05 Julho 2024
"É sugestivo descobrir, na correspondência com o Pe. Perrin, como a alma de Simone e sua busca teológica se refletem em cada linha, mas, ao mesmo tempo, o leitor é envolvido num exercício mental e espiritual de alto nível", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 30-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Irmãzinha inviolada / última pomba dos dilúvios / truncada beleza do Cântico dos Cânticos / disfarçada com aqueles seus engraçados óculos de colegial míope". Assim, Elsa Morante, autora de A História, reelaborava poética e espiritualmente o retrato fotográfico de Simone Weil, extraordinária escritora e testemunha de origem judaica nascida em Paris em 1909, segunda filha de um médico alsaciano e de uma mulher russa, que morreu em 1943 em um sanatório em Ashford, no Kent inglês. A sua curta biografia é emocionante porque tece uma inteligência única, que se revelará nos seus escritos, num empenho social levado ao limite, no ensinamento a alunos da classe trabalhadora, na proteção sindical, no trabalho físico lado a lado com os explorados, no projeto de constituir um grupo de enfermeiras voluntárias durante o conflito bélico.
Sua existência acabará justamente pelo desgaste orgânico, consumindo-se gota a gota.
Mas, ao mesmo tempo, a sua reflexão era confiada a escritos de grande poder intelectual e espiritual, a ponto de conquistar muitos agnósticos ao lado de pessoas de temperamento místico. Por um lado, por exemplo, a citada Elsa Morante ou – como posso atestar diretamente nos meus diálogos privados com ele – Franco Fortini; por outro lado, uma mulher em plena sintonia com ela, a crente Cristina Campo que definia a obra que estamos apresentando como “um imenso livro”.
Antes de falar sobre ele, porém, é necessário relembrar um aspecto capital de Simone Weil, ou seja, o seu diálogo fascinado com Cristo, até chegar ela, judia e agnóstica, à beira de um batismo que nunca foi realizado. Na raiz disso havia duas componentes decisivas. A primeira floresceu durante uma viagem à Itália (Florença, Roma e sobretudo Assis) e a Semana Santa de 1938 vivida na abadia beneditina de Solesmes. Foi uma espécie de iluminação e – ela mesma o confessava – Cristo desceu e atraiu-a a si, como aconteceu com o apóstolo Paulo no caminho de Damasco, porque “os bens mais preciosos não devem ser conquistados, mas esperados”, como dom e por graça.
A outra componente desse envolvimento cristão foi o encontro com um padre dominicano Joseph-Marie Perrin (1905-2002), quase cego de nascença e segundo a própria Weil, marcado por “uma magreza ascética”. Ele é seu interlocutor privilegiado e as seis cartas a ele endereçadas constituem o núcleo do texto que apresentamos, Attesa di Dio (Espera por Deus, em tradução livre) uma obra composta que Adelphi reapresenta com uma orientação inicial de Maria Concetta Sala e um ensaio final do maior intérprete de Simone, Giancarlo Gaeta. É graças à editora milanesa que outros escritos dessa genial mulher foram oferecidos aos leitores “leigos”, como os quatro volumes de seus Cadernos.
Claro, outras obras traduzidas esporadicamente por várias editoras, como L’ombra e la grazia o L’amore di Dio ou La Grecia e le intuizioni pre-cristiane (texto original pelo privilégio atribuído ao classicismo grego com uma espécie de esforço sincretista), mereceriam uma republicação ou pelo menos uma releitura, tendo também em conta o fato de a editora francesa Gallimard, entre 1988 e 1994, ter publicado Oeuvres Completes.
Mas voltemos ao texto em questão. É sugestivo descobrir, na correspondência com o Pe. Perrin, como a alma de Simone e sua busca teológica se refletem em cada linha, mas, ao mesmo tempo, o leitor é envolvido num exercício mental e espiritual de alto nível. Ela mesma usa a imagem do “homem no alto de uma montanha que, olhando para frente, percebe, mesmo sem olhar para elas, muitas florestas e planícies abaixo".
Elas existem e são intuídas antes mesmo de serem olhadas, definidas e percorridas. Assim entra em ação o tema da “espera-atenção” que precede a graça do ver-compreender-possuir. Lapidário é seu ditado: “O pensamento deve ser vazio, à espera, não deve procurar nada, mas estar pronto para acolher na sua verdade nua o objeto que está prestes a penetrar”. É, portanto, a experiência de uma epifania reveladora que muitas vezes é teofania. Portanto são necessárias, atenção e espera, isto é, um “tender” ou, melhor, um estar tensos como um arco, conscientes de que “cada perturbação pessoal da sensibilidade é suficiente para impedir" o exercício.
Muito mais se descobre nessas cartas, especialmente na quarta, "de extensão assombrosa", como ela mesma o reconhecia, porque nela Simone recompõe a sua autobiografia espiritual. O livro, porém, como dissemos, é antológico e inclui outros escritos: pode-se ler o fulgurante comentário ao “Pai nosso" no qual ela ressalta que o percurso dessa oração é antitético em relação ao que geralmente rege toda oração que vai de baixo para cima, do homem e da sua miséria a Deus e à sua luz. Aqui, porém, parte-se do céu ("Pai Nosso que estás nos céus") e do divino, e se desce ao escuro emaranhado do mal (“livrai-nos do mal”), segundo o movimento típico da graça, mencionada acima, e da própria “encarnação” de Deus no homem Jesus Cristo.
Também significativos são os vários outros escritos presentes na Attesa di Dio, com diferentes redações e minutas acompanhadas de muitas notas editoriais: há até uma curiosa “Reflexão sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do amor de Deus". Concluímos, porém, deixando a ela a voz: “Deus e a humanidade são como dois amantes que erraram o local do encontro. Ambos chegam antes do horário marcado, mas em dois locais diferentes. E esperam, esperam, esperam. Um está de pé, pregado no lugar pela eternidade dos tempos. A outra está distraída e impaciente. Ai dela se se cansar e for embora!”.
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Simone Weil em diálogo com Cristo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU