Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | 20 Dezembro 2016
“Em todos os nossos encontros, assim como no encontro dele com outros ativistas, Dom Paulo iniciava e terminava os encontros com esta expressão: Coragem. E ele deu o exemplo mais completo e marcante da atitude corajosa em todas as circunstâncias, fossem quais fossem os personagens e os obstáculos a serem enfrentados”, diz Dalmo Dallari à IHU On-Line, ao recordar sua convivência com Dom Paulo Evaristo Arns durante os anos da ditadura militar, quando trabalharam juntos na Comissão Justiça e Paz e nos presídios brasileiros.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Dallari relembra sua atuação junto a Dom Paulo durante a ditadura militar e diz que ele foi o primeiro a introduzir “na linguagem brasileira a expressão Direitos Humanos” e “nunca fez nem permitiu que se fizesse qualquer distinção entre os necessitados de apoio, jamais admitindo se os que necessitavam de proteção e apoio eram católicos, comunistas ou se pertenciam a alguma religião ou grupo político”.
Dalmo Dallari | Foto: Jornal GGN
Dalmo Dallari é formado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP. Entre suas obras, citamos O futuro do Estado (São Paulo: Saraiva, 2001) e Elementos de Teoria Geral do Estado (26. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007). É professor emérito da Faculdade de Direito da USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a imagem mais forte de Dom Paulo Evaristo Arns que fica na sua memória?
Dalmo Dallari - Personalidade extremamente rica, Dom Paulo procurava sempre dar sentido prático a suas crenças e convicções, podendo-se ressaltar três características que marcavam o seu desempenho. Em primeiro lugar, Dom Paulo era essencialmente humanista, espírito fraterno, considerando que era seu dever fazer o que fosse possível para dar proteção e assistência aos marginalizados e perseguidos, sem qualquer distinção de caráter religioso ou político. Na busca desses objetivos, Dom Paulo era absolutamente corajoso, enfrentando com firmeza e serenidade as resistências dentro da Igreja e em toda a sociedade. A par disso, Dom Paulo era um líder com absoluto sentido prático e objetividade, que concebia e acolhia as soluções mais adequadas para dar efetividade aos seus objetivos.
IHU On-Line - Uma das principais marcas de Dom Paulo foi sua luta pelos Direitos Humanos durante a ditadura militar brasileira. Como foi a aproximação dele com a ditadura? O que o sensibilizou e o fez despertar para o drama que se vivia à época?
Dalmo Dallari - Pouco depois do golpe civil-militar de 1964, que implantou a ditadura no Brasil, Dom Paulo começou a ser procurado por familiares de trabalhadores modestos, que haviam sido presos e tiveram as residências vasculhadas e os familiares ameaçados, por serem militantes sindicais que participavam das reivindicações por uma sociedade mais justa, o que foi maliciosamente rotulado de “perigo comunista”. Procurando dar proteção às famílias e obter a soltura dos presos, Dom Paulo chegou a ir a presídios, mas logo percebeu que havia enormes resistências e muita violência, com as residências vasculhadas e a realização de prisões, sem qualquer respeito pelas pessoas e por seus direitos, havendo casos em que não se conseguia saber se o trabalhador perseguido continuava vivo ou para qual presídio ele havia sido conduzido. Dom Paulo logo percebeu que havia a necessidade de obter a ajuda de advogados para dar proteção às famílias e tentar obter a soltura dos presos. E por isso procurou criar os meios mais eficientes para enfrentar as resistências ao seu trabalho de proteção e assistência às vítimas da ditadura.
IHU On-Line - Dom Paulo também foi figura importante na fundação da Comissão Justiça e Paz. Como se deu a criação da Comissão, qual era o ambiente político e como o cardeal se movimentou para organizá-la?
Dalmo Dallari - Para dar resposta a essas indagações, é necessário ampliar a perspectiva histórica. Em 1965 o Concílio Vaticano II manifestou o entendimento de que considerava necessária e oportuna a criação de um organismo da Igreja que procurasse despertar a consciência dos católicos para a busca de progresso das regiões indigentes e para o estabelecimento da Justiça Social entre os povos, superando ou reduzindo as consequências da diferenciação entre povos ricos e pobres. Nessa linha, o Papa Paulo VI criou em janeiro de 1967 a Comissão Pontifícia Justiça e Paz, integrada por padres representantes de todos os continentes, tendo como um de seus principais objetivos o estudo dos grandes problemas de Justiça Social. Em complemento a isso, criou um Conselho de Leigos, para dar apoio a esse trabalho.
