políticos e instituições governamentais, isso pode ser entendido como confirmação de que esse tipo de coisa é perigosa. Já eu considero que o banimento de estudo sério sobre tal campo cultural é que, em grande parte, fomenta o perigo que tais práticas possam conter. Só lhes resta prosperar fora do mundo esclarecido mesmo, afinal. É justamente porque laicos veem em termos como “espiritualidade” e “mística” somente crendice que órgãos governamentais passam a ser comandados por adeptos de “Jesus coach”. A “turba” evangélica está aí para invadir sua praia. Quanto mais o acadêmico laico repele a religião, mais o tsunami da religião se alastra pela sociedade.
Parece normal que assuntos religiosos sejam estudados por religiosos e assuntos laicos sejam estudados por laicos, sem aproximação nem mistura. Cada um com seu cada um, ninguém se toca nem se contamina. Quando por acaso um se encontra próximo do outro, usa a máscara do preconceito já bem calcificado. O meu trabalho é justamente bagunçar esse coreto de estereótipos: sou um materialista ateu que mantém sempre um alto grau de interesse por assuntos religiosos, especialmente pela mística.
Não defendo “a mística” (a palavra significa muita coisa e, de fato, há muita crendice e fanatismo em muitos lugares), mas defendo o estudo da mística (para, inclusive, praticar a negação determinada da crítica, que vem de krinein, isto é, distinguir). Estudar a mística é, inevitavelmente, desmistificá-la, ao dar a ela a dignidade de ser examinada publicamente, em vez de estimulá-la a permanecer secreta e esotérica em certos círculos e atraente e sedutora no meio midiático e editorial, sem a acurácia acadêmica que inegavelmente merece.
IHU On-Line – De que forma a mística emerge contemporaneamente em contextos secularizados como, por exemplo, na literatura de ficção?
Eduardo Losso – Do século IV ao século XII o modo de vida predominante de leitores e escritores é o de monges. Dos padres do deserto, como o arquetípico eremita Santo Antão, à fundação e estabelecimento das ordens monásticas e à construção de mosteiros por toda a Europa, houve a longa elaboração de um modo de vida ascético que combatia vícios e aprimorava virtudes. O lugar de desenvolvimento espiritual e contemplativo passou a ser visto como “fora do mundo”.
No entanto, aquilo que podemos chamar de literatura mística medieval surgiu com maior intensidade no século XIII, com o despontar de mulheres, freiras ou beguinas, que passaram a falar ou escrever sobre sua busca espiritual e seus êxtases e visões. Um dos fatores que deveriam interessar estudiosos de literatura, especificamente as feministas, é o fato de que não há literatura e teologia mística, a partir daí, sem a marca determinante da escrita feminina. Inclusive, pode-se caracterizar uma obra como “literatura”, outra como “teologia”, mas a fronteira entre as áreas não está nada clara e é justamente isso que dá aos textos de Hadewijch de Antuérpia (c. 1200-1260), Matilde de Magdeburg (1207-1282) e Marguerite Porete (1250-1310) seu caráter deliciosamente poético e reflexivo.
A laicização da mística não ocorreu, nesse caso, na modernidade, ocorreu já no século XIII com o advento das beguinas, isto é, já no despontar da mística propriamente dita, em contraposição a um peso maior da ascese, na literatura monástica. Elas não só desenvolveram um pensamento fora da Igreja, não mais restrito a mosteiros isolados, como criaram uma série de imanentizações de promessas religiosas na vida cotidiana e urbana, própria daquilo que no tempo foi a afirmação de uma vita apostolica, isto é, contrapondo-se ao isolamento do monasticismo, busca-se uma imersão da vida espiritual no “mundo”, isto é, dentro da sociedade. Uma das principais características da literatura mística é o desenvolvimento da imanentização da redenção na existência comum. Tal ousadia teológica foi devidamente condenada por vários tipos de inquisidores – que eu e outros autores chamamos de antimísticos – práticos ou teóricos, por exemplo, pelos advogados do discernimento dos espíritos no século XIV.
Um ponto importante em termos de reformulação do cânone literário e teológico é que autoras mulheres sempre foram descartadas dos grandes nomes estabelecidos pela tradição, especialmente as mais ousadas. Marguerite Porete foi, por ter escrito um livro em defesa de uma visão de superação da ascese das virtudes, a primeira vítima documentada da inquisição. Seu livro foi censurado, ela insistiu em divulgá-lo, foi presa, recusou-se a falar com seus inquisidores e, por fim, foi queimada viva, publicamente, na Paris de 1310. A autoria do livro O espelho das almas simples e aniquiladas (Petrópolis: Vozes, 2008) só foi redescoberta em 1946, tendo sido republicada em 1965. O estabelecimento de uma scholarship da obra só ganhou força nos anos 1980 e 1990. A pesquisa descobriu que o livro foi copiosamente difundido depois de sua proibição, traduzido para outros idiomas e há quem defenda, com fortes argumentos, que influenciou Eckhart. Porém, se a condenação pode até criar um certo interesse em cópias desautorizadas, com o tempo ela triunfa no esquecimento; só filólogos e historiadores muito dedicados desencavam tais preciosidades do esquecimento e despertam nelas o interesse contemporâneo.
O que esse exemplo, retirado de uma coleção de vários outros, nos diz? Os místicos, mormente as místicas, sofreram bem mais com censura, perseguição, prisão e morte do que escritores modernos. Porete é uma das maiores pensadoras que já existiram, a carga de originalidade e de ousadia de sua obra é sui generis e, mesmo assim, em nome da manutenção da desconfiança laica contra a mística, vamos ignorar tal livro?
Se alguém quiser buscar elementos para a desconstrução do Ocidente, observe como ele tratou a sua mística e reflita no quanto o banimento da mística está ligado à racionalidade dominante. Isso não significa, evidentemente, que tudo quanto é mística deve ser defendida (insisto: não defendo místicas, defendo o estudo delas), significa somente que o imperativo do desencantamento é tão suspeito quanto o imperativo do encantamento. É preciso pensar numa suspensão crítica da oposição simples entre encantamento e desencantamento, ilusão e suspeita. Essa é uma das consequências teóricas de meu trabalho. Mas continuemos nossa trajetória pelo tempo.
Lutero (1483-1546), mais um antimístico, quando diferencia o espaço secular do religioso, toma o cuidado de descartar os “entusiasmados” do primeiro, por entrever neles o perigo de uma contaminação da racionalidade que deve reger o espaço público. O desafio que Lutero impôs à Igreja com o novo espaço social conquistado não deve ser aproveitado pelos entusiasmados. Logo, os místicos são expulsos tanto do setor público quanto do religioso, católico e protestante. A secularização retira, no seu despontar, os místicos de seu território, embora os místicos, desde as beguinas, tenham sido fundamentais para a formação da subjetividade a partir da urbanização de anseios espirituais. Desenvolvi melhor esses pontos em vários artigos, menciono este: “História da mística e modernidade do sublime”, publicado na revista Trilhas filosóficas, da UERN, em 2020.
A decorrente falta de lugar da expressão mística começou, com o tempo, a se deslocar do campo teológico para o campo estético. Místicos viraram poetas, teósofos ou estetas. É o caso de Silesius e Jakob Böhme. Depois, o nascimento da estética enquanto área da filosofia esteve intrinsecamente ligada aos pietistas alemães. Todo o pré-romantismo de Rousseau e Novalis, contrário à separação cartesiana de sujeito e objeto, celebra a sacralidade da natureza porque a filosofia natural renascentista já estabelecera um exame encantado de plantas, pedras, estrelas e animais, com a interpenetração de sujeito e objeto, regida pelas correspondências. No século XIX, Blake, Balzac, Baudelaire e Poe leram com dedicação Swedenborg , que era um “iluminado” em pleno iluminismo, e todo o pré-simbolismo (Nerval, Rimbaud, mulheres interessantíssimas como Judith Gautier) e o simbolismo (Verlaine, Mallarmé, Laforgue, Maeterlinck, Valéry, Gide, Wilde) tornaram a teoria das correspondências uma poética específica e influente. Desenvolvi melhor esses pontos no artigo “Etapas da secularização da mística na literatura moderna”, da Revista Cerrados, da UnB, e num artigo mais específico sobre Novalis, “História, analogia e natureza em Novalis”, publicado na Revista Pandaemonium Germanicum, da USP.
Mencionei diferentes manifestações artísticas e espirituais em diferentes momentos históricos. O curioso está na transformação da função: no século XIII, há uma secularização da ascese religiosa monástica; no século XVI, há uma formação do espaço público dele retirando os entusiasmados; na filosofia e poesia natural renascentista, há um deslocamento do território teológico oficial para o exame da natureza; no final do século XVIII, há uma revolta contra o iluminismo que retoma a leitura das correspondências naturais com o advento do sujeito artístico romântico, que, por sua vez, deve muito à elaboração do espaço interior da mística nupcial; no século XIX, explora-se a teoria das correspondências dentro da própria linguagem poética; no século XX, ela imerge no plano surreal do inconsciente e da escrita automática na prática da associação livre. Nota-se que já houve “secularização da mística” dentro daquilo que entendemos como a mística mais tradicional. A mística foi, desde o século XIII, um impulso decisivo de imanentização. O que ocorreu em seguida, ao longo de um vasto processo histórico, foi a passagem do ímpeto imanentista da mística para fora da teologia, sendo barrada do espaço secular recém-conquistado, porém se imiscuindo em brechas estéticas dentro dele mesmo, até o ponto de atingir a literatura moderna.
Espero que tenha ficado claro que essa apressada viagem no tempo não é feita para produzir uma linha de tradição perdida a ser reconstituída e adorada, nem mesmo uma defesa de tudo quanto é mística. Citei místicas literárias de alta qualidade estética, mas existem movimentos dogmáticos, alienantes, inclusive tendências neofascistas e seitas suicidas. Ao contrário de alguns amantes do assunto, eu não postulo que exista a mística “verdadeira” e a “falsa”. Não faço hierarquias de valor do que é bom ou não é, sobretudo, não me interessa defender esta ou aquela. Estou mais interessado em examinar o panorama histórico, que a cada dia é enriquecido por novas descobertas, e refletir sobre como os conflitos sociais esclarecem no entendimento de expressões culturais.
Um dos péssimos hábitos de leitura em alguns setores de humanidades é criar uma relação íntima de identificação entre o pesquisador e o objeto estudado, em que tudo o que se escolhe para se estudar deve ser advogado, deve ser justificado com critérios éticos de valor, que geralmente ditam os estéticos. No fundo, a defesa de seu objeto vira uma discussão moral. Em vez de se ter a liberdade de examinar minúcias do passado com a liberdade que o distanciamento temporal deveria nos dar, muitos despejam todos os seus preconceitos neles. Gosto de estudar mística, mas na disposição distensa de minha curiosidade e liberdade, não tenho nenhuma obrigação de defendê-la com base em critérios supostamente avançados mais que duvidosos.
IHU On-Line – Em que sentido podemos ler a obra de Clarice Lispector a partir de uma chave de leitura mística?
Eduardo Losso – Não prezo a ideia de ler a partir de uma “chave de leitura mística”. O tempo da exegese alegórica já passou. Em termos de noções básicas de teoria da literatura, não devemos ter chave de leitura para o texto literário, muito menos mística. Nesse sentido, é preciso desmistificar a mística das “chaves de leitura”. É o texto que dita como ele deve ser lido, não a teoria, qualquer que seja. E tudo o que não quero é ser confundido com alguém que aplica uma abordagem mística. Também não considero frutífero chamar qualquer escritor moderno de “místico”. Entrar na discussão de se Nerval, Rimbaud e Mallarmé são místicos ou não me enfastia. Não são, por diversos motivos, especialmente porque a literatura constituiu um espaço de autonomia no século XIX e ligar escritores ao campo religioso é sempre uma forma de ferir sua independência. Se os místicos tanto sofreram ao serem expulsos e excomungados de sua base tradicional institucional, os escritores tampouco podem ser associados aos místicos facilmente. A questão não é rotular o autor ou a obra de místico.
O que me interessa são, sim, traços místicos na literatura moderna. Tais traços não são elementos enevoados que podem ser vistos como místicos ou não, estão ligados a uma densa e intrincada história de conflitos entre o espaço eclesiástico e laico, de um lado, e o campo dos anseios espirituais, de outro, por isso me demorei tanto aqui em esboçar essa história, que é muito ignorada tanto pelos entusiastas da mística quanto pelos seus opositores.
Mas, para responder à pergunta sobre como o conhecimento dessa história e a elaboração teórica dela, que está dentro do que devemos chamar de teoria da mística, é útil para ler Clarice, vou me servir de um artigo recente de Evando Nascimento no Suplemento Pernambuco intitulado “Clarice, obra intelectual e sensível”, publicado em 10-12-2020 . Nele, o autor cita uma entrevista em que Clarice se diz intuitiva, ignorante e sem condições de ser intelectual para, em seguida, questionar a oposição entre intuitivo e intelectual e relatar elementos de sua biografia que modificam a visão costumeira que dela se tem como dona de casa: ela foi professora de matemática e estudou direito. A questão que persiste é, então, por que Clarice se diz ignorante, se ela, de fato, não é? Retórica da modéstia? Conflito pessoal com o lugar de intelectual?
Afinal, Evando Nascimento é um dos críticos que mais insiste na ligação entre filosofia e literatura e nomeia a ficção clariciana de literatura pensante. Acrescento ainda que houve todo um debate, nos anos 1990 e 2000, em torno da vizinhança entre filosofia e poesia, em que tanto teóricos como Luiz Costa Lima e Benedito Nunes quanto poetas filósofos como Antonio Cicero e Alberto Pucheu se envolveram. Eu me formei observando essa rica discussão.
Sobre esse ponto, há um dossiê chamado As muitas coisas de Clarice Lispector, da Revista Letras da UFPR, Nº 98 ‑ Jul./Dez. 2018, organizado por Alexandre Nodari (UFPR) e João Camillo Penna (UFRJ), no qual se encontra uma série de artigos que observam na obra de Clarice a relação com o conceito filosófico de coisa. No primeiro artigo do dossiê, Eduardo Viveiros de Castro afirma que considera “Oswald, Clarice e Rosa como os maiores pensadores brasileiros do século XX. Pensadores, literalmente”, pois, em literaturas menores fora das grandes tradições de língua europeia (inglês, francês e alemão), “quem exerce a função que cumprem os filósofos na grande tradição são os literatos: poetas, romancistas, ensaístas”. A questão persiste: se Clarice é um dos três maiores pensadores brasileiros do século XX, por que ela se considera ignorante?
O mito do "intuitivismo" dos escritores e especialmente das escritoras tem uma longa história. Michel de Certeau, no livro Fábula mística (Editora Forense Universitária, 2015), desenvolve em detalhe como, tanto no século IV quanto nos séculos XVI e XVII, há toda a construção de um tipo social “idiota” que é ao mesmo tempo ingênuo e santo, ignorante e abençoado, pois possui um contato privilegiado com Deus. Em várias autoras místicas esse tópico efetivamente mítico, imaginário, incide na construção da realidade e é recorrente. A começar por Hildegard de Bingen (1098-1179), a grande visionária da literatura medieval do século XII. Ela repete várias vezes no seu livro de visões chamado Scivias, abreviação de Scito vias Domini (Conhecei os caminhos do Senhor, de 1151), que não sabe nada do que fala, somente ouviu e viu o que escreve diretamente de Deus. Porém, ao examinar sua biografia, constata-se que era uma erudita: tinha conhecimentos específicos de medicina da época e, é claro, de teologia. Todas as escritoras do século XIII repetem esse motivo: "não sei nada, só sinto" e, no entanto, muitas são grandes leitoras, o que explica serem ótimas escritoras, como Porete, Matilde e Hadewijch.
Há algo mais do que modéstia nesse caso. Trata-se do tipo de ‘auctoritas’ da mulher: não era viável ser levada em consideração porque “sabe”, pois simplesmente não se permitia a mulheres a educação formal nem em escolas nem em universidades. Logo, para transmitir o que queriam, elas precisavam afirmar serem “possuídas”.
O mais impressionante é que essa estrutura da autoridade medieval tenha se secularizado e esteja por trás tanto de declarações de escritoras modernas, como Clarice, quanto na forma como elas são recebidas pela crítica e pelo público. Tanto Hildegard e Porete quanto Clarice acreditam sinceramente serem ignorantes e intuitivas, mas formulam, contudo, altas elaborações intelectuais, verdadeiramente autorais.
IHU On-Line – No caso de Clarice Lispector, especialmente, onde a dimensão mística fica mais evidente?
Eduardo Losso – Pergunta difícil e necessária. Como falei acima, não interessa chamar Clarice de mística. Por outro lado, o que não falta em sua obra são momentos de experiência mística e elucubrações que muito devem ao pensamento místico. Retiremos um exemplo da declaração de Ângela, de Sopro de vida (Rio de Janeiro: Rocco, 1999): “O espírito possuía o corpo, o corpo latejava ao espírito. Como se estivesse fora de mim, olhei-me e vi-me. Eu era uma mulher feliz. Tão rica que nem precisava mais viver. Vivia de graça”. Quase que o livro inteiro é um denso diálogo entre o “autor” e “Ângela” em torno da experiência espantosa. Em A descoberta do mundo (Rio de Janeiro: Rocco, 2020), há um texto tematizando o estado de graça: “As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis”. Ela insiste, tanto num caso quanto no outro, que seu estado de graça não é aquele dos santos, não se dá fora da vida comum, ocorre no interior do mundo, do cotidiano. O milagre não é sobrenatural, o sobrenatural é natural. Clarice reitera esse ponto em vários momentos. Para os que se irritam com a mística, eis a prova perfeita de que a experiência extática apresentada por ela não tem nada a ver com a mística tradicional. Para os entusiastas da mística, dizer que o sobrenatural é natural é a prova de que o tão ansiado sobrenatural existe, basta somente “saber vê-lo”.
De fato, o que a mística do século XIII em diante mais fez foi imanentizar o divino no mundo comum, desautorizá-lo e desierarquizá-lo. Logo, esse tipo de formulação, que se espanta com a experiência extraordinária e ao mesmo tempo a repõe no ordinário, é tipicamente mística. Não há nada mais místico do que apresentar um patamar de autossuperação para em seguida superá-lo rebaixando-o. As diferentes formas de ascensão da alma construídas por místicos se regalam em superar a superação com a imanentização. O místico cria voltas e rodeios dialéticos intermináveis com jogos retóricos de superação e simplificação. O mais elevado é o mais rebaixado, o máximo está no ínfimo: esse tipo de oxímoro tem a marca infalível da escrita mística. Ao mesmo tempo, a experiência está para além das palavras, é “indizível e incomunicável”. As palavras só alcançam o mediano: os pontos extremos de altura e profundidade, que se equivalem, são inalcançáveis para a linguagem e o pensamento. De qualquer modo, Clarice não para de falar sobre o indizível, rodear o ponto inapreensível, assim como Pseudo-Dionísio Areopagita, Porete, Eckhart, Silesius, Teresa de Ávila e João da Cruz.
Curiosamente, não são poucos os tipos de escrita e pensamento que retomam tais motivos. Diferentes filosofias e teorias do século XX, com seus vários filósofos frequentemente citados, exploram tais abismos exaustivamente: Heidegger e Derrida , Bataille e Foucault, Blanchot e Lacan, Lyotard e Agamben, Benjamin e Adorno. Derrida e Adorno são os dois autores mais especialmente conscientes da tradição da teologia negativa (a base de toda essa forma de pensar), que se encontra na chamada mística especulativa. Tratei disso em minha tese de doutorado.
Um dos nomes do debate americano sobre o pós-modernismo, Steven Connor, disse que há na teoria um sedento anseio pelo sublime, que mobiliza todos os seus artifícios de linguagem e fracassa, em suma, goza de seu esforço em torno do fracasso, algo que começa com Hegel e vai muito longe. O que ele chama de sublime podemos tranquilamente chamar de mística. No meu artigo acima citado esmiucei a relação entre os dois conceitos. Há uma secularização da mística da teoria em torno da negatividade indizível, inapreensível, inapropriável. Ela não quer ter nada a ver com Deus, visão, milagre, mas quer ser um êxtase da materialidade textual e corporal. Nega Deus para falar de vazio, nada, real, corpo e, mesmo assim, encontra-se aí uma homologia gritante com o deus outrora ansiado.
Os avessos à mística insistem que a modernidade é a idade da ironia, da finitude, do desencantamento, e eles têm razão. O que as teorias nas quais eles se baseiam procuram é a infindável desconstrução da metafísica, logo, destruição do idealismo, para alcançar uma espécie de encantamento sem ilusão. Encantamento depurado, purgado de todo idealismo. Não Deus, mas o real. Não o sobrenatural, mas a linguagem. Não o Um, mas a diferença. E as palavras “mística”, “espiritualidade”, “contemplação”, tal como eles a escutam, estão impregnadas de todos os sintomas de ilusão.
Por isso, devemos dizer que nem Clarice nem tais teóricos são místicos. Eles produzem, contudo, aquilo que chamo de diferentes modalidades de secularização da mística. Secularização da mística é um processo, habitado por inúmeras mediações, em que a mística do passado está distante, não mais existe como tal, mas seus traços de vigor e intensidade não se arrefecem, pelo contrário. Tornam-se cada vez mais fortes quanto mais ignorados são.
IHU On-Line – Quem ou que é o Deus clariciano?
Eduardo Losso – Não me agrada dizer que há um Deus de Clarice, mas Clarice se torna uma espécie de autora divina diante da mística das teorias pós-modernas. O matrimônio espiritual entre as teorias pós-metafísicas da negatividade e Clarice é patente. Aí se entrevê um aspecto interessante. Há uma multidão na crítica clariciana que repete indefinidamente tais motivos teóricos (superações dialéticas ou desconstrutivas, revelações noéticas da simplicidade, paradoxos extremos, formas de inapreensibilidade) ignorando sua matriz mística ou fazendo questão de separar as coisas com aquele afã de desvalorizar a mentalidade ultrapassada medieval e valorizar a autonomia moderna, repetindo clichês de caracterização do pré-moderno. Nesse caso, o orgulho do moderno, pós-moderno ou contemporâneo pretende justificar o descarte da mística, como se ela não atravessasse a modernidade, secularizada, em incontáveis fenômenos. Por outro lado, há alguns críticos bem conscientes e amantes de tradições místicas que buscam a todo custo identificar as semelhanças, equivalências e proximidades entre tais tradições e a obra de Clarice.
Os críticos que apontam tais semelhanças são vistos pelos que são adversos à mística como ingênuos, porque eles tendem ignorar a especificidade da obra da autora, a não fazer análise imanente, a ser demasiadamente gerais, tendem a ignorar peculiaridades formais nos seus piores casos e, mesmo nos melhores, não conseguem se desvencilhar do ímpeto irresistível da harmonização entre os dois polos comparativos.
A meu ver, tais semelhanças deveriam ser trabalhadas a partir da evidente diferença histórica e enunciativa. Falta alguma formação em teoria da literatura e categorias de análise. Quem é da área, como eu, reconhece de longe os equívocos de quem não respeita as configurações específicas de textualidade e ficcionalidade. Porém, mais além da afirmação ou negação de semelhanças, eu penso que é preciso reconstituir o percurso histórico de diferentes místicas, os seus conflitos com instituições religiosas e laicas, seus deslocamentos de espaço cultural e de função, para, finalmente, encontrar alguma clareza no entendimento de modalidades de secularização da mística. Sem passar por esse percurso, os traços místicos em Clarice e em outras obras ficam soltos, podem ser artificialmente aglutinados por relações de semelhança ou podem ser ignorados mas reproduzidos reiteradamente no espelhamento vicioso entre teorias da negatividade e o discurso ficcional negativo de Clarice.
IHU On-Line – Em que sentido a literatura é uma metáfora integral da vida e como essa característica converge à mística?
Eduardo Losso – Esse é um tema bem proustiano que vigora em Clarice. Começa no simbolismo: é nele que a literatura vira uma espécie de “religião da arte” (palavras de Cruz e Sousa), tudo o que existe converge para o livro, como quer Mallarmé. Pode-se dizer, sim, que há uma mística bem moderna nesse enaltecimento da literatura frente às religiões, às ciências e à imprensa, ou melhor, mais um exemplo de secularização da mística que vigorou do século XIX (o século de literatura) até os anos 1970, momento em que a televisão passou a imperar e as máquinas de imagem esmagaram o atrativo pelo livro, o que motivou a teoria contemporânea a pensar a questão da “morte da literatura”. As mesmas teorias que elegeram na literatura a sua sereia predileta tiveram de constatar o seu canto do cisne.
Nesse sentido, a obra de Clarice fez parte do canto do cisne das belas letras. A hora da estrela, com a poderosa tensão entre o homem escritor e a mulher negra semiletrada pode ser lida como uma espécie de agonia da potência (mística) da literatura.
IHU On-Line – A narrativa clariciana é marcada, em muitas obras, por silêncios. Qual a relação entre silêncio e mística e de ambos com a literatura?
Eduardo Losso – “Para tudo: criei o silêncio”, é o que diz Ângela de Um sopro de vida. “A linguagem de tal vida divina é o silêncio secreto do amor divino”, diz Marguerite Porete. São diferentes exemplos de descoberta da escuta do vazio como algo escondido mas sempre presente, que sempre esteve lá. Esse recolhimento da escuta, que, de repente, desvela o maravilhamento com a solidão, encontra nela um universo de possibilidades criativas, a própria “linguagem da vida divina”.
Em nome do silêncio da leitura de Clarice, vale a pena citar algumas realizações da crítica. No dossiê de Alexandre Nodari e João Camillo Penna encontramos vários artigos que examinam a relação ontológica entre o nada e a coisa, o silêncio e o vazio. O artigo de Camillo Penna, Das Ding é um grande exemplo de como a filosofia heideggeriana da coisa pode ser usada não somente para se espelhar no texto clariciano, mas para apontar tanto as proximidades entre Clarice e Heidegger quanto as diferenças. Camillo usa Heidegger para reconstituir o esquecimento utilitário da coisa na técnica como modo de situar a historicidade metafísica do conceito e delinear a ocorrência da palavra no texto clariciano, especialmente no conto “Uma galinha”. A família de classe média só percebe algo fora de seu círculo funcional quando este sai do controle, o que ocorre com a galinha, no momento em que se dá o nexo entre a coisa e o animal. A análise minuciosa de Camillo sobre o conto, ao mesmo tempo em que se serve com precisão afiada de consultas teóricas para contextualizar conceitos, é um verdadeiro exemplo de como fazer leitura imanente e filosófica simultaneamente, sem pesar demais nem de um lado nem de outro e sem que um lado ignore a contribuição de outro. Camillo tem um outro artigo sobre a epifania em Clarice, “O nu de Clarice Lispector”, publicado em 2010 na revista Alea da UFRJ, que perseguiu o conceito de epifania de Joyce a Tomás de Aquino , do Dia dos Reis a Paulo , o apóstolo, para costurar a trama que o envolve e situar enganos e desleixos da crítica em relação a ela. Esse artigo trava a luta da teoria e da crítica consigo mesma em torno de perspectivas de superação e imanentização. Camillo sublinha que a relação de Clarice com a epifania não é triunfal, é fracassada, o que a crítica embevecida geralmente não enxerga, e que só pode ser pensada a partir daí.
Numa conferência que pode ser vista no YouTube, Camillo diz, ao lado de Belinda Mandelbaum e Enrique Mandelbaum, que as marcas de narrativas do hassidismo judaico (uma de suas mais impressionantes correntes místicas) foram esquecidas por famílias judias imigrantes mas, no caso de Clarice, guardadas numa memória imemorial e “integralmente salvas na letra de sua escrita” .
Outros artigos do dossiê rodeiam a relação da linguagem com o indizível, como o de Alexandre Nodari, que aponta a impossibilidade da linguagem de apreender a coisa, fracasso que, contudo, é uma forma de sucesso de realização literária. Já o artigo de Flavia Trocoli gira em torno da resposta de Macabéa a Olímpico em A hora da estrela: “É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para ser possível?”, que marca o não lugar da mulher cujo ser é vazio, mas se dispõe a fazer, protagonizando a ação dramática.
Flavia Trocoli e Ricardo Pinto de Souza são meus colegas do departamento de Ciência da Literatura da UFRJ e, junto com outros colegas, como João Camillo Penna, e alunos, têm organizado o evento Clariceana todo ano. No ano de 2020 fizeram uma das mais impressionantes comemorações virtuais do centenário de nascimento da autora, com participação de especialistas nacionais e internacionais, integralmente disponível no YouTube .
Na lista dos trabalhos que examinam a relação de Clarice com a mística, destaco dois amigos de meu grupo de pesquisa Apophatike: Estudos interdisciplinares em mística. Um é o artigo de Cicero Cunha Bezerra , Clarice Lispector e as fronteiras do Nada: ensaio sobre filosofia e literatura, publicado na revista da UFMG O eixo e a roda , em 2017, que traça as relações da filosofia neoplatônica com as especulações sobre o nada de Clarice, defendendo, junto de Viveiros de Castro e Evando Nascimento, o teor filosófico da obra da autora.
Cicero é um profundo conhecedor do neoplatonismo e tem um canal de conferências e debates sobre diferentes filósofos neoplatônicos com diversos especialistas brasileiros e estrangeiros que é simplesmente fantástico : A área de filosofia antiga trata do assunto, porém, ela mesma tende a prestar pouca atenção na tradição neoplatônica. Poucos pesquisadores se dispõem a estudar Plotino, menos ainda Porfírio, Jâmblico, Proclo, menos ainda pensar a relação entre o neoplatonismo e teologia cristã, neoplatonismo e hermetismo, neoplatonismo e gnosticismo. E a maior parte daquilo que chamamos de mística tem origem no neoplatonismo. Trata-se de uma outra história da filosofia que sai do roteiro costumeiro e abre uma possibilidade alternativa de leitura da metafísica, na qual nossos heróis da filosofia pós-metafísica em geral pouco prestaram atenção. Ao mesmo tempo, o trabalho acadêmico qualificado dessa linhagem pode desmistificar leituras rasas da “tradição perenialista”. Marcus Reis Pinheiro, outro amigo do grupo de pesquisa, também tem feito um exame acurado dessa tradição e seu canal no YouTube é bem visitado. O trabalho do GT da Anpof de Cicero é um verdadeiro oásis no deserto, para usar, aliás, uma imagem que deriva da ascese mística.
Já Maria Clara Bingemer é uma teóloga de renome internacional e publicou o artigo Iniciação e Paixão: a tensão dialética entre Eros e Agape em dois romances de Clarice Lispector, em 2012, na revista Teoliterária da PUC-SP e PUC-PR , em que aborda a interação dinâmica entre Eros e Agape representada por um mergulho “kenótico” no coração da matéria para examinar relações pouco pensadas entre corpo e teologia e, por conseguinte, literatura e mística. Maria Clara, junto com Faustino Teixeira, é um nome fundamental para os estudos de mística no Brasil. Não à toa os dois dão enorme valor à literatura moderna e produzem pesquisas sempre ligadas a ela.
Pensando nos que recriam uma conexão entre escrita literária e pensamento filosófico, além de Evando Nascimento, já citado, ressalto a obra de Alberto Pucheu e de Roberto Corrêa do Santos, este, um dos primeiros críticos claricianos que, com o tempo, tornou-se cada vez mais poeta.
IHU On-Line – Na crônica Um ato gratuito, de Clarice Lispector, há um trecho em que ela narra o seguinte: “Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu escrevendo à máquina — quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta. E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu.” É possível entender tal descrição como de ordem mística? Por quê?
Eduardo Losso – As narrativas de Clarice sempre se deparam com um “acontecimento” e ele é sim uma marca de secularização da mística. Trata-se de uma das características básicas da mística elencadas por William James, a transitoriedade súbita da experiência. Heidegger tem toda uma ontologia do Ereignis que geralmente serve para a crítica como tópico privilegiado e ela é também uma secularização filosófica de uma espécie de possessão divina, conceito que vem do Íon de Platão para se referir tanto à inspiração poética quanto à vidência.
Nesse caso específico, podemos fazer uma leitura ecológica: em tempos de pandemia, em que somos obrigados a nos enclausurar em nossos apartamentos, o que não é nada natural para a nossa espécie, também somos assaltados por uma sede de liberdade. Podemos nos identificar com tal sensação, especialmente hoje. A diferença histórica não é menos interessante: hoje não sentimos mais o incômodo do barulho da máquina de escrever, porém convivemos com várias outras máquinas ruidosas utilizadas para nos importunar.
Falando em máquina de escrever, há dois artistas contemporâneos, claricianos, que quero mencionar. Um é o enorme poeta Armando Freitas Filho , que, em seu livro de poesia reunida, publicado em 2003, intitulado Máquina de escrever (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003), colocou na epígrafe de toda a sua obra desde então, que é numerosa, uma passagem de Água viva: “O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada”.
Armando reconheceu uma qualidade central da obra de nossa maior escritora, retomando o apontamento de Viveiros de Castro: ela é uma das grandes pensadoras da escrita no século XX e merece estar ao lado de Blanchot, Barthes e Derrida. Por isso mesmo, o outro artista clariciano que gostaria de mencionar é o cancionista Pedro Sá Moraes. Pedro tem uma faixa chamada “Hora da estrela”, do CD Além do princípio do prazer, de 2013, composta em conjunto com João Cavalcanti, que considero uma das melhores realizações da Nova MPB da década.
A estrutura melódica e harmônica da canção segue o modelo de um tema curto de cinco notas (“uma menina”) que é desdobrado numa melodia longa de três partes de dez notas cuja segunda metade repete com variação o desenho do início. A extensão melódica, suportada por um baixo e harmonia ascendentes, mantém-se dentro de certa tradição do samba de Noel Rosa ou Chico Buarque, mas com ritmo de maculelê. Contudo, o ambiente é todo eletrônico, composto por Ivo Senra , logo, tal base tradicional melódica e rítmica se retrai na atmosfera contemporânea.
No início, há um “ar” sonoro metropolitano que é alternadamente exposto e interrompido numa progressão acelerada até dar lugar à voz, que se duplica num eco radiofônico. O som eletrônico agudo de batidas marteladas que introduzem sutilmente o ritmo do maculelê pode ser interpretado como telégrafo ou máquina de escrever e essa ambiguidade já remete à relação da canção com o livro, e do livro com a máquina, cuja personagem, Macabéa, é datilógrafa e o narrador, escritor.
O som aéreo da cidade é fortemente contrastado com um ambiente oco que limpa o espaço sonoro e retira o código telegráfico, pondo no lugar uma voz distorcida que aumenta o impacto do choque de ambientes. Isso ocorre justamente quando a letra aponta para a “vidraça” que espelha “a gente que passa”, isto é, há uma cumplicidade entre o esvaziamento das gravações ambientais e a transparência dura e hermética do vidro. O bumbo e a caixa batem de forma completamente assimétrica, o que cria uma sensação de tonteira no ouvinte. Só depois a batida se estabelece, acompanhada de outro timbre sintetizado de fragmentos telegráficos soltos, ao lado de diversos ruídos maquinais da cidade, eletroacústicos, que produzem um acompanhamento rítmico suplementar por cima da batida. Segue-se um longo interlúdio sem voz que se inicia com um jorro de sonoplastias metropolitanas, às quais se somam os fragmentos telegráficos que dialogam em contraponto com intervenções ruidosas soltas de uma guitarra arranhada, além de partículas sintetizadas e vidros quebrados. A voz distorcida retorna com uma nova depuração opaca, acompanhada de um estonteante jogo rítmico entre a bateria assimétrica e o baixo-guitarra constante.
Justamente quando a letra diz “minha imaginação dançarina”, surgem acordes densos de sintetizador, ataques de guitarra e um baixo repetido de dance music que introduz um clima psicodélico, e logo aparecem fiapos eletrônicos siderais em que o maculelê vira algo afrofuturista. A música termina com um ápice instrumental que retoma o contraponto da guitarra com os fragmentos acompanhando uma melodia final sintetizada.
Preferi me demorar na exuberância timbrística instrumental da música e não falar tanto da letra, mas posso dizer que nela se reconhecem os traços centrais da relação entre Rodrigo S. M. e Macabéa. A ritmização da máquina de escrever, a errância de Macabéa pela cidade, o pensamento dramático, perturbado e sofisticado de Rodrigo estão concentrados na densidade poética dos versos. Mais ainda, o acidente final habita a canção inteira nos vidros estilhaçados, ataques, choques, sustos diversamente elaborados. Eles figuram a dolorosa discrepância social entre o letrado e a mulher negra pobre, a riqueza simbólica e culpada de um e a pobreza bruta, rica de promessas sociais não cumpridas da outra, figurada no maculelê, que, não à toa, é um ritmo comum do funk carioca que surgiu depois do livro. A canção respira o acidente do início ao fim, ao mesmo tempo que seu futurismo dance, seu ar de “devaneio” (palavra da letra) aponta para a salvação artística do curto sonho de Macabéa ser outro tipo de pessoa.
IHU On-Line – Em que sentido o mistério da vida é a liberdade e como a liberdade (no sentido de mundos possíveis) tende a ser o fio condutor da literatura em sentido geral?
Eduardo Losso – Esta questão toca no cerne da relação entre a canção que citei e um traço de Clarice muito pouco explorado, que merece desenvolvimentos futuros. Vou citar somente os versos finais da letra de Pedro Sá Moraes: “Entidade que me contamina/ Clandestina/ Nordestina/ Devaneio…”. O primeiro verso citado iguala a relação de Rodrigo com Macabéa a uma relação espiritual, no sentido que uma religião afro-brasileira dá: Macabéa é uma “entidade”, mais do que a personagem fantasiosa de um escritor. Ela assombra o narrador, mais do que ser um capricho imaginativo dele.
Viveiros de Castro, por sua vez, faz uma interpretação ousada de G.H. Vale a pena mencionar na íntegra o seguinte parágrafo:
“Um momento crucial do romance é quando G.H. entra no quarto de empregada para limpá-lo e descobre que ele está todo arrumado, não há nada lá, só uma silhueta, ou melhor, três silhuetas desenhadas na parede, uma parede muito branca riscada em negro a carvão: um homem, uma mulher e um cachorro. Ela se percebe capturada pela imagem da mulher. A mim parece claro que aquelas imagens são, entre outras coisas, um feitiço. Acredito que G.H. foi enfeitiçada por essa empregada negra, que, se desapareceu em A paixão, digo cá comigo, reaparecerá em A hora da estrela como Macabéa – vai aparecer lá na frente, transfigurada em Macabéa.”
Para quem está treinado em não enxertar suposições pessoais no texto, o palpite arriscado de Viveiros de Castro pode parecer demasiadamente forçado. Eu, no entanto, acho que há uma estranha afinidade entre a canção de Pedro e tal hipótese. E se tudo o que se passou com G.H. não foi decorrência de uma macumba? Se foi, primeiro, não levou a uma “maldição”, não se tornou “vingativa”: suscitou uma revelação mística de alto impacto na vida de uma mulher de classe média. Segundo, não teve completo sucesso, afinal, a protagonista volta a sua vida normal. Porém, algo “aconteceu”. Elevadas experiências místicas podem vir de um certo tipo de assombração que os pobres produzem nos ricos, que os animais podem produzir em uma família de classe média (como pensa Camillo sobre o conto “Uma galinha”), a ponto de se comer uma barata, que, como diz Viveiros de Castro, está em ligação direta com a empregada? Empregada e Macabéa são “a mosca na sua sopa”?
Se o mistério da vida é a liberdade, como diz sua pergunta, a liberdade que a literatura indica não estará no intervalo tenso entre o encantamento do pobre e o desencantamento do rico? Afinal, a liberdade só pode ser para todos, não pode ser para poucos.
Uma pergunta me assola: o que especialistas em religiões afro-brasileiras teriam a dizer sobre esses dois livros de Clarice? O que Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino pensariam sobre a hipótese de Viveiros de Castro?
Uma das questões mais radicais que a teoria da mística pode suscitar para o debate epistemológico atual é justamente como vamos reformular nosso olhar ético, estético e cosmológico diante de espiritualidades ameríndias e afro-brasileiras. Os antropólogos e os filósofos da ciência em torno da questão de Gaia têm pensado bastante a respeito. Eles são perspectivistas que relativizam a autoridade da ciência frente à sabedoria de povos originários. O que eles não têm pensado é o quanto a valorização de sabedorias não ocidentais está diretamente ligada ao esmagamento de diversos tipos de pretensão de sabedoria do Ocidente, como, por exemplo, os diversos esoterismos. Um deles, o espiritismo, foi muito longe no Brasil, inclusive.
Dentro do projeto de revalorizar saberes não ocidentais, que são tidos como místicos, valeria muito a pena repensar a batalha epistemológica entre a racionalidade ocidental e sua mística. Essa guerra deixou muitas sequelas, muitos despojos no meio do caminho. Eles estão inscritos em cada letra, em cada vírgula das obras literárias ocidentais e latino-americanas. Quem persiste em descartar a mística (ocidental ou não) do estudo das obras literárias continua contribuindo para o apagamento de saberes silenciados com o pretexto de embarreirar a maldição da ilusão, evitar o seu alastramento pelos campi, enquanto perde, justamente, a oportunidade de aliar esclarecimento e iluminação, Aufklärung, como queria Benjamin.
De qualquer forma, queira ou não, por bem ou por mal, o tsunami da religião vai invadir sua praia, aliás, é o que já se passa. E não constato isso com nenhum prazer, observo com dolorosa amargura. Como ateu eu também preferiria viver num país que tivesse mais consideração pelos não crentes. Porém, como professor de universidade no Brasil, país com maior número de católicos do mundo, cuja diminuição vem sendo substituída pelo fervor evangélico, não entendo quem acha que o melhor a fazer é continuar evitando pensar a relação entre religião e cultura em nome de um ideal europeu acadêmico de desencantamento cada vez mais questionado. Ao mesmo tempo, insisto em deixar claro que, embora a derrocada do paradigma do desencantamento esteja na ordem do dia, também não sou nenhum defensor do encantamento. Há mais problemas entre o céu e a terra do que sonham militâncias epistemológicas.
IHU On-Line – É possível aprender a ler “misticamente”? Se sim, como? Se não, por quê?
Eduardo Losso – Os místicos dirão que sim. Xamãs como Davi Kopenawa, mães e pais de santos de terreiros e novas Clarices estão lendo o livro do mundo a todo momento, do seu jeito. Não é o meu caso. Meu deleite é o de ler a leitura deles: sua literatura.