14 Dezembro 2024
"Se a pascoa significa a ressurreição, o natal é o processo de se fazer cristão, pois representa o nascimento", escreve Rafael Santos Silva, doutor em Sociologia, professor na Universidade Federal do Ceará e membro do Movimento Igreja em Saída.
Boa razão tem o filosofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han para quem “o vir ao mundo como nascimento é a fórmula da esperança.” É preciso partir da dimensão da esperança para imaginar que em pouco tempo iremos comemorar mais um natal. Cearemos com alguns familiares, enviaremos algumas mensagens e até trocaremos alguns presentes. Tudo isso é muito importante, afinal “não é natal apesar de tudo, mas apesar de tudo é natal!” Ou seja, para além da lógica do mercado, é o momento de cuidar de uma das principais mensagens do cristianismo retida na ideia original do nascimento de outra forma de conduzir a vida, buscar outras razões e novos caminhos. Sem abrir-se aos novos comportamentos é impossível viver o verdadeiro natal, a razão última da guinada ao cristianismo. Aqui uma reflexão central se impõe. Em seu livro Jesus Cristo Libertador, L. Boff bem atesta que o cristianismo não deve ser reduzido a uma religião sublime, moralmente aceita, nem tão pouco a uma ideologia política, mas tomado por um modelo de “vivência concreta e consequente” de superação radical das amarras que acrisola a humanidade no seu próprio egoísmo.
Nesse sentido, o cristianismo, e consequentemente o natal é uma experiência encarnada no comportamento da evolução humana, portanto, dinâmica e não estática. Sua proposta não se limita a uma simples institucionalização da fé, nem tão pouco aceita-se encapsulado pelo monopólio da verdade. Concretamente, o cristianismo não é a religião do branco colonizador embora a história, especialmente na América Latina, esteja recheado de relatos em contrário. Mas, trata-se de uma experiência mais profunda e de encontro com o novo. Como bem nos lembra Francisco Aquino Junior, um dos mais promissores teólogos do Brasil, tal comportamento, que ele chama de fé e práxis, ao assumir a racionalidade do amor, o cristão precisa praticá-lo. Assim, Aquino Junior sustenta que “a fé não é algo que acontece em uma subjetividade passiva... mas uma estruturação concreta de nossa prática” com a realidade.
Quero insistir que a racionalidade cristã não é suportada por nenhuma teologia que não seja para a libertação. Ou como bem diz L. Boff “não é o cristão ou o católico que é bom, verdadeiro e justo, mas é o bom, o verdadeiro e o justo que é o cristão e o católico.” Porque, Cristo, continua o teólogo, “na verdade é um título.” É uma adoção concreta de um comportamento onde “o homem se abre para Deus” na busca da superação do egoísmo, por justiça, solidariedade e compaixão.
Quando isso ocorre, se dá aquilo que os teólogos chamam de “estrutura crística” podendo ocorrer inclusive antes de Jesus e fora do catolicismo cristão. Logo, nas palavras de L. Boff “o cristianismo se realiza não somente onde é professado e ortodoxamente vivido”, mas em todo lugar onde a humanidade se abre para “a justiça, a verdade e o amor.” Dito de outra forma: não é cristão um “membro confessional de um partido” como rogam algumas religiões, mas, sim “aquele que se tornou radicalmente humano a partir do cristianismo.”
Diante destas aproximações estou convencido que a radicalidade do natal exige o que há de mais humano de nós, razão pela qual é muito importante trocar presentes, afetos e compartilhar uma boa ceia, mas é urgente indignar-se diante da fome coletiva no Iêmen, das vitimas da guerra na Palestina ou dos atingidos pelas mudanças climáticas no Brasil.
É preciso, encarnar-se nas milhares de crianças palestinas desabrigadas pelas guerras, ou nas mais de 700 mil pessoas no mundo que não farão uma alimentação básica ainda hoje.
De verdade, a experiência do natal passa pela radicalidade do Cristianismo. Sem trilhar esse caminho o natal dar-se na banalidade de presentes frios. Ceias mórbidas de mesas fartas. Ao contrário, o natal é, na melhor expressão de Joseph Ratzinger a “completa hominização de Deus”. Dito de outra forma, é Deus se fazendo homem pelo nascimento. Pela recuperação da esperança diante à mais completa tirania.
Neste contexto, o evangelista foi preciso ao testemunhar que o nascimento, apesar de ser um ato de decisão, no sentido de que tem que acontecer, é um processo de superação dos limites sociais, econômicos e políticos. Mas, é sobretudo um ato coletivo. Ou seja, é acompanhado por outras pessoas que irão ao seu modo auxiliar aquele(a) que estar por nascer. Assim, ninguém nasce sozinho(a) é preciso do outro para fazer-se. Aqui a noção de Igreja ganha sentido.
No entanto, o nascimento como ato e processo é sobretudo a resposta a uma expectativa. Sem esta resposta é impossível à mudança. Foi a isso que Jesus, se fazendo Cristo, respondeu a Maria quando esta o chamou para transformar água em vinho. Ele respondeu a expectativa do novo quando a comunidade de Betânia lhe apresentou, Lazaro, sem vida. Mas atenção: Jesus, se fazendo Cristo também contrariou expectativas, especialmente quando estas vinham dos poderosos. Nesse sentido, o processo de se fazer Cristo, foi para Jesus um emaranhado de atitudes, decisões e ações de envolver-se, especialmente com o pobre, aqui traduzido no sentido literal do termo, pelo estrangeiro, pelo nu, pelo faminto e pelo prisioneiro. Justamente para aludir que a pobreza é uma decisão politica e o pobre é resultado dessa decisão.
Jesus, tornando-se Cristo, viveu, comeu, bebeu, se envolveu na vida do seu povo. Questionou a economia, as regras sociais e a política. Organizou coletivos e deu-se por decisão a mudança radical do seu modo de viver. Não pregou uma cosmovisão perfeita do sagrado. Mas ao ensinar uma nova oração que hoje conhecemos por “Pai Nosso”, lembrou que a comunhão depende da interação entre o “pai nosso” [o divino] e o “pão nosso” [o concreto]. De novo, é necessária uma articulação entre o sagrado e o humano dado em um processo tal que o Homem e o Deus se misturam em qual proporção que o humano de faz finalmente Cristo.
Foi assim que no processo de cristianismo radical Jesus se fez humano “tão humano, que só podia ser mesmo Deus”. Finalmente, se a pascoa significa a ressurreição, o natal é o processo de se fazer cristão, pois representa o nascimento.
E nascer é a fórmula da esperança!
Feliz Natal.
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A experiência do Natal passa pela radicalidade do cristianismo. Artigo de Rafael dos Santos da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU