De novo Guilherme de Occam para apostar no futuro. Artigo de Flávio Lazzarin

Guilherme de Occam (Foto: Wikimedia Commons)

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04 Julho 2024

"Poderíamos viver como se teologias e magistérios enciclopédicos não existissem, porque podem nos afastar da relação de familiaridade e intimidade com Jesus, substituindo-a com uma fidelidade dogmática, redutivamente jurídica e alérgica à história e às suas provocações, que reproduz constantemente uma Igreja hierárquicapatriarcalclerical, clara ou sutilmente misógina, autorreferencial, mas com pretensões de santidade e pureza", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano Fidei Donum, que atua na diocese de Coroatá, no Maranhão.

Eis o artigo. 

A perspectiva de Occam, que nega consistência material às substancias segundas da tradição aristotélico-tomista, nos permite sonhar a nossa fidelidade eclesial a Jesus de Nazaré em uma maneira mais simples e despojadas das seculares intromissões e desfigurações filosóficas, que o pensamento de matriz parmenidiana depositou na nossa tradição teológica.

Tenho a profunda convicção que o essencial da vida eclesial é a relação pessoal com Jesus Messias, alimentada diariamente através da escuta e introjeção da Sua Palavra.

A reforma litúrgica do Vaticano II, em um ciclo trienal e bienal, ferial e dominical, nos oferece na celebração da Eucaristia a possibilidade de escutar quase todas as Sagradas Escrituras: lex orandi que fundamenta a lex credendi. Santificação do tempo também, e sobretudo, através da Palavra, que ilumina, orienta e sustenta a fidelidade a Jesus, que, sem os Evangelhos, permaneceria silencioso e aparentemente ausente.

Só a Palavra, tem o poder de acompanhar os fiéis nos caminhos complexos da vida pessoal, familiar e comunitária. E nos eventos trágicos, que marcam a história de todas as gerações, com guerras, genocídios e destruições, gerados pelos poderes deste mundo, que Jesus enfrentou com a sua prática, a sua palavra, a sua Páscoa.

A escuta da Palavra é essencialmente comunitária, mas são os indivíduos, que, saindo do solipsismo e do isolamento, aceitam o dom da fraternidade e da sororidade.

São comunidades, comunhão de solidões, que somam carismas diferentes e complementares, não exclusivamente masculinos, em que obviamente temos supervisores e presbíteros, serviços diferenciados, que são simplesmente funcionais e não ontológicos.

Poderíamos viver como se teologias e magistérios enciclopédicos não existissem, porque podem nos afastar da relação de familiaridade e intimidade com Jesus, substituindo-a com uma fidelidade dogmática, redutivamente jurídica e alérgica à história e às suas provocações, que reproduz constantemente uma Igreja hierárquica, patriarcal, clerical, clara ou sutilmente misógina, autorreferencial, mas com pretensões de santidade e pureza.

Uma Igreja, que não coincide com a fidelidade concreta e escondida dos seguidores e seguidoras de Jesus e que é quase sempre identificada com a instituição e a sua burocracia.

Igreja, puro nome diria Guilherme de Occam, sem realidade, sem substância.

Surpreende, porém, como este engano metafisico, consiga, há muitos séculos, disfarçar o seu nada e mostrar, apesar da abstração vazia, o seu poder com eficiência, resistindo ao processo sinodal, que sonha com a superioridade e o protagonismo dos reais e concretos fieis, sacerdotes e sacerdotisas pela Graça do Batismo.

O nominalismo occamista desmascara essa Igreja, que tem a pretensão de ser concretamente real e a reduz a um mero conceito, útil somente para designar o conjunto dos batizados e batizadas na comunhão dos santos.

Portanto, expressões como “a Igreja diz, a Igreja ensina” seriam afirmações que tentam se sustentar a partir de um sujeito abstrato e evasivo.

E com outros tópicos teológicos como “Igreja esposa de Cristo, a Igreja mãe, Maria-Igreja...” descobrimos ulteriores contradições, porque estas expressões são frutos de abordagens datadas e vencidas, que transferem para a teologia uma leitura biológica e antropológica, herdada do dualismo do pensamento grego, onde vinga a superioridade masculina, o espirito, fecundador aliado a materialidade feminina. Homem solar, ativo. Mulher lunar, passiva. Homem protagonista, mulher coadjuvante acolhedora, fecunda geradora de vida, mas sempre a partir da iniciativa do homem. Isso se traduz inevitavelmente na interpretação de Deus Pai e do Filho Jesus como sujeitos masculinos teologicamente definidos como tais, esquecendo, porém, os créditos devidos à uma antropologia, que não tem nada de teológico.

É neste contexto que se apresentam hoje-em-dia os tradicionalistas, que não aceitam o Concílio Vaticano II e curtem a ilusão, frequentemente marcada por fanatismo e agressividade, de poder voltar ao passado tridentino, como se a obediência formal à tradições equivocadas, magistérios e catecismos fosse uma garantia de pureza incontaminada, como se pudéssemos insistir nas estratégias de imposição missionária que marcaram o tempo das cristandades, reafirmado o papel de uma Igreja mestra e juíza dos irmãos e da humanidade.

Esse catolicismo, que atualmente se difunde como um câncer em todos os cantos do mundo, é constitutivamente violento e se apresenta come mentor e promotor da extrema-direita mais agressiva e desumana, aliada do capitalismo e do processo de construção de novas ditaduras.

Insiste-se na repetição de um universalismo, que se desmentiu e se desmente, quando mostra a pretensão prepotente e violenta de impor a “verdade”, goela abaixo, a todos os povos, como aconteceu no tempo – ainda não completamente esgotado - da cristandade europeia e da cristandade colonial.

É a repetição de um universalismo gerado por um monoteísmo intolerante e violento, que simplesmente ignorou e continua ignorando o primeiro mandamento de Jesus: o amor, o ágape, revelado na Cruz de Jesus, que sempre nos conduz para ficar unidos às vítimas da injustiça e ao testemunho dos/das mártires.

Trata-se de um tradicionalismo, que, porém, não parece estar sozinho quando ignora que a única Tradição, o único legado irrenunciável deixado pelos apóstolos é a própria pessoa de Jesus, a sua palavra e a sua Páscoa.

Se reduzíssemos a análise da conjuntura ao atual confronto entre as narrativas dos católicos do tradicionalismo e os católicos do Concílio, poderíamos ter um impasse para a nossa capacidade de sonhar um futuro diferente e fazer com que fechemos os olhos diante de eventos, que já preanunciam um tempo, em que vencerá unicamente a fidelidade ao Amor e a Justiça do Reino acolhida em amorosas lutas. Sementes do futuro, pequenas e escondidas na cotidianidade, espoliada de todo poder e magnitude, minorias, são o testemunho de quem proclama a comunidade em tempos de individualismos, a solidariedade em tempos de egoísmos, os direitos em tempos de privilégios, a paz em tempos de guerras, a justiça em tempos de desigualdades, que espalham a morte e o desespero e que, com firmeza evangélica, enfrenta a tentação do medo e do desanimo diante da prepotência assassina dos poderes deste mundo. Em companhia de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.

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