Em sua primeira reunião, realizada em outubro de 1969, a Comissão Justiça e Paz sugeriu que as Conferências Episcopais regionais criassem organizações similares em seus respectivos territórios. Logo em seguida foi realizada a Conferência de Medellín, na Colômbia, reunindo o episcopado latino-americano, ocasião em que foi cunhada a expressão “opção preferencial pelos pobres”. Retornando ao Brasil, os bispos brasileiros que haviam participado daquela Conferência decidiram criar uma Comissão Brasileira de Justiça e Paz, que foi instalada no Rio de Janeiro, em 1969, com o nome de Comissão Pontifícia Justiça e Paz – Seção Brasileira. Aqui é importante assinalar que em dezembro de 1968 o governo ditatorial tinha publicado o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que ampliou enormemente as ações ditatoriais, cassando mandatos, suspendendo a proteção a direitos fundamentais e determinando maior violência na repressão às propostas e iniciativas democratizantes.
Um dado relevante é o fato de que uma parte dos bispos católicos deu apoio ao AI-5, enquanto alguns, muito poucos, entre os quais Dom Paulo, manifestaram por palavras e atos sua discordância, sendo, por isso, considerados inimigos do regime vigente. Em abril de 1971 realizou-se no Rio de Janeiro o I Seminário Brasileiro de Justiça e Paz, ocasião em que foram apresentados pedidos de proteção aos presos e perseguidos políticos, sendo feito apenas o registro desses pedidos, sem qualquer decisão do Seminário a respeito disso. Nessa oportunidade já foi evidenciada a divergência de atitudes em relação ao governo ditatorial, o que será esclarecido na resposta à questão seguinte.
IHU On-Line - Houve resistências à constituição da Comissão? Onde e de que ordem?
Dalmo Dallari - Depois disso surgiram vários problemas, que a sabedoria, o espírito conciliador e a clarividência de D. Paulo conseguiriam superar de modo hábil e eficiente, especialmente em relação ao comportamento entre as Comissões do Rio de Janeiro e a de São Paulo no tocante à proteção dos presos e perseguidos políticos e de suas famílias e, sobretudo, à denúncia pública de tais violências. A Comissão sediada no Rio de Janeiro opunha-se às denúncias, alegando que estava em bom entendimento com os militares e que assim poderia obter melhor tratamento dos perseguidos, acrescentando que as denúncias públicas impediriam esse diálogo. Entretanto, as circunstâncias de ordem prática deixavam evidente que o silêncio estimularia ainda mais os praticantes das violências.
Outro ponto de divergência foi o fato de que a Comissão sediada no Rio de Janeiro era denominada Comissão Pontifícia Justiça e Paz – Seção Brasileira. E o presidente da Comissão de São Paulo foi convocado para se apresentar à Comissão do Rio de Janeiro, onde foi advertido de que, se os paulistas continuassem a adotar atitude divergente daquela, seria feita uma denúncia contra D. Paulo no Vaticano, pois a Comissão do Rio de Janeiro era Pontifícia e nacional e assim as outras que se criassem no Brasil seriam suas dependentes, devendo obedecer rigorosamente suas diretrizes.
Ciente disso, D. Paulo, com clarividência e sabedoria e absoluta firmeza quanto à disposição de enfrentar e denunciar as violências contra a dignidade e os direitos humanos dos perseguidos políticos e de seus familiares, tomou uma atitude sábia e inteligente, reveladora de sua coragem e de sua firme disposição de se colocar na vanguarda da luta pelos Direitos Humanos. Valendo-se de seu prestígio com o Papa Paulo VI, que era conhecedor de seu extraordinário trabalho humanista em São Paulo, tomou uma providência objetiva e hábil, que eliminou o problema e manteve a independência da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Em 1971, D. Paulo teve a primeira audiência com o Papa depois de ter sido designado Arcebispo de São Paulo. Nessa oportunidade relatou as dificuldades que vinha enfrentando para proteger as vítimas da violência e obteve de Paulo VI um ato formal criando a Comissão Pontifícia Justiça e Paz de São Paulo.
IHU On-Line - Como foi sua experiência junto a Dom Paulo nas lutas pelos Direitos Humanos?
Dalmo Dallari - Minha experiência junto a Dom Paulo nas lutas pelos Direitos Humanos foi a mais positiva possível. Além da absoluta coincidência de convicções e quanto à necessidade de resistir às violências, havia também a convicção de que cada um de nós dispunha de condições que dariam maior força às ações em defesa da pessoa humana e de seus direitos fundamentais. Assim, Dom Paulo já tinha sido impedido de entrar em presídios para verificar as condições do presídio e para obter informações sobre os motivos da prisão. E ele acreditava que os advogados não sofreriam restrições. Quanto aos poucos advogados que procuravam defender os presos políticos, nós acreditávamos que a ligação com Dom Paulo nos daria maior força para argumentar junto aos responsáveis pelas prisões, pois considerávamos evidente que a ligação com Dom Paulo anulava a alegação maliciosa de que éramos agentes comunistas. Na prática, os agentes da ditadura detestavam igualmente Dom Paulo e os advogados defensores de Direitos Humanos, e a ligação entre ambos não produzia efeitos.
Um fato muito expressivo revelador da realidade ocorreu quando Hélio Bicudo e eu, que trabalhávamos juntos na defesa da publicação do livro sobre o “esquadrão da morte” (por ele escrito), fomos convocados para comparecer no DOI-CODI, órgão sediado num quartel do Exército, para receber uma advertência. O militar graduado que nos recebeu disse, sem rodeios, que nós devíamos parar com essa “coisa subversiva que são os direitos humanos”. Nós tentamos explicar que nossas ações eram absolutamente legais, baseadas no direito e por vias pacíficas. Ele nos ouviu por alguns minutos e logo reagiu indignado, dizendo que se não parássemos com aquelas atividades subversivas iríamos sofrer as consequências. E nos mandou sair sem dizer mais nada. Saindo do quartel fomos contar a Dom Paulo como tinha sido nosso encontro com o militar, pois ele tinha notícia da intimação para irmos ao quartel. De acordo com os registros históricos, aquela ameaça estimulou ainda mais nossas atividades, pois tanto Dom Paulo quanto o Hélio Bicudo e eu consideramos absurda aquela ameaça, que era mais uma prova de que a repressão violenta era política do governo, à qual deveríamos resistir, como continuamos fazendo, denunciando as violências e dando a proteção possível às vítimas.
IHU On-Line - Com sua personalidade sempre combativa, Dom Paulo afrontava líderes da repressão. Inclusive, é notório o encontro dele com Médici, quando exigiu o fim do desaparecimento dos opositores ao regime. De que forma ele articulava essa resistência e como conseguia se proteger e proteger os perseguidos políticos?
Dalmo Dallari - Para dar sentido prático à resistência, Dom Paulo falava abertamente contra as violências, em todos os seus pronunciamentos públicos. A imprensa estava censurada e por isso suas manifestações ocorriam nas celebrações religiosas e nas reuniões que ele fazia com grande frequência com as entidades e os grupos de pessoas que se dispunham a resistir às violências, fazendo denúncias e dando proteção às vítimas que já haviam sido agredidas de alguma forma ou que estavam sob ameaça, aí incluindo as pessoas e suas famílias. A proteção a Dom Paulo decorria de sua autoridade e de seu grande prestígio nas camadas mais pobres da população, assim como entre os grupos organizados que resistiam como possível à ditadura. Mesmo fora de São Paulo, muitos tinham conhecimento das palavras e iniciativas de Dom Paulo. Esse conjunto de fatores tinha o efeito de dar proteção à pessoa de Dom Paulo e de lhe permitir continuar promovendo reuniões e articulando meios de defesa, como, por exemplo, através da Comissão Justiça e Paz.
IHU On-Line - Como os posicionamentos de Dom Paulo repercutiam dentro e fora da Igreja durante o regime? De que modo ele se relacionou não só com cristãos, mas com pessoas que inclusive não pertenciam à Igreja?
Dalmo Dallari - Na sociedade, de modo geral, havia medo de enfrentar a ditadura e por isso uma certa acomodação. Alguns consideravam imprudente a atitude de resistência de Dom Paulo, achando que seria mais conveniente a transigência, para que não houvesse aumento das violências. Mas as pessoas estavam divididas, mesmo entre os cristãos. Assim, enquanto uns poucos bispos e padres manifestavam abertamente sua resistência, fazendo denúncias e dando proteção às vítimas, muitos setores da Igreja Católica e de outros setores religiosos preferiam silenciar sobre as violências, ou por temer represálias ou mesmo por estarem de acordo com muitas violências dos agentes da ditadura.
Mas houve situações em que Dom Paulo deu apoio aberto a outros líderes religiosos que se opunham à ditadura. O exemplo mais marcante desse apoio interconfessional foi o estreitamento das relações de Dom Paulo com o rabino Henry Sobel e com o pastor protestante Jaime Wright, que recebeu ameaças e sofreu restrições, recebendo apoio aberto de Dom Paulo.
IHU On-Line - Qual foi o papel de Dom Paulo na transição da ditadura para a democracia, essencialmente no trato político com os militares?
Dalmo Dallari - Na transição da ditadura para a democracia, Dom Paulo simplesmente intensificou a proteção aos ameaçados e perseguidos. Mas além disso deu grande apoio a certas iniciativas, como a localização dos sepultamentos clandestinos e locais em que os agentes da ditadura haviam enterrado os corpos de suas vítimas. Nunca houve, entretanto, uma aproximação formal ou pública entre Dom Paulo e os militares, nem de Dom Paulo com políticos que haviam apoiado a ditadura. Ele sempre estimulou a busca dos corpos das vítimas e dos registros e outros meios comprobatórios das violências.
IHU On-Line - Durante toda sua trajetória, o cardeal elevou o papel social da Igreja no Brasil, na luta pelos Direitos Humanos, pelos pobres e no diálogo inter-religioso, a outro patamar, assumindo um protagonismo para além do âmbito da religião. Que desafios ele enfrentou nesse processo dentro e fora da Igreja?
Dalmo Dallari - Dom Paulo sempre agiu como um líder social na defesa dos pobres, na criação de instrumentos promotores da Justiça Social e em defesa dos marginalizados e perseguidos, sendo oportuno lembrar que, além das organizações destinadas a dar apoio às camadas mais pobres da população, Dom Paulo deu grande apoio à Pastoral dos Imigrantes, pois muitos deles haviam procurado abrigo no Brasil, fugindo das violências da ditadura em seus respectivos países. Nesse processo de defesa e promoção da Justiça Social, as restrições eram apenas de ordem material, ou seja, insuficiência de meios, mas não houve iniciativas opondo-se a esse trabalho.
IHU On-Line - O senhor manteve contato com Dom Paulo nos últimos anos? Quando e como foi o último encontro de vocês? Chegaram a falar da conjuntura política de hoje? Como foi?
Dalmo Dallari - Depois da aposentadoria de Dom Paulo, tive come ele alguns contatos, durante os quais ele perguntava sobre os avanços no sentido de criação da sociedade democrática e justa que era seu ideal. E algumas vezes relembrávamos, sem ressentimento e apenas para rememorar dificuldades enfrentadas e vencidas, alguns acontecimentos ou algumas situações que tínhamos enfrentado juntos. Mas ele sempre se mostrou muito alegre com os avanços e muito confiante na possibilidade de construção de uma sociedade justa e democrática.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Dalmo Dallari - Para finalizar, quero lembrar aqui que foi Dom Paulo quem introduziu na linguagem brasileira a expressão Direitos Humanos. Além disso, é também importante assinalar que Dom Paulo nunca fez nem permitiu que se fizesse qualquer distinção entre os necessitados de apoio, jamais admitindo se os que necessitavam de proteção e apoio eram católicos, comunistas ou se pertenciam a alguma religião ou grupo político.
Em todos os nossos encontros, assim como no encontro dele com outros ativistas, Dom Paulo iniciava e terminava os encontros com esta expressão: Coragem. E ele deu o exemplo mais completo e marcante da atitude corajosa em todas as circunstâncias, fossem quais fossem os personagens e os obstáculos a serem enfrentados. E, das muitas lições dadas por Dom Paulo com suas palavras e seus exemplos, é fundamental adotar a atitude que ele sempre adotou e recomendou como fundamental: Coragem.
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Coragem: a atitude fundamental recomendada por Dom Paulo Evaristo Arns. Entrevista especial com Dalmo Dallari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU