06 Fevereiro 2019
“O catolicismo romano hoje é um mundo de fronteiras em mudança; velhas categorias estão sendo redefinidas. Nos últimos anos, nem sempre ficou claro onde exatamente o tradicionalismo católico deixa de ser apenas uma sensibilidade ou uma preferência litúrgica e se torna uma tendência cismática.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Commonweal, 04-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um dos momentos mais críticos do pontificado de Bento XVI ocorreu em 24 de janeiro de 2009, quando um comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou que o papa havia removido a excomungado de quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX). Os bispos da FSSPX haviam sido todos consagrados por Marcel Lefebvre em 1988, sem a permissão de Roma.
Quase imediatamente após a decisão de Bento XVI ser anunciada, revelou-se que um daqueles quatro bispos, Richard Williamson, havia feito declarações antissemitas (em 2010, Williamson foi multado por um tribunal alemão por negar o Holocausto, e, em 31 de janeiro de 2019, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos em Estrasburgo confirmou a sentença, rejeitando o recurso de Williamson contra a decisão do tribunal alemão como “manifestamente infundado”).
A abertura de Bento XVI em relação à FSSPX – junto com o Summorum pontificum, seu motu proprio de 2007 sobre a liturgia – fazia parte de um esforço de reconciliação com os tradicionalistas católicos que haviam rompido com a Igreja depois do Concílio Vaticano II.
Francisco teve que lidar com as consequências da reaproximação de Bento XVI aos tradicionalistas desde o início de seu pontificado. Recentemente, houve um importante ponto de virada. Em 19 de janeiro, durante a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (18 a 25 de janeiro), o Vaticano anunciou que Francisco havia decidido abolir a Ecclesia Dei, a comissão pontifícia criada por João Paulo II em 1988, e transferir seu trabalho para uma seção dentro da Congregação para a Doutrina da Fé.
Essa é uma das mudanças mais importantes que Francisco fez na estrutura da Cúria Romana desde que se tornou papa.
No mesmo dia em que a mudança foi anunciada, a nova equipe de mídia do Vaticano divulgou um comunicador oficial. Seu autor, Andrea Tornielli, ressaltou que muita coisa mudou desde que a Ecclesia Dei foi instituída em 1988. O motu proprio de Bento XVI sobre a liturgia, que afrouxou as restrições ao uso do rito tridentino, alterara as relações entre Roma e a FSSPX. A abolição da Ecclesia Dei, explicou Tornielli, deve ser entendida como o reconhecimento de um novo período de estabilidade nessas relações: a emergência do fim dos anos 1980 acabou, e agora as únicas questões que ainda separam os tradicionalistas da Igreja são mais doutrinais do que litúrgicas – e é por isso que elas devem ser tratadas pela Congregação para a Doutrina da Fé.
A Ecclesia Dei já havia sido redimensionada em 2017, quando o diálogo teológico entre o Vaticano e a FSSPX havia sido posto sob o controle da Congregação para a Doutrina da Fé. Mesmo assim, livrar-se da Ecclesia Dei como um todo é importante como um sinal de que a influência dos tradicionalistas dentro da Cúria, que havia aumentado durante o pontificado anterior, está agora diminuindo.
Embora criticando os obcecados pela liturgia, Francisco não fez nenhuma mudança na disponibilidade do rito romano pré-Vaticano II. Em vez disso, ele reestruturou as relações da Igreja com os tradicionalistas: primeiro durante a preparação para o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, quando reconheceu as faculdades dos padres da FSSPX para ouvir confissões (depois estendidas para além do Jubileu), depois em 2017 quando reconheceu suas faculdades para a celebração de casamentos na FSSPX. Mas uma normalização canônica do status da FSSPX como uma “prelazia pessoal” dentro da Igreja Católica – uma ideia que surgiu inicialmente nos círculos tradicionalistas em 2012 – continua sendo muito improvável. Uma razão para isso é a eleição, em julho de 2018, de um novo superior da FSSPX, o linha-dura italiano Davide Pagliarani, de 47 anos.
Isso não significa que haja mais distância entre Roma e os ambientes tradicionalistas em geral. A insistência de Francisco na misericórdia implica uma disponibilidade para ir ao encontro de qualquer um, incluindo os católicos tradicionalistas.
Seu motu proprio de 19 de janeiro abolindo a Ecclesia Dei observa que “os institutos e as comunidades religiosas que geralmente celebram na forma extraordinária encontraram hoje a sua própria estabilidade de número e de vida”. O papa está se referindo aqui não apenas à FSSPX, mas também aos grupos tradicionalistas ainda em comunhão com Roma.
O novo motu proprio nos mostra como Francisco vê o tradicionalismo católico. Ele acredita que, desde 2007, Roma fez todo o possível para normalizar as relações com a FSSPX, mas ele também se recusa a ceder no desenvolvimento da tradição. Curiosamente, foi assim que os próprios tradicionalistas, incluindo a FSSPX, interpretaram a mensagem de Francisco.
Acima de tudo, Francisco não aceitará a rejeição por parte da FSSPX do Vaticano II como um concílio legítimo da Igreja Católica. E aquilo que ele não aceita na FSSPX ele também não aceitará nos tradicionalistas que estão em comunhão com Roma.
O novo motu proprio assinala que os tradicionalistas podem continuar celebrando a liturgia pré-conciliar, mas não podem manter a teologia pré-conciliar que geralmente acompanha o seu gosto litúrgico. Esse é o modo pragmático de Francisco de refinar o antigo princípio da lex orandi, lex credendi (“a lei da oração é a lei da fé”).
Uma aplicação doutrinal rigorosa desse princípio pareceria exigir uma revogação do Summorum pontificum, mas isso é pastoralmente impossível. Afinal, o autor desse motu proprio anterior, Bento XVI, é agora papa emérito e ainda vive no Vaticano. E, embora o movimento tradicionalista tenha se tornado mais fragmentado na última década, ele também se tornou uma das faces da resistência intracatólica ao pontificado de Francisco.
Coincidentemente (ou talvez não), o motu proprio de Francisco foi publicado durante a “Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos”. Poder-se-ia argumentar que o ecumenismo de que nós mais precisamos agora é o ecumenismo intracatólico. Os lefebvrianos são agora considerados mais plenamente parte da Igreja Católica do que com João Paulo II e Bento XVI: uma forma peculiar de ecumenismo se desenvolveu para e entre os católicos tradicionalistas que não acreditam no ecumenismo.
O catolicismo romano hoje é um mundo de fronteiras em mudança; velhas categorias estão sendo redefinidas. Nos últimos anos, nem sempre ficou claro onde exatamente o tradicionalismo católico deixa de ser apenas uma sensibilidade ou uma preferência litúrgica e se torna uma tendência cismática que leva à postura da FSSPX. Essa fronteira havia sido borrada pelo retorno a Roma de muitas antigas comunidades lefebvrianas. Mas também se tornou indistinta entre as autoridades vaticanas encarregadas pelas políticas doutrinais, como a Ecclesia Dei demonstrou.
Francisco quer ser generoso, mas também quer ser inequívoco. Seu motu proprio livrando-se da Ecclesia Dei é uma das afirmações mais claras da trajetória da Igreja sob este pontificado: pragmatismo pastoral, um firme compromisso com o desenvolvimento doutrinal conciliar e uma rejeição à reavaliação tradicionalista do Vaticano II.
Este papa sabe que o tradicionalismo não vai desaparecer tão cedo e está até disposto a acomodá-lo onde puder, mas não cederá um centímetro em relação ao Vaticano II e ao seu valor vinculante para a Igreja Católica.
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Francisco e os tradicionalistas. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU