Clarice Lispector – 100 anos: uma leitura contra as angústias dos tempos pandêmicos. Entrevista especial com Emilia Amaral

Pesquisadora da obra clariciana retoma o legado da escritora para a literatura brasileira e mundial

Clarice Lispector | Foto: Publish News

Por: Patricia Fachin | Edição: Ricardo Machado | 12 Fevereiro 2021

Nascida em 10 de dezembro de 1920, Clarice Lispector é, sem dúvidas, um dos principais nomes da literatura brasileira – apesar de ter nascido na Ucrânia, a escritora viveu no Brasil desde os dois anos de idade. As comemorações de seu centenário foram celebradas mais intensamente no final do ano passado, tendo recebido inúmeras produções em sua homenagem. Para falar desta escritora marcante para a cultura e a literatura brasileira, a IHU On-Line entrevistou por e-mail a professora e pesquisadora Emilia Amaral, autora do livro Para Amar Clarice. Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra.

 

“A estranheza de sua obra, que rompe com muitas convenções literárias tradicionais, a fim de chegar ao ‘selvagem’ coração da vida, gera uma atração irresistível, ou uma negação também radical, de um jeito ou de outro atraindo parece que progressivamente a atenção das pessoas”, pondera Amaral. “No texto dela, o enredo é sempre secundário; o que se destaca é a interioridade das personagens, seus movimentos de alienação e de busca de sentido, de transcendência, em relação à rotina enrijecedora da sensibilidade das pessoas; a palavra clariciana quer ser a coisa que ela representa, daí a linguagem ser toda permeada por silêncios e entrelinhas, através dos quais se pretende ir além do dito”, explica.

 

De acorco com a professora, a literatura de Clarice Lispector ganha, ainda, outros contornos diante da crise sanitária global. “Por falar da existência, da alma, das contradições, de tudo o que caracteriza a humanidade ‘por dentro’, o mais profundo e humanamente possível, a leitura dos textos de Clarice é totalmente indicada às grandes angústias desses nossos tempos pandêmicos”.

 

Clarice Lispector é a escritora brasileira mais traduzida do mundo. Sua primeira obra traduzida para o francês foi Perto do Coração Selvagem e, segundo levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO em 2012, 113 traduções foram feitas. Entre seus livros, destacam-se, Laços de Família (1960), A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977).

 

Além de escritora, Clarice também atuou como tradutora, traduzindo as obras de, entre outros, Jonathan Swift, Edgar Allan Poe, Julio Verne, Agatha Christie e Jorge Luís Borges.

 

Apesar do sucesso e reconhecimento de A Paixão Segundo G.H., dos 18 livros publicados pela autora, entre contos, crônicas e romances, A Hora da Estrela é o mais traduzido, sendo publicado em 27 idiomas. A obra conta a história de uma retirante nordestina que viaja para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida.

 

 

Emilia Amaral (Foto: Ponto Zero)

 

Emilia Amaral é graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista - Unesp. Fez mestrado em Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas - Unicamp e doutorado em Educação e Literatura pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado no Departamento de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo - USP. É autora, entre outras obras, de Para Amar Clarice. Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra (Barueri, SP: Faro Editorial, 2017, 160 p.).

 

A partir de março deste ano, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e o Canal Paz e Bem, promove o Curso Livre Clarice Lispector – Todas as Crônicas, que será ministrado por Teixeira. O curso vai trabalhar as crônicas de Clarice Lispector, que oferecem um panorama realista de sua percepção do mundo, publicadas em sua coluna semanal do Jornal do Brasil, entre 1963 e 1973, e outras crônicas que apareceram desde 1946 até a sua morte, em 1977. Como referência para o curso, Faustino Teixeira usará o livro Clarice Lispector. Todas as crônicas (Rio de Janeiro: Rocco, 2018). Os encontros online serão semanais, todas as quartas-feiras, das 14h às 16h, entre 10/03/2021 e 07/07/2021.

 

Confira e entrevista.

 

IHU On-Line – 2020 foi o ano do centenário de Clarice Lispector. O que é importante destacar acerca de sua obra, sua produção literária e sua trajetória intelectual e pessoal?

Emilia Amaral – Lispector é considerada uma voz literária singular do século XX, que passa pelo Brasil, mas vai muito além, tornando-se universal. Ela é lida, traduzida, estudada e cultivada na França, entre outros países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá etc.

Sua trajetória profissional merece grande destaque, pois começou com obras que a levaram a ser considerada hermética, pouco legível e, nos últimos anos de sua vida, ganhou bastante popularidade. Sem fazer concessões, conforme suas palavras, na entrevista que deu a Júlio Lerner, na TV Cultura.

 

 

O fato de ter voltado para o Brasil, depois de passar mais de uma década morando no exterior (o marido, Maury Gurgel Valente, era diplomata), aumentou-lhe, fortemente, a visibilidade. Morou no Rio de Janeiro, com os dois filhos, até a morte, em 9 de dezembro de 1977, aos 56 anos. Nesse tempo, escreveu para jornais e revistas, conviveu com intelectuais amigos da época de estudante de Direito, em que trabalhava como jornalista, fez aparições públicas, deu entrevistas e também foi autora delas.

