“Vivemos em uma sociedade muito rica que cria escassez artificial”, adverte a pesquisadora
A centralidade que as tecnologias passaram a ocupar em várias esferas da vida humana nos últimos 50 anos e a reestruturação produtiva pela qual o capitalismo está passando têm gerado inúmeras transformações no mercado de trabalho e na rotina dos trabalhadores. Apenas no Brasil, em 2019, mais de quatro milhões de pessoas estavam empregadas em atividades mediadas por plataformas digitais e, com a crise pandêmica, “esse número certamente explodiu”, diz Helena Martins, doutora em Comunicação Social, à IHU On-Line. “A situação geral de penúria está nítida, como indica a pesquisa que mostra que o número de beneficiários do auxílio emergencial é maior que o de trabalhadores com carteira assinada em 25 estados”, afirma.
Como uma forma de enfrentar este quadro, Helena defende a instituição de um programa de renda mínima universal e a taxação de grandes fortunas. “Concordo com a garantia de renda como direito, portanto permanente. Renda que deve ser financiada com implementação de um Imposto sobre Grandes Fortunas, revogação das isenções de imposto de renda sobre lucros e dividendos e outros mecanismos que também enfrentem a desigualdade”, pontua. E acrescenta: “A renda é para evitar a fome. Em muitos estados, é difícil garantir até uma cesta básica e o pagamento de contas básicas com R$ 600. Não é essa a vida que queremos para a classe trabalhadora, por isso é fundamental também afirmarmos uma política de renda justa casada com a garantia de direitos, por meio da ampliação do investimento estatal em áreas sociais, bem como pela superação da lógica econômica que guia a sociedade hoje”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela analisa o mundo do trabalho digital, critica posições que veem a tecnologia como “uma saída” fácil para resolver os diferentes e complexos problemas sociais, e assegura que as transformações das últimas décadas não estão relacionadas apenas ao desenvolvimento tecnológico. “A contradição fundamental segue sendo entre o caráter cada vez mais social da produção e o caráter cada vez mais privado da apropriação, por isso as lutas pela distribuição de poder e de propriedade são fundamentais”. E adverte: “É preciso disputar sentidos, apresentar novo projeto de país, que encante, mobilize as pessoas e mostre que pode ser diferente. Um projeto que dê centralidade ao enfrentamento da crise climática e também às mudanças tecnológicas. Podem parecer questões distantes, mas não são. Poderíamos contar com as tecnologias para promover planejamento dos bens comuns, reduzir emissões, promover informações, fomentar uma cultura que supere a dissociação entre sociedade e natureza. É preciso, pois, alterar a rota que pauta a inserção das tecnologias na sociedade, hoje guiada por corporações que estão no topo das consideradas mais valiosas do mundo”.
Helena Martins do Rêgo Barreto (Foto: Arquivo pessoal)
Helena Martins do Rêgo Barreto é doutora em Comunicação Social pela Universidade de Brasília - UnB, mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará - UFC e graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela mesma universidade. Atualmente, leciona na UFC e é integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.
IHU On-Line - Como compreende as transformações do mundo do trabalho nesses contextos em que todos somos atravessados pelas tecnologias, a chamada digitalização ou revolução 4.0?
Helena Martins - As últimas décadas têm sido marcadas por uma maior centralidade das tecnologias como mediadoras de diversas atividades sociais. A base técnica desse fenômeno é a digitalização. A transformação da informação em código digital facilita seu armazenamento, transmissão e utilização, inclusive manipulação de grandes volumes de textos, sons, vídeos e outros conteúdos, padronizados pela utilização de um código binário, em alta velocidade e entre distintas plataformas e localidades. Mas apenas a dimensão tecnológica – muitas vezes ressaltadas por pesquisadores e instituições que utilizam a ideia de revolução 4.0 – não é capaz de explicar as transformações em curso.
A meu ver, o tempo presente aprofunda dinâmicas postas desde a década de 1970, quando o sistema capitalista ingressou em uma intensa reestruturação produtiva que, nos termos de David Harvey, derivou para o desenvolvimento da acumulação flexível. O autor tem utilizado também o conceito de acumulação por espoliação, que enfatiza a privatização e a mercantilização de bens públicos, perspectiva muito importante para pensarmos as estratégias do sistema para aplacar suas crises intrínsecas promovendo mais apropriação privada da riqueza, violência e destruição, inclusive ambiental, mas considero que o termo acumulação flexível é muito relevador dos processos que vivemos nas comunicações e, em associação com eles, no mundo do trabalho.
Esse regime de acumulação flexível, que comprime mais tempo e espaço, baseia-se, entre outros elementos, “[...] na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” [1] . Diferente dos padrões fordistas, hoje se busca a exploração de mercados segmentados em escala reduzida. Essa suposta flexibilidade se dá já na produção. Também nesse momento, fica clara a importância das tecnologias da informação e da comunicação, que permitem, em um contexto de espalhamento das plantas produtivas, funcional às corporações que buscam se aproveitar de matérias-primas ou mão de obra barata localizadas em diferentes países, a coordenação de diferentes atividades nesta cadeia global de valor. O Iphone, por exemplo, conta com componentes oriundos de mais de 30 países. Boa parte da montagem do equipamento se dá pela Foxconn, conhecida pela exploração de trabalhadores, inclusive com registro de várias tentativas de suicídio.
Em muitas dessas companhias, há um intenso processo de automação. Em uma perspectiva considerada cuidadosa ou mesmo conservadora, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE apontou, em abril de 2019, que robotização e informatização farão desaparecer 14% dos empregos em 20 anos. De imediato, já é possível apontar maior investimento em capital fixo e o menor em capital variável, uma dinâmica que sempre propicia crises. Some-se a isso a financeirização, que draga recursos que poderiam ser reinvestidos.
Por tudo isso, evito usar a ideia de revolução 4.0. Seguindo o entendimento do professor César Bolaño, opto por tratar esse período como o da Terceira Revolução Industrial. Embora considere aqueles aspectos, Bolãno toma como elemento central a incorporação do elemento subjetivo na produção do capital e a intelectualização geral dos processos de trabalho na indústria e no setor de serviços. A informação, assim, torna-se elemento central da nova dinâmica do capital. Evidenciam essa mudança a codificação dos conhecimentos por tecnologias computacionais e a ampliação da mercantilização de setores como a cultura, colaborando para a valorização de uma subjetividade vinculada ao consumo. Um processo que amplia a subsunção real do trabalho intelectual, que é cada vez mais efetivamente incorporado ao capital, perdendo sua autonomia. Esse trabalho codificado, plasmado em softwares e afins, é ainda mais passível de ser controlado e explorado, inclusive por mecanismos vigilantistas que também se tornam mais comuns e naturalizados.
IHU On-Line - Se as formas de emprego mudam com essas transformações, mas ainda reside a ideia de trabalho, como pensar na valoração do trabalho diante da revolução tecnológica? Não seria o caso de pensarmos na implementação de uma renda básica universal?
Helena Martins - O trabalho continua sendo produtor da riqueza. É trabalho humano o utilizado na elaboração de softwares, algoritmos e em outros elementos. Em um segundo momento, há a reprodução do que foi inicialmente construído, com a coordenação por parte de poucos trabalhadores extremamente qualificados, como engenheiros, e a utilização de uma força de trabalho extremamente precarizada para testar, ajustar, organizar bancos de dados. Exemplo disso pode ser visto na Amazon Mechanical Turk, que tem sido chamada de plataforma de bicos. Por meio dela, são publicadas diversas tarefas oferecendo um determinado valor, geralmente muito baixo, tendo como piso mínimo um centavo de dólar nos Estados Unidos, mas que em outros países costuma nem pagar com dinheiro, mas com cartões de presente da própria Amazon, entre outras táticas que ocultam ou impedem uma relação salarial. Como funciona no sistema de leilão, esse pagamento pode variar bastante – e, claro, o controle da variação é da companhia. Embora aparente ser um bico complementar, como também a Uber tenta fazer crer, pesquisa feita no Brasil mostra que, entre os entrevistados, 43% não tinham nenhum outro trabalho. Entre estes, 66% não tiveram outro emprego há pelo menos um ano.
Como sumarizou a professora Ludmila Abílio de forma muito correta ao analisar a Uber, trata-se da subsunção real da viração. Essa situação provoca uma enorme desigualdade entre trabalhadores que elaboram os processos e aqueles que apenas operam as máquinas ou os que são desempregados com o ingresso delas, o que me parece muito importante para pensar sobre a dificuldade de organização sindical ou de outras articulações baseadas na solidariedade entre eles. Pesa ainda o fato de trabalhadores extremamente precarizados serem impelidos a abraçar a falácia do empreendedorismo. Na verdade, nesse tornar-se “empreendedor de si mesmo”, o que temos é a internalização de custos (carro, bicicleta, energia) e riscos, uma total ausência de proteção, a criação de uma subjetividade que faz com que não se vejam como classe trabalhadora e um ataque frontal à organização.
No Brasil, em 2019 já havia mais de quatro milhões de trabalhadores e trabalhadoras dependendo do trabalho mediado por plataformas digitais. Com o agravamento da crise econômica na pandemia, esse número certamente explodiu. Além disso, a situação geral de penúria está nítida, como indica a pesquisa que mostra que o número de beneficiários do auxílio emergencial é maior que o de trabalhadores com carteira assinada em 25 estados. Aqui no Ceará, essa diferença é de três vezes. Sabemos que as dificuldades se materializam sobretudo na vida das pessoas negras. Diante desse quadro, que infelizmente não será revertido nos marcos desta sociedade, concordo com a garantia de renda como direito, portanto permanente. Renda que deve ser financiada com implementação de um Imposto sobre Grandes Fortunas, revogação das isenções de imposto de renda sobre lucros e dividendos e outros mecanismos que também enfrentem a desigualdade.
A renda é para evitar a fome. Em muitos estados, é difícil garantir até uma cesta básica e o pagamento de contas básicas com R$ 600. Não é essa a vida que queremos para a classe trabalhadora, por isso é fundamental também afirmarmos uma política de renda justa casada com a garantia de direitos, por meio da ampliação do investimento estatal em áreas sociais, bem como pela superação da lógica econômica que guia a sociedade hoje.
A crise mostrou que o trabalho essencial não é o que o mercado valoriza. Trabalhos associados à reprodução da vida, em geral desempenhados por mulheres, não são reconhecidos, mas foram eles que evitaram mais mortes e garantiram cuidados na pandemia. E há outros na educação, lazer que podem ser mais estimulados, gerando não apenas renda, mas a partilha de atividades fundamentais e que hoje recaem sobre nossos ombros. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE mostram que os chamados “serviços” cresceram muito na pandemia. Entre junho e julho, a expansão foi de 2,6%, com destaque para os serviços de informação e comunicação (2,2%) e de transportes, serviços auxiliares aos transportes e correio (2,3%). Isso não pode ficar nas mãos do mercado.
Vivemos em uma sociedade muito rica que cria escassez artificial. O problema não é da tecnologia isoladamente. A contradição fundamental segue sendo entre o caráter cada vez mais social da produção e o caráter cada vez mais privado da apropriação, por isso as lutas pela distribuição de poder e de propriedade são fundamentais. Vislumbrando esse horizonte não só do possível, mas necessário, vejo com muito entusiasmo a organização dos e das precarizadas, a criação de cooperativas e outros arranjos baseados na solidariedade.
IHU On-Line - De que forma a tecnologia, a revolução 4.0, reconfigura a economia política da comunicação?
Helena Martins - Nas comunicações – adoto o plural para enfatizar a necessidade de pensarmos radiodifusão, telecomunicações e informática de forma conjunta, pois em interação permanente, ainda mais agora –, as transformações são profundas, ainda que se mantenham lógicas muito características da Indústria Cultural tradicional, como o estímulo a sermos, como diz Davi Kopenawa, o “povo da mercadoria” e a propaganda constante da sociedade capitalista, que é apresentada como a-histórica e, assim, como o único arranjo social possível.
Quando observamos as dinâmicas de poder e também toda a estrutura de mediação social, entretanto, as mudanças são inegáveis. Na minha tese de doutorado, analisei as transformações na radiodifusão e nas telecomunicações, considerando: ambiente político-institucional; trajetórias tecnológicas; situação da concorrência; modelo dominante de programação ou serviço e modelo de financiamento. Ao observar cada elemento, que considero como estruturantes do modo de regulação do setor, percebi que todos estavam sendo impactados pela convergência audiovisual-telecomunicações-informática, que resulta do desenvolvimento tecnológico e das mudanças mais gerais que citei inicialmente, pois também relacionada à reestruturação capitalista.
Há, em síntese, novos agentes disputando poder, dinheiro e mesmo as regras do setor. Além dos grupos tradicionais, Google, Facebook, AT&T/Time Warner, Amazon e outros conglomerados estrangeiros que têm atuação transnacional passam a incidir mais no país e particularmente na concorrência. Em 2011, o Brasil definiu em lei (a Lei 12.485, conhecida como Lei SeAC - Serviço de Acesso Condicionado) que a propriedade cruzada entre operadoras e programadoras é proibida, reservando espaços para as teles e para o setor de radiodifusão, que conseguiu proteger espaços como a TV da concorrência por causa das barreiras à entrada postas pela regra. Hoje diversos setores pressionam para o fim dessa regra. A pressão tem a ver com o crescimento do streaming e de outras modalidades de serviços que foram viabilizadas pelas tecnologias e pelo esmaecimento da diferença entre os setores provocado por elas.
Isso coloca em questão os modelos de negócio dos demais agentes em seus próprios ramos e força a adaptação deles para que possam participar da concorrência em um mercado novo, mas em permanente expansão. Não à toa vemos a Globo se reestruturar no sentido de se tornar uma “media tech”, reunindo operações e avançando no mercado OTT (over the top, na sigla em inglês). Busca, ademais, apresentar-se como capaz de ir além do contato com uma audiência massiva, pois conhece “os milhões de uns”, uma estratégia publicitária implementada para fazer frente ao direcionamento de investimentos para o digital. A Globo, aliás, que por tanto tempo pautou a cultura brasileira, hoje contrata youtubers para divulgar seus conteúdos. Se isso se faz necessário agora, imaginemos o que será com a mudança geracional...
A audiência está mais dispersa – ainda que não seja possível falar em ampla concorrência, pois para onde olhamos a concentração é alarmante (há poucos grupos dominando redes sociais, telecomunicações, radiodifusão…). Setores como de revistas e mesmo a TV paga, que nunca puderam crescer muito no Brasil devido à histórica desigualdade de renda, já sentiram esse impacto, registrando seguidas quedas na base de assinantes. Ainda que a TV aberta continue sendo muito relevante – dada a construção cultural, o poder dos grupos e inclusive porque muito da conversação que se dá em plataformas, como o Twitter, tem relação com ela –, ela não define mais a agenda de discussões da sociedade sozinha e enfrenta maior dificuldade de legitimação, inclusive cultural.
Do ponto de vista do financiamento das comunicações, também são mantidos e mesmo aprofundados modelos de negócios baseados na comercialização de produtos e na publicidade, mas com novos processos ancorados na datificação, que viabiliza maior conhecimento da audiência e oferta mais direcionada de produtos e de propaganda. O resultado desse conjunto de tendências pode ser visto nos dados do investimento publicitário. Segundo a empresa de análise de mercado eMarketer, os investimentos em anúncios em canais online em todo o mundo totalizaram US$ 283 bilhões em 2018, o equivalente a 45% do mercado, e devem chegar a US$ 333 bilhões, alcançando 50,1% da participação do setor. Ainda que a TV aberta siga recebendo parte expressiva do bolo, diferentes pesquisas têm apontado o crescimento do investimento em publicidade digital.
IHU On-Line - De que forma os campos da mídia, da política e da comunicação são impactados pelas novas tecnologias de informação e comunicação? Como esses impactos reverberam no corpo social?
Helena Martins - Política e mídia (ou comunicação, de forma mais ampla) sempre se relacionaram dialeticamente. Ao longo do século XX, com o crescimento da importância dos meios de comunicação na sociedade, eles passaram a ter muito controle da agenda de debates na sociedade. Existir ou não socialmente passava, e ainda passa, por aparecer na mídia. Não à toa temos modos de vida, culturas contra-hegemônicas e mesmo regiões do país desconhecidos, porque invisibilizados. A própria percepção das pessoas sobre a política é, em grande medida, influenciada pela mídia (e aqui abro parênteses para mencionar que a mídia costuma construir um comportamento adversarial em relação à política, como vários estudos mostram).
A outra face desse processo é a transformação do próprio fazer político. Até hoje sabemos que muitas alianças são forjadas a partir do cálculo do tempo no Horário Eleitoral Gratuito. E basta olhar a prestação de contas dos candidatos para vermos a importância dos gastos em comunicação nas campanhas. Mas a mudança é mais sutil e, simultaneamente, penetrante. Nas últimas décadas, vimos a política se tornar mais pautada pela gramática midiática. A dimensão publicitária ganhou espaço, fazendo com que a apresentação se tornasse mais relevante do que a discussão de projetos. Além disso, são inegáveis as táticas de manipulação ou modulação de comportamentos que ontem e hoje influenciam a política.
Quanto à reverberação no “corpo social”, gostaria de destacar que há toda uma nova estrutura de mediação social sendo forjada em associação com o desenvolvimento tecnológico e que merece análise dedicada. Nas respostas anteriores, mencionei mudanças específicas nas comunicações, mas é fundamental considerar que não se trata de um setor qualquer. Trata-se de um espaço de produção de sentidos sobre o mundo e de cultura. Assim como, a meu ver, não é possível dissociar todo o desenvolvimento das tecnologias da globalização e do neoliberalismo nas últimas décadas, também não é possível imaginar que a proliferação de uma cultura individualista, consumista, ancorada no tempo presente se fez e faz de forma dissociada da comunicação.
Essa construção atualmente se dá de forma mais opaca, pois incorporada ao design dos dispositivos e organizada por algoritmos que desconhecemos, embora definam os conteúdos que recebemos, as emoções que podemos registrar, a forma como devemos escrever etc. Resultados disso – e, claro, da atuação de grupos políticos que agem intencionalmente para promover desagregação social e disputar os sentidos da história – podem ser vistos nas campanhas de desinformação que, concretamente, ameaçam democracias em todo o mundo, inclusive no Brasil.
Não quero, com isso, desconsiderar que as pessoas também promovem usos sociais, que inclusive podem ir de encontro aos projetados pelas companhias. Também não posso deixar de apontar que temos mais acesso a informações e meios para maior participação na vida pública. Devemos sempre lembrar essas questões para que não percamos de vista nem deixemos de mobilizar nossa imaginação política para outros usos possíveis (para planejar a cidade, consultar a população, acessar cultura etc.). Mas essas não são as tendências hegemônicas. A tendência hegemônica, a meu ver, é a de desenvolvimento de formas contemporâneas de corpos e mentes. Reconhecer isso é importante para que comuniquemos à sociedade a necessidade de ampliarmos a disputa em torno do desenvolvimento tecnológico.
IHU On-Line - Como compreende o chamado processo de uberização? Quais seus impactos nos modos de vida, desde a comunicação às relações sociais e de trabalho?
Helena Martins - Tenho dialogado sobre o tema na equipe editorial da Revista Eptic, composta pelos professores César Bolaño, Jonas Valente, Manoel Dourado Bastos, Rodrigo Moreno Marques e Patrícia Maurício. Nesses diálogos, sempre enfatizamos a necessidade de não generalizarmos o que ocorre nas diferentes plataformas digitais, sob o risco de reduzirmos nossa compreensão sobre elas. Com Marx, distinguimos os processos materiais de produção e as formas sociais desses processos. As pesquisas têm que buscar perceber as formas sociais, as relações sociais de produção. Ao contrário, temos visto rótulos como “trabalho digital” crescerem, tornando o digital a qualidade principal, o que me parece um equívoco. Além do mais, essa generalização perde em capacidade explicativa.
Digo isso porque o termo “uberização” ganhou muita relevância, mas ele explica o Uber e não o Airbnb, por exemplo. Em comum, parece haver elementos como: a mediação de plataformas digitais (mediação entre várias etapas do processo produtivo e entre diferentes agentes, como trabalhadores e consumidores); relações de trabalho extremamente precárias; maior controle do processo e do trabalhador pelas corporações; subsunção intelectual das equipes que lidam com os sistemas; ausência de regulação socialmente pactuada sobre as atividades.
No caso do Uber, há uma ocultação da relação salarial, mas entendo que os trabalhadores recebem um salário por peça (no caso, depende do frete ou da corrida). Como diagnosticado por Marx ainda no século XIX, o trabalhador submetido a esse processo de trabalho tem sua jornada de trabalho bastante expandida. Ele também busca se envolver o mais intensamente possível na atividade, já que dele depende a conquista do dinheiro necessário à sobrevivência. Não à toa vemos tantos motoristas trabalharem 12, 14 horas. Como mencionei antes, a esse trabalhador é dito que ele é um empresário responsável pelo seu sucesso. Mas ora, ele não controla o preço dinâmico, a oferta das corridas. Pode ser desligado da empresa facilmente. Ele não coordena o processo. Ele é controlado por ele. Mas o impacto subjetivo disso é enorme e só vai ser revertido com a auto-organização dessas diferentes categorias, o que felizmente tem crescido no mundo e no Brasil.
IHU On-Line - O que está em jogo no debate sobre a regulação e vigilância de dispositivos tecnológicos? Como observa as formas como os Estados vêm tentando regular empresas que atuam na área de tecnologia da informação e comunicação?
Helena Martins - A vigilância cresce porque amplia as formas de controle da população e porque consiste em um mercado potencial. Muitas empresas têm investido em todo o mundo nesse setor – como em outros, a exemplo dos que utilizam dados para a saúde. A legitimidade social é garantida porque o medo se tornou um elemento central na vida das pessoas, sem que respostas adequadas ao fenômeno da violência tenham sido apresentadas. Mas há outras questões que também corroboram com a naturalização e viabilizam a expansão das tecnologias de vigilância, como a percepção, amplamente difundida, de que as tecnologias são neutras, modernas e sempre positivas. No caso da pandemia do coronavírus, vimos a síntese dessas questões, o que levou à ampliação da penetração de tecnologias vigilantistas na sociedade.
Ao apresentar a tecnologia como saída de forma simplista, omite-se o fato de ela não ser neutra, podendo ser desenvolvida para atender objetivos de políticas que viabilizam a vigilância estatal e das corporações sobre a população, como denunciou Edward Snowden. Não se fala que ela pode incorporar vieses, inclusive de gênero, racial e de classe, o que facilmente levará a um uso voltado sobretudo para setores já estigmatizados. Em políticas como de reconhecimento facial, por exemplo, serão pessoas negras as consideradas, a priori, “suspeitas” e a terem sua circulação na cidade ainda mais limitada e sujeita a constrangimentos.
Além disso, esse “solucionismo tecnológico”, que muitas vezes faz deslocar o papel do Estado como garantidor de políticas e transferir para a iniciativa privada a organização de atividades fundamentais, mascara o fato de sua eficácia não estar comprovada. Uma pesquisa feita pela Universidade de Essex, no Reino Unido, analisou 42 casos de reconhecimento facial e concluiu que houve acerto em apenas oito deles, menos de 20%. Por esses motivos, bem como pelo fato de que o vigilantismo ameaça, a começar pelo direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, tem crescido no mundo um movimento que pede uma moratória no uso dessas tecnologias. Caso bastante comentado, na cidade de São Francisco (EUA), berço do Vale do Silício e de suas inovações, o uso de reconhecimento facial em locais públicos por agências governamentais foi banido.
IHU On-Line - Quais os desafios para hoje se discutir a democratização da comunicação? Como iniciar esse processo diante das tecnologias de informação e comunicação do século XXI?
Helena Martins - Precisamos defender que o acesso à internet é um direito. Sabemos que são pessoas pobres, negras, moradoras de comunidades periféricas ou de territórios que não interessam o mercado as que permanecem desconectadas. O que a pandemia revela de forma muito bruta é o fato de que a desigualdade social não apenas é reafirmada, mas se amplia a partir do critério do acesso. Se a pessoa não possui internet, não tem educação, cultura, lazer e até trabalho.
Além disso, pautas históricas como enfrentamento da concentração, garantia de pluralidade e diversidade e necessidade de educação para a mídia continuam centrais. Não falamos aqui do problema da radiodifusão, mas basta ligar a televisão para compreender que o conservadorismo – machismo e racismo especialmente – é alimentado todos os dias por grupos que se valem de concessões públicas ou que arrendam ilegalmente parte da programação. Essas pautas foram atualizadas também para as plataformas digitais, que estão ainda mais presentes e penetrantes em nosso cotidiano. Estas se combinam com pautas como a proteção dos dados pessoais. No filme O Dilema das redes (Netflix), a professora Shoshana Zuboff, que tem desenvolvido e divulgado o conceito de capitalismo de vigilância, faz uma fala provocadora, comparando que, assim como o mundo proibiu o comércio de pessoas e de órgãos, é preciso proibir o de dados pessoais. É essa a magnitude do problema.
IHU On-Line - O que hoje, no contexto brasileiro, é imperativo para assegurar e amplificar as conquistas do processo democrático? Como absorver as novas formas de tecnologia da informação e comunicação nesse processo?
Helena Martins - O Brasil precisa parar Jair Bolsonaro. As instituições e a sociedade brasileira, em geral, têm que impedir que esse governo, que já tem no colo mais de 50 processos de impeachment, continue destruindo passado, presente e futuro. Mas esse enfrentamento não se dá só no plano institucional. É preciso disputar sentidos, apresentar novo projeto de país, que encante, mobilize as pessoas e mostre que pode ser diferente. Um projeto que dê centralidade ao enfrentamento da crise climática e também às mudanças tecnológicas. Podem parecer questões distantes, mas não são. Poderíamos contar com as tecnologias para promover planejamento dos bens comuns, reduzir emissões, promover informações, fomentar uma cultura que supere a dissociação entre sociedade e natureza. É preciso, pois, alterar a rota que pauta a inserção das tecnologias na sociedade, hoje guiada por corporações que estão no topo das consideradas mais valiosas do mundo. Não faremos isso sem ampliar o debate público sobre o tema, exigir transparência das plataformas digitais, desenvolver políticas que fomentem o acesso e, paralelamente, o empoderamento digital dos e das cidadãs.
[1] Esses sistemas de produção flexível permitiram uma aceleração do ritmo da inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado altamente especializados e de pequena escala – ao mesmo tempo em que dependeram dela. Em condições recessivas e de aumento da competição, o impulso de explorar essas possibilidades tornou-se fundamental para a sobrevivência. O tempo de giro – que sempre é uma chave da lucratividade capitalista – foi reduzido de modo dramático pelo uso de novas tecnologias produtivas (automação, robôs) e de novas formas organizacionais (como o sistema de estoque “just-in-time”, que corta dramaticamente a quantidade de material necessária para manter a produção fluindo). (HARVEY, 2012, p. 148). (Nota da entrevistada)