As raízes ideológicas do socialista que governará Nova York. Artigo de Carlos C. Pérez

Foto: Eden, Janine and Jim/Flickr

05 Novembro 2025

Com 51% dos votos, Zohran Mamdani conquistou a prefeitura de Nova York após uma impressionante campanha eleitoral. Demonizado como “comunista” por Donald Trump e pelo establishment, ele combinou o contato direto com as pessoas com uma notável eficácia nas redes sociais. Mas de onde vêm suas ideias? E como elas se conectam com a história do socialismo norte-americano e com sua própria história familiar?

O artigo é de Carlos C. Pérez, publicado por Nueva Sociedad, novembro de 2025.

Eis o artigo.

A bem-sucedida campanha de Zohran Mamdani à Prefeitura de Nova York despertou surpresa, interesse e até esperança em diferentes partes do mundo. Seu carisma pessoal, a ênfase no “custo de vida” e a viabilidade (ou não) de seu programa de reforma social moldaram a maioria das análises. Mas, para compreender de forma mais ampla o fenômeno que ele encarna, é preciso voltar o olhar para duas figuras-chave: Michael Harrington, fundador dos Socialistas Democráticos da América (DSA, na sigla em inglês), e Mahmood Mamdani, pai do candidato.

Make America Affordable Again

“Chame de democracia ou chame de socialismo democrático. O que eu acredito é que deve haver uma maior redistribuição da riqueza para todos os filhos de Deus em nosso país.” Zohran Mamdani, de 34 anos, recita de memória essa frase de Martin Luther King Jr. para explicar, em cada entrevista, o que significa para ele o “socialismo democrático”. Embora King nunca tenha abraçado publicamente esse rótulo de forma explícita, sabe-se que, em privado, ele se identificava com seus ideais. Mamdani, por sua vez, ostenta essa bandeira com orgulho.

Nada disso deveria nos surpreender. “De que adianta ter o direito de sentar-se no balcão de um restaurante — perguntava King em uma de suas citações mais conhecidas — se você não pode pagar por um hambúrguer?” Em Where Do We Go From Here (1967) [Para onde vamos daqui], o líder do movimento dos direitos civis lançou uma série de propostas que hoje soam utópicas: renda anual garantida, forte expansão da habitação pública, sistema de saúde universal e reforma da sacrossanta Constituição norte-americana para blindar a igualdade social e econômica.

O programa de Zohran Mamdani para Nova York é mais modesto. Ao longo de sua surpreendente campanha — que o levou, em apenas um ano, de completo desconhecido a chefe da metrópole mais importante do país (e uma das mais significativas do mundo) —, ele insistiu em três medidas diretas, simples e estreitamente ligadas às dificuldades econômicas dos nova-iorquinos: congelamento dos aluguéis, gratuidade dos ônibus e universalização das creches.

Mamdani também fala em criar uma rede de supermercados municipais sem fins lucrativos, reformar o modelo policial para colocar maior ênfase na saúde mental e no cuidado comunitário, elevar o imposto sobre as empresas para igualar os 11,5% do estado vizinho de Nova Jersey e aplicar uma taxa fixa de 2% sobre o 1% mais rico de Nova York. A lista continua, mas o fio condutor de sua plataforma é evidente: o custo de vida. “Por tempo demais, a liberdade tem sido um privilégio reservado a quem pode pagá-la”, bradou o candidato no comício principal da campanha, ladeado por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. “A dignidade é liberdade.”

As reminiscências do populismo econômico — em seu sentido norte-americano — de Sanders, que propõe o antagonismo entre a maioria trabalhadora e a elite oligárquica, são inegáveis: Make America Affordable Again [Tornar a América Acessível Novamente]. Mamdani costuma dizer que foi a primeira campanha do senador por Vermont nas primárias democratas, há uma década, que lhe forneceu a “linguagem do socialismo democrático”, ao articular em um projeto coerente ideais que até então existiam para ele como intuições dispersas.

Mas Mamdani possui algo que Sanders nunca teve: amplo apoio entre minorias étnicas e uma compreensão mais sensível e ousada do papel da identidade na vida política e social do país. Nascido em Uganda, de ascendência indiana e fé muçulmana, ele obteve a cidadania norte-americana apenas em 2018. Seu pai, Mahmood Mamdani, é um acadêmico nascido na Índia e de nacionalidade ugandense; sua mãe, também de origem indiana, é a cineasta Mira Nair.

De todo modo, o projeto de Mamdani e da organização da qual ele provém, o DSA, transcende o calendário eleitoral e se insere em uma longa genealogia de lutas pela justiça social e pela democracia econômica nos Estados Unidos.

Muito já se escreveu sobre a biografia eclética do prefeito eleito, o potencial transformador de suas propostas, a magnitude de sua campanha porta a porta ou sua impressionante estratégia de comunicação. É possível, no entanto, abordar esse fenômeno a partir de outro ângulo: a influência do pai político do DSA, Michael Harrington, e do pai biológico do candidato, Mahmood Mamdani. Duas figuras que, a partir de trajetórias distintas e até divergentes, ajudam a compreender em profundidade sua singularidade.

“A ala esquerda do possível”

“Por que não há socialismo nos Estados Unidos?” Com essa pergunta, formulada em 1906, Werner Sombart inaugurou um debate que continua aberto mais de um século depois. O sociólogo alemão já intuía uma possível resposta: em um país onde até os trabalhadores desfrutavam de um padrão de vida elevado, onde abundavam terras e oportunidades de ascensão social, era difícil que as ideias socialistas criassem raízes. “Nos recifes do roast beef e da torta de maçã”, escreveu Sombart, “as utopias socialistas estão condenadas a naufragar.” Até Karl Marx e Friedrich Engels refletiram diversas vezes sobre o mesmo problema, sem jamais chegar a uma conclusão definitiva. Ainda assim, ambos mantiveram a esperança até o fim de suas vidas.

Mais adiante, em 1952, o sociólogo Daniel Bell — que se via como um socialista moderado — abordou, em um artigo acadêmico controverso, o “infeliz problema” do socialismo democrático nos Estados Unidos: o “dilema insolúvel” de como “estar no mundo sem fazer parte dele”; de operar, sempre de modo insuficiente, como força moral, mais que política, em uma sociedade imoral. Segundo Bell, os comunistas norte-americanos tinham uma posição mais clara (a de serem os “antagonistas declarados” do sistema dominante), mas os socialistas estavam condenados à ambiguidade.

Apesar desse “infeliz problema”, a história do socialismo democrático no país é longa e fecunda. Há quem a remonte até Thomas Paine (1737-1809), o Pai Fundador com uma sensibilidade mais radicalmente democrática e igualitária — e principal defensor, em seu tempo, de uma forma embrionária de Estado social. Mas, na maioria dos relatos, um nome se destaca acima dos demais: Eugene V. Debs, fundador do Partido Socialista (PS) em 1901 e candidato presidencial em cinco ocasiões, citado por Mamdani no início de seu discurso: “Posso ver despontar a alvorada de um dia melhor para a humanidade.” Debs, mais um intérprete radical da tradição republicana dos Estados Unidos do que um socialista “ao estilo europeu”, chegou a conquistar 6% dos votos em 1912, o melhor resultado histórico do partido. Naquele momento, o PS tinha mais representantes eleitos que o Partido Trabalhista britânico — apesar de não contar com o apoio de figuras como Leon Trotsky, que desprezava o “caráter burguês e complacente” do socialismo norte-americano, que via como uma associação de “dentistas bem-sucedidos”.

Embora tenha mantido influência considerável no movimento sindical, após a morte de seu líder em 1926, o partido entrou em um longo declínio, causado por divisões doutrinárias, perseguições policiais e, paradoxalmente, pelo sucesso do New Deal de Franklin D. Roosevelt — frequentemente citado por Mamdani — que, embora tenha se inspirado em muitas de suas ideias, acabou por torná-lo irrelevante.

A longa noite socialista resultou na proliferação de pequenos grupos que mudavam de sigla com frequência. Para piorar, em meio à agitação da década de 1960, a difícil relação com a Nova Esquerda surgida do movimento estudantil e as divergências sobre a Guerra do Vietnã provocaram novas cisões. Só em 1982 foi fundado o DSA, a partir da convergência de duas pequenas organizações: uma muito ligada ao velho socialismo sindical e outra mais aberta ao nascente ativismo feminista e antirracista.

O principal artífice de sua criação foi Michael Harrington, figura controversa e prolífica, talvez a mais influente no desenvolvimento orgânico do socialismo democrático nos Estados Unidos (sem esquecer Barbara Ehrenreich, pensadora de maior peso cultural e ativista com quem ele manteve desacordos recorrentes). Criado em uma família católica de ascendência irlandesa, mas nova-iorquino por adoção, Harrington ganhou fama duas décadas antes da criação do DSA graças a The Other America [A Outra América], um breve ensaio que sacudiu a consciência nacional. Sua tese era simples e contundente: a pobreza, em uma sociedade tão opulenta quanto a norte-americana, era muito mais ampla do que a maioria dos cidadãos imaginava. O livro, que defendia a intervenção do Estado para combater a exclusão material (sem mencionar uma única vez a palavra “socialismo”), foi amplamente debatido pela mídia e lido por importantes assessores dos governos de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson.

Consolidado como intelectual público — o conservador William F. Buckley Jr. chegou a zombar dele em um debate, dizendo que ser o socialista mais conhecido dos Estados Unidos era “como ser o prédio mais alto do Kansas” —, Harrington manteve em suas numerosas conferências e livros um propósito comum: dar forma à “ala esquerda do possível”.

Em seus ensaios, especialmente The Twilight of Capitalism [O Crepúsculo do Capitalismo] (1976) e Socialism: Past and Future [Socialismo: Passado e Futuro] (1989), ele desenvolveu sua tese do “gradualismo visionário”: a convicção de que toda mudança substancial só pode ser gestada ao longo de um período prolongado; de que a complexidade das sociedades contemporâneas (em especial a norte-americana) exige uma direção clara e, sobretudo, uma dose inesgotável de paciência. De fato, ele foi o principal impulsionador da “estratégia de realinhamento” que deveria orientar as ações do DSA: “infiltrar” o Partido Democrata e empurrá-lo para posições mais progressistas. Em suas próprias palavras:

“Compartilho com os liberais deste país [liberais no sentido norte-americano, progressistas] um programa imediato, porque o melhor liberalismo, levado até suas últimas consequências, desemboca no socialismo. Sou radical, mas procuro evitar discursos grandiloquentes. Aspiro, simplesmente, a me situar na ala esquerda do possível.”

Esse pragmatismo antecede e transcende a figura de Harrington. Talvez onde ele mais se manifeste seja no âmbito local, onde o socialismo democrático tem uma história longa e peculiar. Destaca-se, sobretudo, o caso de Milwaukee: entre 1910 e 1960, candidatos socialistas dominaram a política municipal dessa cidade de Wisconsin. Por seu enfoque construtivo e seu empenho em modernizar e sanear o sistema público de esgoto, Morris Hillquit — líder fracassado do PS em Nova York, mais afeito à retórica do que à gestão — apelidou esses prefeitos de “socialistas dos esgotos” (sewer socialists), rótulo que eles próprios passaram a usar com orgulho.

Em uma longa entrevista à revista The Nation, Mamdani recuperou esse legado para definir sua campanha nova-iorquina:

“Nos últimos anos, vimos como um vocabulário que deveria pertencer à esquerda — o da eficiência e do combate ao desperdício — passou a ser patrimônio da direita. Lutar pelos trabalhadores também significa lutar por sua qualidade de vida. Para mim, o socialismo dos esgotos encarna a convicção de que o valor de uma ideologia se mede por seus resultados. Significa melhorar os bens e serviços que as pessoas da classe trabalhadora utilizam todos os dias: o esgoto, a água potável, os parques. A confiança se conquista com ações, e é exatamente isso que busco: uma cidade acessível e a demonstração de que o governo pode, de fato, cumprir suas responsabilidades com aqueles que sustentam esta cidade com seu trabalho.”

Mamdani não será o primeiro prefeito de Nova York ligado ao DSA. Embora tenha renegado o rótulo durante seu mandato, esse título cabe a David Dinkins, primeiro prefeito negro da cidade e figura moderadamente progressista, que governou entre 1990 e 1993, em meio a uma crise fiscal, ao pânico moral pela insegurança e ao aumento das tensões raciais. No entanto, quando, em um debate, lhe perguntaram quem havia sido, em sua opinião, o melhor prefeito da história da cidade, Mamdani respondeu sem hesitar: Fiorello La Guardia. Membro do Partido Republicano e prefeito entre 1934 e 1946, La Guardia ampliou programas sociais, barateou o transporte público, construiu rodovias, piscinas e parques infantis, criou a primeira autoridade pública de habitação do país e impôs controles de aluguel. Ainda assim, La Guardia governou em plena era do New Deal, quando a intervenção pública representava uma nova promessa de prosperidade, e manteve uma relação privilegiada com Roosevelt, apesar de pertencerem a partidos diferentes (“Não existe uma forma republicana ou democrata de recolher o lixo”, repetia com frequência). O momento de Mamdani é, no mínimo, bem distinto.

O atual DSA também é uma organização diferente daquela dos tempos de Harrington. Hoje conta com mais de 80 mil membros, em contraste com os cerca de 7 mil da década de 1980. Antes da primeira campanha presidencial de Bernie Sanders, a idade média dos membros superava os 68 anos; agora, está abaixo dos 33. No passado, o apoio público de figuras conhecidas se restringia praticamente à jornalista e escritora Gloria Steinem e ao filósofo e ativista Cornel West; hoje, numerosas celebridades (dentro e fora da academia) expressam abertamente seu apoio aos socialistas democráticos.

Também mudou sua relação com o mundo sindical: de um vínculo estreito com o sindicalismo clássico passou a uma colaboração mais flexível com o chamado “novo sindicalismo”. Até 2017, o DSA fazia parte da Internacional Socialista, mas hoje tende a se identificar com partidos situados mais à esquerda. Sua estratégia recente concentra-se em conceber a participação nas primárias democratas como o principal terreno de influência política. Embora muitos dentro da organização interpretem essa tática como uma preparação (de duração indeterminada) para uma futura ruptura com o partido do sistema, o realinhamento teorizado por Harrington há quase meio século — mover o Partido Democrata em direção a posições social-democratas — continua, em grande medida, operando na prática.

Em sua autobiografia, publicada em 1989, consciente de que sua doença logo colocaria fim à sua vida, Harrington escreveu que o socialismo norte-americano “foi e continua sendo um fracasso histórico”. Nessas mesmas páginas, ele se definia como um “corredor de longa distância”, alguém com determinação suficiente para continuar a luta nas circunstâncias mais adversas, sem esperar recompensas imediatas. “Corro em direção ao reino da humanidade”, confessava, “plenamente consciente de que nunca o alcançarei. Talvez ninguém o faça.”

Hoje, essa corrida de revezamento encontra em Mamdani um socialista disposto a pegar o bastão — decidido a transformar aquele “fracasso histórico” em um diagnóstico provisório, e não em uma profecia derrotista. Até que ponto esse novo êxito poderá ser replicado em outros lugares e como afetará o crescimento do DSA — “minha plataforma não é a mesma que a do DSA em nível nacional”, disse Mamdani durante a campanha — é uma questão que, mais uma vez, só o tempo dirá.

"É a mesma luta"

Corria o ano de 1965. Um jovem ativista nascido na Índia e criado em Uganda é detido em Montgomery, Alabama, após participar de uma marcha pelos direitos civis. Da cela, ele usa a única ligação a que tem direito para contatar o embaixador de Uganda nos Estados Unidos. Irritado com o incidente, o diplomata o repreende por “se intrometer nos assuntos internos de um país estrangeiro”. A resposta vem sem demora: “Não se trata de um assunto interno”, replica o jovem. “Acaso esquece que conquistamos nossa independência há apenas alguns anos? É a mesma luta pela liberdade”.

Esse jovem era Mahmood Mamdani, hoje um renomado antropólogo da Universidade Columbia e uma das figuras mais reconhecidas dos estudos pós-coloniais. A anedota aparece em Slow Poison [Envenenamento lento] (2025), seu ensaio mais recente — uma história da Uganda independente contada através de seus autocratas, Idi Amin (que deportou o próprio Mamdani por suas origens asiáticas) e Yoweri Museveni (ainda presidente, 39 anos depois). No fundo, o livro funciona como uma autobiografia intelectual e política, revelando uma vida tão intensa quanto engajada, vivida entre os círculos ativistas e os corredores das universidades da Ivy League. Mahmood Mamdani é, além disso, pai de Zohran Mamdani, e a ambivalência que marca sua trajetória atravessa também a de seu filho.

Mais ainda: o segundo nome do candidato à Prefeitura de Nova York é Kwame, em homenagem a Kwame Nkrumah, líder da independência de Gana e teórico do panafricanismo — uma tradição intelectual com a qual Mahmood Mamdani manteve um diálogo crítico constante. Assim, ao longo de mais de quatro décadas, Mamdani abordou questões que vão desde o legado do imperialismo na economia ugandense até as causas e consequências do genocídio em Ruanda, a tragédia da guerra no Sudão e os efeitos globais da chamada “guerra ao terror”.

O que está na base dessa obra prolífica (surpreendentemente pouco traduzida ao espanhol) é uma análise consistente do papel das identidades políticas. Em Neither Settler nor Native: The Making and Unmaking of Permanent Minorities [Nem colonos nem nativos: como se formam e se desfazem as minorias permanentes] (2020), no qual examina os casos da África do Sul, Israel, Sudão e Estados Unidos, Mamdani mostra como o colonialismo impulsionou “a criação de minorias permanentes e sua manutenção mediante a politização da identidade”. Para ele, a verdadeira descolonização exige “desarticular a permanência dessas identidades”. Com a África do Sul pós-apartheid em mente, defende superar as dicotomias entre “perpetrador e vítima” ou “maioria e minoria”.

Nesse sentido, em Define and Rule: Native as Political Identity [Definir e governar: o indígena como identidade política] (2012), Mamdani explica como o governo colonial passou do princípio de “dividir e governar” (divide and rule) ao de “definir e governar” (define and rule). Sob essa nova lógica, a identidade do “nativo” não remete a uma condição essencial, mas surge como uma construção do Estado colonial. A tecnologia moderna de governo, sustenta Mamdani, baseia-se justamente na produção de identidades artificiais destinadas à administração. Em oposição a essa dinâmica, o livro destaca o caso de Julius Nyerere, primeiro presidente da Tanzânia independente, cujo projeto nacionalista buscou forjar uma cidadania comum diante da herança colonial de privilégios raciais e tribais que fragmentara o país em 126 grupos étnicos com diferentes graus de reconhecimento e dignidade. Em um debate parlamentar de 1961 sobre se a cidadania tanzaniana deveria se basear na raça ou na residência, Nyerere foi enfático: “Glorificamos os seres humanos, não a cor de sua pele”.

Antes disso, em Good Muslim, Bad Muslim [Muçulmanos bons, muçulmanos maus] (2005), Mamdani havia escrito que “após o 11 de setembro, ter um nome identificável como muçulmano nos Estados Unidos significa estar consciente de que o islã se tornou uma identidade política”. A retórica da época — liderada por George W. Bush com sua distinção entre “muçulmanos bons” e “muçulmanos maus” — transformava, de fato, todo muçulmano em suspeito até prova em contrário. Seu filho, Zohran, relatou em diversas ocasiões, durante a campanha, suas próprias vivências como jovem muçulmano na Nova York pós-atentados às Torres Gêmeas: revistas aleatórias, olhares inquisitivos, experiências traumáticas em aeroportos.

A islamofobia, longe de ser apenas um trauma juvenil, ocupou lugar central em sua campanha. Seu rival democrata Andrew Cuomo riu quando o entrevistador insinuou que Mamdani celebraria um novo 11 de Setembro; a congressista trumpista Marjorie Taylor Greene publicou uma imagem da Estátua da Liberdade coberta por uma burca; e o New York Post o associa, dia sim e dia também, ao jihadismo. Não é um detalhe menor: Zohran Mamdani será o primeiro prefeito muçulmano de Nova York, uma cidade onde quase 10% da população professa o islã. Após esses ataques, o candidato divulgou um longo vídeo afirmando que “o sonho de todo muçulmano é ser tratado como qualquer outro nova-iorquino”.

Para Mahmood e Zohran Mamdani, a identidade não é mero artifício nem simples declaração performativa; em seu horizonte vislumbra-se sempre uma dignidade comum, onde a diferença possa ser celebrada — um terreno de igualdade no qual o plural e o distinto encontrem espaço para florescer. Diante da cooptação elitista que o Partido Democrata fez da identity politics [política identitária], o núcleo da plataforma de Zohran é outro: “Minha política é a universalidade”, repetiu em inúmeras ocasiões.

Assim, mais do que enfatizar o poder aquisitivo, a universalidade é o elo que une sua visão dos programas sociais à sua política externa. Por um lado, a maioria de suas propostas — do transporte público às creches — beneficiaria qualquer nova-iorquino, independentemente de renda ou posição social. Durante seu período como deputado estadual, Mamdani questionou a eficácia do programa Fair Fares [tarifas justas], que pretendia reduzir em 50% o custo do metrô e do ônibus para cidadãos de baixa renda. O problema, advertia, era que menos da metade conseguia acesso à ajuda. Daí sua defesa da universalidade, por razões de justiça social e, sobretudo, de eficácia: “Quando se pede à classe trabalhadora que supere uma corrida de obstáculos burocrática para obter um benefício, acaba-se excluindo a maioria. Em contrapartida, quando uma medida é universal, os benefícios se multiplicam: não são apenas econômicos. São também segurança pública, coesão social e tranquilidade para todos”.

Por outro lado, Mamdani — firme em sua oposição ao que chama abertamente de “genocídio palestino” — vem adotando, ao longo da campanha, uma retórica de “humanidade comum”, uma posição que nasce da “defesa da universalidade dos direitos humanos”. Sem recorrer a uma linguagem fria ou legalista, o candidato buscou ancorar seu apoio à causa palestina no caráter necessariamente universal do direito internacional, chegando a declarar que ordenaria a prisão de Benjamin Netanyahu se este pusesse os pés em Nova York.

Questionado se reconhecia o “direito de existir” de Israel, respondeu afirmativamente. No entanto, quando lhe perguntaram sobre o direito de Israel existir como um Estado judeu, sua resposta mudou: “Nenhum Estado deveria existir com um sistema de hierarquias baseado em raça ou religião”, sublinhou, destacando que esse princípio se aplica igualmente a qualquer projeto etnonacionalista — seja em Israel, na Arábia Saudita ou na Índia. Mais ainda, em declarações que suscitaram amplo debate, e após reafirmar por enésima vez seu compromisso com a “universalidade”, acrescentou: “Não encontro melhor forma de ilustrar minha postura [sobre o conflito] do que com as palavras das famílias dos reféns israelenses: todos por todos (everyone for everyone)” [todos para todos].

“Em uma época de escuridão, Nova York pode ser um halo de luz.” A frase, já símbolo de sua campanha, ecoa em quase todos os comícios de Mamdani, do Brooklyn ao Bronx. Embora o sucesso de sua aventura política dependa em parte de fatores locais — os escândalos sexuais de Andrew Cuomo, o sistema de ranked choice voting (voto por ordem de preferência) e o apoio cruzado do controlador (judeu) da cidade, Brad Lander, nas primárias; a queda em desgraça do prefeito democrata Eric Adams, acusado de corrupção; ou a presença de um candidato republicano tão heterodoxo quanto Curtis Sliwa —, sua vitória carrega uma promessa universal. Porque, por mais que Nova York seja Nova York — a cidade universal por excelência, o epicentro global, ao mesmo tempo, do capitalismo e da diversidade —, poucas vezes uma eleição municipal despertou tanto interesse (e tanta esperança) em tantos cantos do planeta.

“É a mesma luta pela liberdade”, parece nos dizer Zohran Mamdani, evocando as palavras de seu pai, mais de meio século depois.

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