Enfim, Clarice teve um percurso existencial e profissional típico da mulher que busca a independência e a conquista, à custa de muito sofrimento e trabalho. Nesse sentido, a estranheza de sua obra, que rompe com muitas convenções literárias tradicionais, a fim de chegar ao “selvagem” coração da vida, gera uma atração irresistível, ou uma negação também radical, de um jeito ou de outro atraindo parece que progressivamente a atenção das pessoas.

 

 

IHU On-Line – Quais são os aspectos inovadores da obra dela?

Emilia Amaral – Há várias marcas inovadoras tipicamente clariceanas. Vou citar algumas das mais significativas: no texto dela, o enredo é sempre secundário; o que se destaca é a interioridade das personagens, seus movimentos de alienação e de busca de sentido, de transcendência, em relação à rotina enrijecedora da sensibilidade das pessoas; a palavra clariciana quer ser a coisa que ela representa, daí a linguagem ser toda permeada por silêncios e entrelinhas, através dos quais se pretende ir além do dito; trata-se de uma literatura metalinguística, que se indaga enquanto se realiza, conquistando tanto pelo processo do escrever quanto pelo produto: o texto.

 

 

IHU On-Line – Em seu livro Para amar Clarice - Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra, a senhora diz que Clarice Lispector "viveu e escreveu sob os signos da fascinação e paradoxo". Pode nos explicar o que isso significa?

Emilia Amaral – A fascinação é causada pelo “pacto” com o leitor que ela propõe, jogando-o para dentro da obra. Os paradoxos vêm das dificuldades de leitura do texto clariceano, aos olhos do leitor. Por exemplo, não entender para ela não é um problema, é um caminho promissor para entender, o que causa estranheza ao senso comum. E assim com todas as dicotomias: vida/morte; linguagem/silêncio; construção/desconstrução etc.

Vejamos um exemplo no romance A Paixão segundo G. H.:

Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão.

Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão — mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de uma tal ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será a minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade.


Livro de Clarice Lispector (Foto: Divulgação)

Em A Paixão Segundo G.H., entre tantos outros textos, há uma série de transgressões linguísticas. A última frase de cada capítulo é retomada no capítulo posterior, dando ao livro uma circularidade estonteante, em que a palavra Deus, por exemplo, reveza com a expressão “o deus”. Essa aparente dubiedade de uma palavra, ou uma expressão, assim como passagens profundamente poéticas, constituem procedimentos constantes no texto clariceano. Sempre a fim de seduzir o leitor. E enfatizar o caráter único de sua literatura: entre a palavra e a coisa, a linguagem e o silêncio.

 

 

IHU On-Line – Qual é o núcleo que permeia toda a obra de Clarice Lispector?

Emilia Amaral – A busca, por meio da palavra, dos silêncios, das entrelinhas, de algo que seria “a coisa”, o real concreto, não mediado pela cultura e a linguagem, inacessível aos seres humanos. Dizendo de outro modo, nesta obra as palavras são consideradas “anzóis” para se atingir a não-palavra, a introspecção, o silêncio.

 

IHU On-Line – Algumas obras literárias cumprem o papel de "formação do leitor". Que contribuições a obra de Clarice Lispector dá para a formação do seu leitor e qual é a peculiaridade da sua formação?

Emilia Amaral – Ao mesmo tempo em que a escritora é considerada difícil, pouco acessível, há uma grande quantidade de pessoas que a conhecem e se apaixonam perdidamente por ela. Isso porque o seu texto remete o leitor para dentro de si próprio, para lugares recônditos, até então desconhecidos.

 

 

IHU On-Line – O que significa dizer que a obra de Clarice Lispector está a serviço da nossa existência?

Emilia Amaral – Minha relação com a obra de Clarice Lispector e também a da maioria de colegas que a leem e estudam é visceral, demandando de minha posição como leitora um constante jogo de distanciamento e aproximação. Distanciamento para pensá-la literariamente, proximidade para aprender com ela sobre a vida, principalmente a vida interior, como disse João Guimarães Rosa. Por isso, por falar da existência, da alma, das contradições, de tudo o que caracteriza a humanidade “por dentro”, o mais profunda e humanamente possível, a leitura dos textos de Clarice é totalmente indicada às grandes angústias desses nossos tempos pandêmicos.

 

IHU On-Line – Que espaço há para a formação literária e apreciação das obras de literatura tanto nos cursos de Letras quanto em outros cursos nas universidades brasileiras? As universidades do nosso país dão espaço suficiente ao estudo dos clássicos literários na formação dos estudantes?

Emilia Amaral – Na verdade, não há muito este espaço. É preciso lutar por ele, com ferocidade, se necessário, porque ninguém sobrevive na aridez desse mundo sem o encantamento, a fantasia, a humanização que a literatura proporciona. Como diria o mestre Antonio Candido: “A literatura não corrompe nem edifica, mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

 

 

IHU On-Line – Em outra ocasião, a senhora disse que "ler é colher frutas para se nutrir e crescer mais". Que leituras sugere para "sobrevivermos" e crescermos neste período de crise pandêmica?

Emilia Amaral – Sugiro todos os textos que cheguem ao coração e à inteligência das pessoas, de modo a contribuir com o desenvolvimento, o refinamento, de sua característica mais importante: a humanidade propriamente dita, tão empobrecida e machucada em nossos dias.

Termino com uma citação de Clarice:

Não posso me resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.” – Clarice Lispector

 

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