Ser empreendedor de si mesmo, enfrentar os desafios do mundo atual e colocar-se à frente. Essas são as máximas que endossam uma ideia de modernidade nas relações de trabalho. Afinal, deixa-se a realidade fabril do antigo operário e se passa a pensar na autonomia do trabalhador multiplataforma. Mas, de fato, isso representa avanço nas relações de trabalho? Para Ludmila Abílio, doutora em Ciências Sociais, é óbvio que não. Pelo contrário, acredita que lógicas como a da uberização [como a dos motoristas de aplicativo e sua relação com a empresa, a Uber] representam uma fragilização dessas relações. É como colocar o trabalhador sozinho numa selva para, sem articulação de grupo, enfrentar as feras e assegurar a subsistência. “A uberização do trabalho evidencia uma nova forma de organização, gerenciamento e controle do trabalho. Ela pode ser sintetizada como a consolidação do trabalhador em trabalhador just in time. Ou seja, um trabalhador inteiramente desprovido de direitos, garantias, segurança”, sintetiza.
Mas é ainda mais do que isso. Segundo Ludmila, compreender o trabalho hoje passa por compreender as transformações do capital no século XXI. Segundo a cientista social, somos configurados num dueto de trabalhadores/consumidores. “Hoje se torna mais claro e reconhecível a incorporação do consumo no processo de trabalho. Se, por um lado, temos uma multidão de trabalhadores, por outro, temos o gerente coletivo terceirizado na forma da multidão de consumidores engajados e confiantes no seu papel gratuito de vigias do trabalho”, aponta.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ludmila ainda vai demonstrando como essa ideia de avanço, modernização das relações de trabalho não revelam, em essência, nada de novo. “A uberização também consolida o trabalho como trabalho amador, ou seja, um trabalho que opera e aparece como trabalho, mas que não confere identidade profissional, não se forma como profissão, tem alta maleabilidade e flexibilidade na sua própria caracterização”, analisa. Ou seja, se vende a ideia de liberdade e autonomia do trabalhador, mas ele é, na verdade, muito mais subordinado, não alcançando sequer o status de profissional ou mesmo subutilizando a sua formação profissional. “Basta pensarmos no motorista Uber, engenheiro autônomo de dia, motorista à noite; no desempregado que torna o próprio carro seu instrumento de trabalho, no trabalhar nas horas vagas; no tornar-se motorista do dia para noite; e assim vai se constituindo a multidão de trabalhadores engajados, que definem suas próprias estratégias de trabalho, seu envolvimento com a ocupação, sua jornada”, exemplifica.
Entretanto, para Ludmila há ainda, mesmo que incipiente, uma luz no fim do túnel, formas de resistência a essas lógicas. “Há movimentos dos trabalhadores, há movimentos no campo do direito voltados para novas formas de regulação e reconhecimento da subordinação, há reações populares que vão colocando em xeque os limites destas formas de organização do trabalho, enfim, as resistências estão se formando e em movimento”, reflete.
Ludmila Abílio (Foto: Nupecs)
Ludmila Costhek Abílio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Possui graduação em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP e mestrado em Sociologia pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado na USP, pesquisando sobre a chamada nova classe média brasileira, tratando da relação entre exploração do trabalho e acumulação capitalista na última década, com estudo empírico sobre o trabalho dos motofretistas na cidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit, na Faculdade de Economia da Unicamp, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre Desenvolvimento, atuais políticas de austeridade e as transformações do trabalho no Brasil.
IHU On-Line – Como compreender as relações entre trabalho e consumo no atual contexto do capitalismo contemporâneo?
Ludmila Abílio – Esta é uma questão complexa, que pode ser abordada por múltiplos aspectos. Sua complexidade se deve pela fusão entre consumo e trabalho, entre tempo livre e tempo de trabalho, numa crescente indistinção entre o que é o que não é trabalho. Isto ocorre de diversas maneiras, em diferentes âmbitos. Ao tratar da Mcdonaldização da sociedade [The McDonaldization of Society: Into the Digital Age. SAGE Publications: 1993], George Ritzer, assim como Isleide Fontenelle em O nome da marca [O Nome da Marca. McDonald's, Fetichismo e Cultura Descartável. Boitempo: 2002], já evidenciavam uma nova racionalidade que se constitui na esfera do consumo, que coloca o consumidor como parte da engrenagem taylorista que se estendeu e se atualizou para os serviços. Tratava-se, então, de ver como a taylorização dos serviços conta com a participação ativa do consumidor, o qual, no ato do consumo também está disciplinarizado e é parte ativa desta esteira imaterial que vai se organizando em diversas atividades dos serviços.
Com o desenvolvimento das tecnologias da informação, esta imbricação opera em outras lógicas (talvez com a mesma racionalidade?) e esferas, nos desafiando a compreender o que é e o que não é trabalho. O saudoso mestre Francisco de Oliveira nos abria um caminho para a reflexão no início do século XXI, ao pensar em termos da plenitude do trabalho abstrato, algo que pode ser compreendido de diferentes maneiras. Trata-se de atividades que operam como lazer, como economia de tempo na reprodução social do trabalhador, que não têm a forma concreta do trabalho, mas que para o lado das empresas se traduzem em uma imensa possibilidade de eliminação de trabalhadores, de estruturas físicas, de custos e riscos da produção e da distribuição. Oliveira mirava na imensa eliminação de postos de trabalho dos bancos, que em parte se assentou na possibilidade de colocar o consumidor para trabalhar.
Entretanto, este trabalho – eu pagando uma conta em meu celular – não tem a forma socialmente definida do trabalho e, para mim, enquanto consumidor, não é experenciado como trabalho, mas como a possibilidade de economia de meu tempo; já para a empresa se realiza como trabalho não pago e/ou eliminação de custos. Isto se passa em diversas esferas da vida, vamos desempenhando atividades que nos são terceirizadas sem ter a forma trabalho, mas que do lado de lá operam como trabalho não pago.
Da imbricação entre consumo e trabalho que nos aparece como economia de tempo para nossa própria reprodução social, passamos para algo ainda mais complexo, que envolve a compreensão sobre as formas contemporâneas da valorização e a indistinção entre consumo e trabalho. Quando olhamos para a multidão produtiva do Facebook, para a multidão de youtubers produtores e consumidores, abre-se uma série de questões sobre o que valoriza estas plataformas, sobre as motivações subjetivas dos usuários, sobre se é possível pensar em termos de trabalho, tempo de trabalho. Mas independente do caminho que se tome sobre a valorização, o fato é que a multidão de usuários está engajada e opera enquanto multidão, sua atividade é a matéria-prima, o trabalho vivo, o produto/mercadoria, difícil definir ou distinguir todos estes elementos, de fato já não há como pensá-los separadamente nestes casos.
A uberização do trabalho parece conferir a todos estes elementos uma materialidade, no sentido de que hoje se torna mais clara e reconhecível a incorporação do consumo no processo de trabalho. Se, por um lado, temos uma multidão de trabalhadores, por outro, temos o gerente coletivo terceirizado na forma da multidão de consumidores engajados e confiantes no seu papel gratuito de vigias do trabalho. Mas temos que compreender que em realidade se trata de uma triangulação entre consumo, trabalho e vigilância, se é que é possível pensá-los separadamente.
Consumidor e trabalhador hoje se apresentam como a matéria-prima em ato – pois é na sua atividade que isto se produz – dos dados a serem extraídos, minerados, incorporados como fonte fundamental das novas formas de controle e gerenciamento do trabalho. A vida cotidiana hoje, como nos mostra Shoshana Zuboff, apresenta-se como fonte das mais diversas formas de mercantilização e controle; seu argumento vai bem mais longe, trata-se de predizer e então conduzir comportamentos, nos termos que aqui nos interessam: a multidão de trabalhadores, na sua atividade, produz/fornece as próprias informações que serão utilizadas como meio para lhes colocar para trabalhar, lhes gerenciar, estimular sua produtividade, distribuir o trabalho no tempo e no espaço.
IHU On-Line – Em que consiste a perspectiva da uberização do trabalho? Qual a questão de fundo dessa perspectiva que fragiliza as relações de trabalho e que relações podemos estabelecer com o capitalismo contemporâneo?
Ludmila Abílio – A uberização do trabalho evidencia uma nova forma de organização, gerenciamento e controle do trabalho. Ela pode ser sintetizada como a consolidação do trabalhador em trabalhador just in time. Ou seja, um trabalhador inteiramente desprovido de direitos, garantias, segurança – seja em relação à sua remuneração, seja em relação às suas condições de trabalho. Ficam abolidas as regulações sobre tempo de trabalho, remuneração, proteção. Um trabalhador que é gerente de si próprio, responsável pela definição de suas estratégias de sobrevivência, livre “como um pássaro” – diria Marx – para mobilizar os meios que lhe garantam a permanência e sua reprodução em meio a uma concorrência que opera em novas bases – não há vagas, não há contingente predefinido de trabalhadores, não há demissão, há uma multidão que concorre entre si.
Ser just in time é ser utilizado na medida das demandas do mercado e ao mesmo tempo estar permanentemente mobilizado e disponível ao trabalho. Veja o motorista Uber parado 12 horas na fila do aeroporto, são 12 horas de trabalho, mas a remuneração será pela corrida que lhe for designada. Veja os cientistas amadores da plataforma Innocentive, resolutores de desafios que depois serão patenteados pelas corporações, mobilizam-se, engajam-se, mas só são remunerados – “premiados” – se tiverem sua solução escolhida.
Ao longo destas décadas, ficou evidente que a flexibilização do trabalho envolvia formas extremamente eficazes de transferência de custos e riscos, ficou claro que era possível dispersar o trabalho e manter o controle sobre o mesmo. Também ficou evidente que era possível transferir o gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador, obviamente que um gerenciamento subordinado, o que se expressa no home office, no trabalho por metas, nas formas toyotistas de organização do trabalho.
A uberização do trabalho envolve estes elementos em um novo nível. Empresas aparecem como mediadoras entre trabalhadores e consumidores. Trabalhadores se tornam microempreendedores, autônomos. Novas formas de gestão operam nesta relação, mediadas pelo desenvolvimento de uma gestão mediada por algoritmos e a Inteligência Artificial, ou seja, pela possibilidade de mapear, controlar e gerenciar inteiramente o processo de trabalho que agora pode envolver milhares de pessoas.
A uberização também consolida o trabalho como trabalho amador, ou seja, um trabalho que opera e aparece como trabalho, mas que não confere identidade profissional, não se forma como profissão, tem alta maleabilidade e flexibilidade na sua própria caracterização. A uberização dá visibilidade à subordinação produtiva do trabalho amador e de sua relação com o crowdsourcing. Basta pensarmos no motorista Uber, engenheiro autônomo de dia, motorista à noite; no desempregado que torna o próprio carro seu instrumento de trabalho, no trabalhar nas horas vagas; no tornar-se motorista do dia para noite; e assim vai se constituindo a multidão de trabalhadores engajados, que definem suas próprias estratégias de trabalho, seu envolvimento com a ocupação, sua jornada. Tornam-se nanoempreendedores de si próprios, ao mesmo tempo em que estão subordinados às regras e ao gerenciamento de uma empresa que aparece como uma simples mediadora. O mercado já tem nome para tudo isso, mas os estudos do trabalho têm que alcançar ainda o ritmo destas transformações.
Ao mesmo tempo, o que parece a grande novidade da uberização, também é uma atualização de características permanentes do mercado de trabalho brasileiro, por exemplo. A viração, a alta rotatividade do mercado de trabalho, a integração entre o trabalho formal e o trabalho informal, o trânsito permanente de trabalhadores por um e outro são elementos estruturais do mercado de trabalho brasileiro, e muito pouco evidenciados na sua importância. A uberização assenta-se nesse autogerenciamento de si, que envolve a polivalência precária, o trânsito por diversas ocupações. Entretanto, estes elementos persistentemente compreendidos como os resíduos da modernização periférica, agora têm nova visibilidade: a gig economy, termo utilizado para se referir a atividades da Economia Compartilhada, às ocupações instáveis e precárias.
IHU On-Line – De que forma tem apreendido os impactos da reforma trabalhista no mundo do trabalho? E como compreender a constituição do mito das modernizações das relações de trabalho, tão recorrente entre os defensores das reformas?
Ludmila Abílio – Uma primeira questão importante é entender que de fato essa reforma altera a natureza do papel do Estado na relação entre capital e trabalho. Obviamente que o Estado tem historicamente o papel de não só garantir como legitimar os interesses do capital, mas há uma mudança que não é meramente discursiva, a reforma trabalhista institui uma nova concepção sobre o trabalhador, que de sujeito a ser protegido e assegurado – em uma relação que por sua natureza capitalista está assentada em uma desigualdade de saída –, passa agora a ser definido como um agente econômico em condições de negociar os termos de sua própria relação de trabalho. Trata-se de uma modernização capitalista, refinada e ao mesmo tempo brutal, na medida em que mira e mina as forças coletivas do trabalho, ao mesmo tempo em que institui diferentes possibilidades legais de intensificação, extensão do tempo de trabalho, rebaixamento do valor da força de trabalho, eliminação de proteções, de garantias em torno da segurança e da saúde do(a) trabalhador(a).
A reforma apresenta um projeto amplo e estratégico, voltado ao aprofundamento da exploração do trabalho, à informalização do trabalho e ao mesmo tempo ao ataque às possibilidades de resistência e negociação. Trata-se de um cardápio de opções, que, longe do objetivo de gerar empregos, na realidade têm em seu cerne a eliminação de freios historicamente conquistados à exploração do trabalho. Ela é uma modernização no sentido que cumpre o que o atual presidente bem explicitou, o modelo para o mundo do trabalho é o modelo do trabalho informal. Veja que declaração nua e crua que evidencia para onde caminhamos, o Estado deixa explícito seu papel na promoção de um mundo do trabalho costurado pela concorrência e pelo salve-se quem puder.
IHU On-Line – Quais são as marcas históricas do mercado – e das relações – de trabalho no Brasil? E como essas marcas vêm se atualizando a partir da reforma trabalhista e da uberização?
Ludmila Abílio – O pensamento social brasileiro é fortemente atravessado por uma tendência permanente de invisibilização da classe trabalhadora. Num pensamento orientado pelo devir fordista e por uma noção de progresso, a classe trabalhadora periférica pode ser constantemente analisada pelo que não é: o trabalho informal aparece como simples espelho invertido do trabalho formal, a população informal, de baixa qualificação e rendimento é o excedente que ocupa as margens do desenvolvimento, o atraso dos que ainda não cabem no trem da modernização. Esta estrutura de pensamento é extremamente poderosa na classificação entre os que estão dentro/fora, os integrados/não integrados (futuros integráveis) – e se repôs em novas dualidades na teoria social brasileira contemporânea, tais como o subproletariado/proletariado, ralé/batalhadores.
Trata-se de traçar linhas divisórias que obscurecem o viver dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, que ignoram a realidade de trajetórias que compõem o mundo do trabalho num movimento muito mais intenso e complexo do que as categorias estanques buscam fixar. A definição de viração (emprestando o termo usado tal qual utilizado por Vera Telles ao desfazer a indistinção e o vazio do termo “pobreza”) dá movimento às experiências da classe trabalhadora e ao próprio mundo do trabalho, evidenciando nossa pobreza explicativa sobre o que nos faz enquanto periferia. Estratégias cotidianas, autogerenciamento permanente, indistinções entre o que é trabalho e o que não é, trânsito e acúmulo de diferentes ocupações, são elementos que tecem o mundo do trabalho para a maioria dos brasileiros, e mais do que isto, são constitutivos da forma específica do desenvolvimento e da acumulação periféricos.
A questão agora se torna mais complexa, quando da invisibilização dos de “fora”, que então eram concebidos como potencialmente integráveis, decretamos a descartabilidade social como a fonte explicativa de nosso presente e futuro. Ninguém sabe mais para onde vai o tal trem-bala da modernização. A crescente massa carcerária hoje é o emblema maior desse pensamento, apresentada como uma espécie de confirmação de que, frente à crise estrutural do capital, resta a gestão via extermínio, encarceramento ou apaziguamento via políticas sociais. Dialeticamente, as prisões se tornaram um grande negócio, não só na sua privatização, mas por serem excelentes fornecedoras de trabalho inteiramente não pago ou extremamente rebaixado, compondo cada vez mais elos das mais diversas cadeias produtivas, além de integrarem a máquina produtiva e lucrativa de guerra, que sempre esteve no cerne do desenvolvimento e da acumulação capitalistas.
A uberização do trabalho torna-se mais relevante quando a compreendemos não apenas como mais uma forma de flexibilização do trabalho, mas como uma subordinação produtiva e centralizada de um modo de vida que é o da periferia, o qual agora vai se generalizando. A uberização também poderia ser nomeada de informalização das relações de trabalho (inclusive do trabalho formal), mas um novo tipo de informalização, na medida em que a viração que costura a sobrevivência – e sempre costurou – de grande parte da população brasileira agora é subsumida realmente, ou seja, de forma produtiva, organizada, centralizada, monopolizada.
Mas a viração – que nunca foi exceção, apenas num pensamento dualista que se organiza pela dualidade margem/centro – agora se espraia para frações da classe trabalhadora antes minimamente contempladas pelas regulações do trabalho, seja no centro, seja na periferia. A reforma trabalhista capta essa tendência já em curso no mundo do trabalho e coloca o Estado como promotor, legalizador e legitimador destes processos.
Neste sentido, é preciso mirar nos atores que têm uma visão complexa do mundo do trabalho, das formas de vida da população brasileira, do sistema educacional e que estão, de forma bem-sucedida, desenhando e implementando projetos que garantem a mercantilização de novas esferas da vida, livre exploração do trabalho – sempre é possível piorar –, financeirização da vida, formação dos futuros trabalhadores. Isto está evidente nos projetos da reforma da Previdência, nos projetos para a educação, na reforma trabalhista.
IHU On-Line – Como fazer resistência diante desses avanços da fragilização das relações de trabalho?
Ludmila Abílio – Em relação à uberização, uma saída que se desenha no horizonte brasileiro, e que será um desfecho medíocre e que não trará segurança, proteção ou estabilidade para os trabalhadores, é a sua regularização como Microempreendedores Individuais - MEI, o que, se assim acontecer, significará simplesmente sua legalização como autônomos, ou seja, a legalização da desresponsabilização das empresas.
A reforma trabalhista foi aprovada de forma tenebrosa, uma grande derrota para todos os trabalhadores; isso será sentido mais claramente em alguns anos. A reforma da Previdência repete o mantra da inevitabilidade e do lema que embasa as políticas neoliberais: “emprego acima de tudo, finanças acima de todos” (sendo que, nestas políticas, só a segunda de fato está entre nós). Ainda, há um desconhecimento generalizado sobre as mudanças promovidas pela reforma trabalhista, assim como as propostas pela Previdência.
Por outro lado, as organizações coletivas, as forças do trabalho estão permanentemente se reconstituindo na relação com estas mudanças. Por todo mundo estamos vendo movimentos de trabalhadores que estão se apropriando politicamente da sua condição de multidão. Provavelmente a primeira de muitas, vimos recentemente a greve mundial de motoristas Uber. Há sindicatos de trabalhadores por aplicativos, há novas formas de associação que recusam os sindicatos mas se pensam coletivamente. Vimos a potência de uma greve de caminhoneiros autônomos – independentemente de suas diferentes motivações, não se pode invisibilizar o fato de que esta é uma ocupação que vem se reconfigurando e estas reconfigurações – de degradação das condições de trabalho – também produziram novas formas de organização.
A uberização está extremamente visível, mas recentemente parece que o anestesiamento social frente à exploração do trabalho foi abalado, algo inesperado ante a banalização da esfolação cotidiana que é regra. A figura de ciclistas pedalando 12 horas por dia uma bicicleta alugada em meio ao trânsito de São Paulo, carregando nas costas as caixas com as marcas das empresas-aplicativo, materializou-se como o “símbolo do trabalho no século XXI”, memes circularam aos montes, foram feitas diversas pesquisas e reportagens sobre sua condição de trabalho. Algum tempo depois, a morte do motoboy Tiago de Jesus Dias durante uma entrega evidenciou de forma trágica e crua as injustiças, a exploração, a ausência de responsabilização da empresa e do Estado.
Na Espanha, caixas do aplicativo Glovo foram incendiadas em Barcelona, em protesto pela morte de um motoboy. Há movimentos dos trabalhadores, há movimentos no campo do direito voltados para novas formas de regulação e reconhecimento da subordinação, há reações populares que vão colocando em xeque os limites destas formas de organização do trabalho, enfim, as resistências estão se formando e em movimento. Mas são contrarreações, há uma ausência/pouca visibilidade/nenhuma legitimidade de projetos de esquerda que proponham outros caminhos. Pautar projetos políticos mirando na relação capital-trabalho hoje é coisa da “velha esquerda”... de fato é uma vitória do não há alternativa.
IHU On-Line – Como observa o futuro das relações de trabalho no Brasil?
Ludmila Abílio – Intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho, rebaixamento do valor da força de trabalho, tanto no trabalho formal como informal. A informalização está de fato operando como modelo e horizonte das relações de trabalho, além de uma já em curso informalização do trabalho formal. Direitos já se tornaram privilégios em um mundo do trabalho cada vez mais costurado pelo autogerenciamento e a redução do trabalhador a trabalhador just in time.
Pensar no futuro do trabalho hoje, parece ter alguns caminhos analíticos possíveis, o do apocalipse decretado a partir da própria esquerda – na constatação do fim da “sociedade do trabalho” – que se olharmos bem de perto é um adeus às décadas do Estado do Bem-estar social que não nos couberam em realidade. Trata-se de um olhar que mira na tendência autodestrutiva do capitalismo – mas se esquece das contratendências que se formam com ela –, constatando uma overdose que acaba eximindo a própria esquerda de se pensar como sujeito da transformação. Há o imediato futuro do “future-se”, ou seja, a consolidação dos trabalhadores – de diferentes qualificações e rendimentos – em nanoempreendedores de si próprios, concorrentes entre si e ao mesmo tempo submetidos a uma cooperação subordinada que já não lhes garante nada além do que um lugar pela luta por sua própria reprodução social – simbólica e material. Ainda, pelo andar da carruagem, temos de pensar na ampliação e aprofundamento dos adoecimentos de diversas ordens que vão povoando o cotidiano do trabalho.
O presente projeto colonial já não traz qualquer promessa, o mundo do trabalho apresenta-se como um campo de batalhas onde muito pouco ou quase nada está garantido. A democratização é do sofrimento, não da justiça social. Mas nosso projeto era o da social-democracia? Qual justiça social? Podemos ousar imaginar que possíveis caminhos se abrem frente a este desvanecimento dos horizontes e mediações – capitalistas – que se ergueram em torno das noções – capitalistas – de progresso, democracia, desenvolvimento e inclusão pelo trabalho?