12 Dezembro 2022
Belém e Nazaré não são realidades puramente virtuais, mas âmbitos precisos; são verdadeiras “pátrias teológicas” que delineiam os contornos de uma salvação “situada”, que assume, a partir de um tempo e de um espaço bem definidos, conotações universalistas. Para mim, esse é o sentido da encarnação, que o Natal nos repropõe todos os anos como um estímulo para tomarmos consciência das origens da nossa redenção.
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado na revista Rocca, n. 24, 15-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O avanço da velhice com um ritmo insistente – completei 83 anos há pouco tempo – muitas vezes me leva de volta no tempo com a memória para reviver episódios de um passado distante, especialmente o da infância, com uma recordação ainda mais nítida do que para eventos e situações muito mais recentes.
Um dos episódios mais significativos desse período, do qual de vez em quando aflora dentro de mim a nostalgia, é a espera do Natal! Refiro-me à espera mais do que ao próprio dia da festa devido àquele conjunto de sentimentos de ansiedade, de esperança e de alegria suscitados por um evento de extraordinária sugestão.
Tudo começava muito cedo, mas se acentuava com a celebração da novena, da qual participávamos com grande envolvimento e devoção aferrados pela beleza dos cantos – então em latim – que ressoavam na igreja, tornando transparente a mensagem de salvação que um Menino vindo do alto dos céus se faria portador.
E assim se chegava à vigília, um dia que parecia não passar nunca devido à tensão espasmódica do momento. Forçados a ir para a cama a certa hora pelo papai e pela mamãe, custávamos a pegar no sono e nos agitávamos sempre que o silêncio era interrompido por algum barulho: eram os passos do Jesus Menino – na época não existia entre nós a figura do Papai Noel – que vinha depositar seus presentes na sala ao lado dos nossos quartos.
Vencidos pelo sono, cochilávamos e, ao acordar, corríamos para a sala, onde se encontram no chão alguns presentinhos – um modesto brinquedo e algumas tangerinas acompanhadas por um pouco de frutas secas – que suscitavam uma grande alegria em nós. Tudo isso enquanto a neve caía, cobrindo de branco as árvores, os telhados e o chão, e criando um cenário de raro recolhimento e de forte emoção.
Delonguei-me nessa descrição, porque ela constitui uma premissa para a minha visão preferencial de Deus, aquela que ficou impressa desde o início no meu imaginário e à qual ainda hoje me sinto profundamente ligado. Para mim, Jesus Menino continua sendo a imagem mais surpreendente e envolvente de Deus, e o Natal continua sendo minha festa preferida.
Sei bem que o ápice da vida de Jesus é a Páscoa, com o mistério da morte e ressurreição em que encontra cumprimento a obra da redenção e são inaugurados “novos céus e nova terra”. Mas o caminho rumo à prossecução desse objetivo começa com “o Verbo que se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), repassando todas as etapas da nossa existência, começando pelo nascimento.
Essa criatura frágil, que experimenta as dificuldades de crescimento de toda criança, com o acréscimo de ter sido submetido a uma terrível perseguição – pensemos no relato da fuga para o Egito –, é para mim a “figura” mais alta e mais transparente da identidade surpreendente do Deus cristão.
O evangelho da infância de Lucas e algumas páginas de alguns apócrifos retratam, de forma icástica, o contexto em que Jesus viveu sua infância: trata-se de uma família comum, dedicada ao trabalho cotidiano, com um filho que, como todos os outros, é apresentado ao Templo para dar cumprimento às práticas rituais judaicas e que transcorre suas horas participando da vida e das brincadeiras de seus coetâneos.
Certamente, devemos nos aproximar com cautela destes últimos textos, que a Igreja não inseriu em seu próprio cânone. Mas, para além dos episódios individuais, em particular os milagrosos, a mensagem que eles nos comunicam testemunha uma condição de total normalidade do “filho do carpinteiro”.
A bela série de textos [publicada pela revista Rocca] e intitulada “E vós, quem dizeis que eu sou?”, inaugurada por uma esplêndida intervenção do cardeal Gianfranco Ravasi e que posteriormente teve como protagonistas alguns renomados teólogos, pastores e leigos, evidenciou aspectos importantes e absolutamente indiscutíveis da figura de Jesus.
Relendo-os, encontramo-nos diante de um verdadeiro mosaico, cujas peças permitem entrever segmentos diferentes de seu rosto, cuja natureza profunda permanece envolta no mistério. Apesar dos Evangelhos sinóticos e o teológico de João, que abrem vislumbres de luz muito significativos, permanece o “segredo messiânico” que Marcos não hesita em colocar no centro do próprio relato.
A esse mosaico, eu acrescento uma pequena peça minha. Não sou um especialista em cristologia, mas trago dentro de mim (são dominantes, sem dúvida, as pulsões emocionais) uma imagem de Jesus, que se sedimentou – como já lembrei – desde a infância na minha consciência (talvez até no meu inconsciente) e à qual continuo afeiçoado. É a imagem de Jesus Menino ou, em termos teologicamente mais apropriados, é o grande evento da encarnação que todos os anos celebramos no dia de Natal.
Esse evento, que inaugurou uma era nova – o nosso calendário também começa a partir desse momento –, coincide com uma virada decisiva nos acontecimentos históricos da humanidade. A promessa de salvação anunciada pelos profetas cumpriu-se com a inauguração do Reino, dando início a um processo que terá o seu momento culminante na Páscoa, e cuja luz se projetará no futuro “até os confins da terra e até o fim dos tempos”.
Mas o aspecto que mais me inclinou (e ainda hoje me inclina) a enfatizar a centralidade desse evento – volto a retomar a reflexão interrompida – é a imagem de Deus que nos é comunicada por meio dele: um Deus que, condescendendo em assumir a condição humana em toda a sua precariedade, subverte a ideia de Deus própria de toda teodiceia, marcando a passagem dos atributos tradicionalmente reservados a Ele, sobretudo o da onipotência, para nos apresentar (Jesus Menino conduz-nos imediatamente a essa visão) um Deus pobre e impotente que compartilha até o fim o limite conatural à nossa criaturalidade.
É uma imagem, portanto, totalmente imprevisível, que revela aquilo que nos lembra o famoso hino cristológico da Carta aos Filipenses, em que se enfatiza fortemente esse abaixamento: “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (2,6-8; trad. Bíblia Pastoral).
O mistério da encarnação aqui proposto na sua crua realidade apresenta, além disso, uma série infinita de facetas, que desnudam em toda a sua profundidade e extensão – como Paulo não deixa de sublinhar repetidamente – a absoluta gratuidade e a fidelidade sem limites do amor divino. Não é apenas a humanidade que se beneficia disso, mas também a natureza que, tendo passado pelas dores do parto, está envolvida na ação redentora que assume, desse modo, um porte cósmico.
O “fazer-se carne” de Jesus tem uma clara dimensão espaço-temporal. Ele não envolve apenas o “fazer-se história”, mas também o “fazer-se natureza” de Deus. De fato, o Filho de Deus faz seu ingresso em um tempo bem definido e em um espaço claramente circunscrito; o “tempo oportuno” (kairós) corresponde a um “espaço oportuno” (habitat) dentro do qual se encontra a própria ação libertadora do Senhor.
Jesus passa a maior parte de sua vida no escondimento em um pequeno vilarejo da Galileia, Nazaré, e sua missão pública também se desenrola apenas na Palestina, limitando-se ao anúncio da “boa notícia” – como ele mesmo afirma – apenas aos filhos de Israel.
A cristologia não desenvolveu muito (e ainda hoje não desenvolve suficientemente) essa dimensão espacial, centrada como está em uma perspectiva histórica, que adquiriu uma prioridade absoluta, graças também à centralidade justamente atribuída ao mistério pascal. Recuperar a importância da encarnação reveste então o significado de uma reavaliação do espaço: a inserção do Filho de Deus e, portanto, do próprio Deus, no contexto de um território que não tem o caráter de um cenário destacado, mas faz parte de uma salvação que traz consigo os traços do ambiente de onde se origina para depois se estender a todas as latitudes da terra.
Belém e Nazaré não são realidades puramente virtuais, mas âmbitos precisos; são verdadeiras “pátrias teológicas” que delineiam os contornos de uma salvação “situada”, que assume, a partir de um tempo e de um espaço bem definidos, conotações universalistas.
Para mim, esse é o sentido da encarnação, que o Natal nos repropõe todos os anos como um estímulo para tomarmos consciência das origens da nossa redenção. Infelizmente, sei o quanto essa festa se degenerou devido à exploração consumista que dela se fez (e se faz), mas nem por isso deixo de senti-la como o momento mais intenso e mais belo – a beleza é conatural à mensagem cristã quando é autêntica – da minha experiência humana e religiosa.
Talvez seja a nostalgia de um passado que eu sinto mais meu do que o presente dilacerado por guerras e por formas cada vez mais acentuadas de integrismos ideológicos, de pobreza e de marginalidade social. Mas a recordação de Jesus Menino continua sendo para mim o retrato mais significativo do Deus cristão. Um Deus inerme, que aceita o radical despojamento, tornando-se, mediante a assunção da natureza humana, “totalmente semelhante a nós” e que faz tudo isso por um ato de amor infinito, levando-nos a retribui-lo no serviço desinteressado aos irmãos e irmãs.
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À espera do Natal. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU