20 Abril 2024
"Ao suprimir a solidariedade, sistema produziu uma ralé descartável e o salve-se quem puder. Vem daí a corrosão de caráter que nutre os fascistas. Eles só recuarão quando novas transformações expuserem a miséria do indivíduo indiferente", escreve Fabrício Maciel, Professor de teoria sociológica da UFF-Campos e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF. Bolsista de produtividade do CNPq. Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ. Professor visitante na Friedrich-Schiller Universität Jena, Alemanha (2022). O artigo é publicado por Outras Palavras, 18-04-2024.
O cenário global atual conforma um daqueles momentos da história no qual nos sentimos sem rotas de fuga evidentes e com a sensação de estarmos vivendo em uma era de transição, na qual o passado ainda não sucumbiu totalmente e o futuro ainda não se mostrou. Em tais momentos, recorrer ao passado histórico e às pistas que a teoria social nos apresenta pode ser um caminho seguro, de modo a não ficarmos presos às ilusões do presente, do qual muitas vezes não conseguimos ter distanciamento afetivo e cognitivo. Para tanto, é preciso identificar as questões e consequentemente as discussões mais urgentes de nosso tempo, dentre as quais a que me parece mais importante é a ascensão da extrema direita em escala global nos últimos anos.
Ao revisitar criticamente as principais transformações estruturais do capitalismo global, desde a década de 1970, vemos que a ascensão da extrema-direita não se compreende simplesmente através dos debates de “conjuntura”, como tem sido feito atualmente. Com isso, tal fenômeno, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, só pode ser compreendido profundamente se reconstruirmos as suas origens ao longo da “grande transformação” sofrida pelo capitalismo global nas últimas cinco décadas. Este é o cenário histórico que procurarei reconstruir aqui a partir do conceito de “capitalismo indigno”.
Como indigno, percebo a forma de capitalismo que se estruturou no mundo, desde os anos de 1970, tendo como característica principal a naturalização, em escala global, do desvalor da vida humana como um todo, e especialmente da vida daqueles mais necessitados, os “sobrantes” (Robert Castel), ou seja, uma “ralé global”[1]. Este é o principal produto do capitalismo indigno em escala global, que tem como marco inicial central o fracasso do welfare state em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha[2]. A naturalização do desvalor dos mais pobres e necessitados, ou seja, aqueles que “sobraram” ou que nunca conseguiram se inserir no sistema do trabalho digno e produtivo, sempre foi um marco nos países periféricos, como mostrou Jessé Souza (2009), por exemplo, no caso brasileiro.
Atualmente, o desvalor da vida humana nas classes populares, o que já ameaça as camadas mais baixas da classe média, também afeta os países centrais, como uma ferrugem que corrói o sistema por dentro, deixando claro que o capitalismo jamais promoverá justiça social, explicitando assim sua lógica intrínseca e inevitável. Este novo cenário global é o que eu estou provocativamente chamando de capitalismo indigno, ou seja, um sistema global cuja marca central é a generalização, institucionalização e naturalização da indignidade da vida sofrida das classes populares, cuja realidade consiste em vagar entre o não emprego sistemático e a realização de ocupações indignas. Outro traço central deste novo sistema é a indignidade das relações entre as classes, inclusive nos países centrais, marcadas pelo desrespeito e a intolerância, típicos de contextos nos quais predominam a radicalização da desigualdade socioeconômica[3].
Neste contexto, a sociologia do trabalho normalmente recorre ao conceito de trabalho precário para tematizar as condições de trabalho produzidas pelo capitalismo atual. Ainda que tenha provocado e servido de base para um grande número de importantes pesquisas empíricas, o conceito de trabalho precário apenas descreve situações de trabalho que são obviamente ruins. Em contrapartida, proponho a ideia de trabalho indigno, (Maciel, 2021) para pensar o tipo de trabalho realizado pela ralé brasileira e global, o que é essencialmente igual tanto no centro quanto na periferia. Neste contexto, o conceito de trabalho indigno nos permite tematizar o sofrimento e a humilhação social, ou seja, a dimensão moral da condição de subocupado ou simplesmente de desempregado estrutural.
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios centrais de nossa hierarquia moral de valores no Ocidente, o que pode ser visto no ditado que diz que “todo trabalho é digno”, mas que apenas obscurece a realidade de descartabilidade e inutilidade vivida por milhões de pessoas no mundo hoje. Esta realidade, que sempre foi a marca central de países periféricos como o Brasil, agora corrói também o seu centro, lançando todo o sistema global em uma condição indigna, estruturada pelo capitalismo indigno, o que pôde ser visto com toda a nitidez nos piores momentos da pandemia.
Diante disso, farei uma análise em dois movimentos, que precisam ser articulados, de modo a compreendermos como o capitalismo indigno proporcionou a ascensão da extrema-direita, tanto no Brasil como em outras realidades nacionais. Primeiro, é preciso compreender o grande ciclo deste capitalismo em escala global, a partir da década de 1970. Uma de suas características centrais é seu refluxo dos vetores econômicos, fazendo com que agora os países centrais também sintam o gosto amargo de algumas das principais realizações negativas do sistema, relegadas sempre à sua periferia. É isso que vai explicar, por exemplo, o fortalecimento da extrema direita em países como França e Alemanha[4].
No caso da última, a obra de Klaus Dörre permite compreender a adesão da classe trabalhadora à extrema-direita no cenário recente. Para tanto, o autor vai usar a metáfora da “fila da espera”, recorrendo à obra de Arlie Hochschild, de modo a tematizar o aumento da precariedade e da consequente angústia social na Alemanha nos últimos anos, o que conforma um contexto propício para a adesão a sentimentos autoritários. Neste sentido, o autor percebe uma profunda conexão entre racismo, populismo e a questão do trabalho (Dörre, 2018). Ademais, as motivações que levam boa parte da classe trabalhadora ao encontro de sentimentos autoritários foram tema de pesquisa do autor por vários anos. Dentre elas, o medo diante da situação de instabilidade crescente se encontra entre os principais aspectos.
Na mesma direção, encontra-se a análise de Arlie Hochschild sobre o caso dos Estados Unidos. Neste sentido, a autora realizou uma pesquisa no interior de alguns dos estados mais conservadores do país, de modo a compreender como o coração de pessoas comuns foi seduzido pelo movimento que levou à eleição de Donald Trump (Horschild, 2018). A autora tematizou esta complexa situação com a metáfora do “estranho em seu próprio país”, se referindo ao sentimento do cidadão americano mediano diante do estrangeiro, que no atual contexto é visto como aquele que vem para “roubar” os empregos. Não por acaso, a apropriação de Trump do slogan de Ronald Reagan “Make American great again” vai fazer bastante sucesso nesta direção.
Outra importante análise no contexto alemão foi feita por Wilhelm Heitmeyer. Para o autor, presenciamos agora um novo tipo de radicalismo de direita. Este caracteriza-se como um novo radicalismo nacional autoritário, representado pelo AfD e com articulação em movimentos como o PEGIDA e alguns milieus intelectuais. Trata-se ainda de um populismo de direita difuso, mobilizando instrumentalmente a contradição entre “elite” e “povo”, e posicionando-se como se falasse “pelo povo”. Neste sentido, este novo tipo de populismo, para o autor, apresenta três características centrais. Primeiro, o “autoritário” se torna o paradigma de controle contra a política e a sociedade. Segundo, o “nacional” passa a acentuar a posição excepcional do povo alemão e de sua identidade. Por fim, o “radical” passa a ser celebrado como o estilo de mobilização por excelência, ultrapassando todas as fronteiras emocionais, éticas e morais.
Ademais, para o autor, presenciamos atualmente a ascensão de um capitalismo autoritário e de uma perda de controle múltipla, o que é decisivo para a compreensão do fortalecimento da extrema-direita. Com isso, ele percebe o ressurgimento do radicalismo nacional autoritário não apenas como um problema relacionado a erros de desenvolvimento do sistema político das democracias liberais, mas sim como uma mudança de relações entre processos econômicos, sociais e políticos, os quais conformam a “ambivalência da modernidade” (Bauman) e as velozes transformações em curso na globalização[5].
Assim, a política nacional vai sofrer a perda de controle, diante da vitória do controle do capitalismo autoritário, por exemplo, com a política de desregulação, produzida pelo próprio sistema político. Além disso, a perda de controle social e individual de vários cidadãos será percebida por estes como perda de controle político, o que vai levar à perda de confiança nos partidos políticos estabelecidos e até mesmo na democracia como um todo. Algo bastante semelhante pode ser visto no caso brasileiro. No geral, o que estes autores estão mostrando é o triunfo do capitalismo indigno, pavimentando o caminho para a ascensão de sentimentos, articulações e políticas de extrema-direita no cenário atual.
Por outro lado, é preciso compreender que os ciclos do capitalismo periférico não necessariamente acompanham os ciclos do centro. Neste sentido, é preciso tematizar o que aconteceu no Brasil recente, ou seja, como o capitalismo indigno possui um ciclo específico recente entre nós e como ele nos trouxe a um contexto autoritário, que reflete em grande medida o cenário global. Na década de 1960, quando o capitalismo “social” começa a mostrar sua verdadeira face no Atlântico Norte, expondo os limites do estado de bem-estar e sofrendo várias críticas sociais e estéticas (Boltanski & Chiapello, 2009), o Brasil sofreu um golpe militar, no contexto da guerra-fria, sob o pretexto de “garantir a ordem”.
Na década de 1980, como consequência da crise estrutural do capitalismo na década anterior, os governos Reagan e Thatcher inauguram seu neoliberalismo perverso e anti-social, o que se reflete nas dificuldades com a inflação que marcam nossa “década perdida”. Na década de 1990, com o neoliberalismo estabelecido enquanto modelo político inquestionável do Ocidente, verdadeira face do capitalismo indigno, o Brasil curiosamente inicia um ciclo ambíguo que marca nossa nova dependência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, inesquecível por suas privatizações e integrando por baixo o país na nova ordem global. Apesar de neoliberal, nossa década de 1990 pavimenta parcialmente o caminho para a era do lulismo.
Assim, se quisermos compreender o que de fato aconteceu no Brasil recente precisamos romper com as ilusões da conjuntura e fazer uma reconstrução estrutural de ordem maior. Neste sentido, é preciso ir além da novelização da política na qual fomos imersos, ou seja, tematizar as verdadeiras razões obscuras do capitalismo indigno, que estão sendo sistematicamente escondidas pela grande mídia, cuja especialização maior atualmente é o foco na teatralização do campo político.
Diante deste complexo cenário, é preciso compreender o que aconteceu no Brasil durante os anos do lulismo. Estes podem ser entendidos como um esboço de welfare state entre nós, apesar de toda as limitações estruturais impostas pelo capitalismo indigno a países periféricos e dependentes.6 Neste sentido, é preciso escapar de leituras apressadas que têm sido feitas no Brasil atual, de modo a culpabilizar a esquerda e seus erros na conjuntura anterior, como se isso explicasse o aumento de nossa desigualdade e violência recente. Com isso, o antipetismo se tornou um dos principais paradigmas analíticos da política contemporânea durante o governo Bolsonaro, fundamentado muito mais no discurso da grande mídia do que em pesquisas acadêmicas especializadas.
Se não quisermos reproduzir este argumento superficial, precisamos compreender a ação efetiva e obscura do capitalismo indigno entre nós. São as suas transformações estruturais profundas que se encontram por trás do golpe de 2016 [7], que abortou nosso ensaio de bem-estar social e colocou no poder um governo de legitimidade questionável, pavimentando o caminho para uma série de reformas anti-sociais que romperam nosso pacto social.[8] Apesar de um movimento crescente no Brasil, na conjuntura anterior, no sentido de minimizar os efeitos do capitalismo indigno, as forças externas que refletem o fracasso do sistema em escala global, especialmente a partir da crise de 2008, sempre estiveram presentes nas decisões dos assuntos nacionais.
No movimento que inaugura a complexa conjuntura atual, boa parte da elite brasileira, em consonância com o movimento global do capitalismo indigno, reproduziu o discurso seletivo da corrupção, bem como a linguagem política do anti-petismo, dominante no Brasil dos últimos 20 anos, e com isso apostou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Não por acaso, o discurso do expresidente é ultra meritocrático, legitimando toda a ação neoliberal devastadora do capitalismo em países periféricos como o Brasil. Também não é casual que Lula tenha vencido a última eleição para presidente, confirmando que sua imagem enquanto líder popular e sua conexão afetiva com grande parte das classes populares no Brasil conseguiu sobreviver ao golpe de Estado sofrido por seu partido em 2016 e à sua controversa prisão, em 2018, quando ele liderava as intenções de voto, o que deixou o espaço livre para a ascensão de Bolsonaro na reta final. Além disso, boa parte da população brasileira, incluindo parte da elite, não conseguiu evitar o descontentamento com o governo Bolsonaro que, além de sua tonalidade explicitamente autoritária, também demonstrou incompetência na condução do país como um todo. A trágica administração da pandemia pelo governo, culminando em mais de 600 mil mortes, fato conhecido e bastante criticado na mídia internacional, é a principal prova empírica desta afirmação.
Como conclusão, gostaria de propor uma interpretação de como a estruturação do capitalismo indigno nas dimensões da economia política, da moralidade, da ideologia e da cultura vai explicar a ascensão da extrema-direita hoje em escala global. Trata-se de uma articulação teórica entre estes quatro níveis, de modo a contribuir para uma compreensão ampla de como chegamos até aqui. Desde os anos de 1970 presenciamos a grande transformação do capitalismo global em todas estas dimensões, o que vai naturalmente intensificar a desigualdade nos países periféricos, além de iniciar nos países centrais um processo de indignidade das condições de trabalho e das relações entre as classes aparentemente sem volta.
Assim, no plano da economia política, o que presenciamos é o espectro da indignidade em escala global, o que se conforma como a principal marca do período pós-welfare state nos países centrais e o aprofundamento da desigualdade estrutural nos países periféricos. Isto significa uma indignidade ainda conjuntural nos países centrais e estrutural nos países periféricos. Entretanto, a naturalização do desvalor da vida humana dos mais necessitados, ou seja, a produção de uma ralé global, é uma marca do capitalismo indigno como um todo. Isso é o que Robert Castel (1998) vai tematizar com as noções de “sobrantes” e “vulnerabilidade” e Richard Sennett (2006) com o conceito de “descartabilidade”. Esta situação, ainda que conjuntural nos países centrais, foi suficiente para alimentar os sentimentos de medo, angústia e insegurança, tanto material quanto ontológica, que levam em grande medida à simpatia e adesão a movimentos de extrema-direita, como pudemos ver a partir das obras de Klaus Dörre, Arlie Hochschild e Wilhelm Heitmeyer.
Além disso, a tese da “sociedade do conhecimento”, de André Gorz (2005), na qual o conhecimento tecnológico se torna uma força produtiva sem precedentes, pode ser atualizada para a compreensão do capitalismo digital e de plataformas, bem como sua capacidade em aprofundar a indignidade do trabalho e consequentemente a desigualdade de classe. Neste sentido, a dimensão tecnológica do capitalismo indigno criou mecanismos ainda mais invisíveis e impessoais de reprodução da desigualdade do que em períodos anteriores, o que pode ser visto em toda a sua voracidade na ação de empresas como a Uber e o I-Food em países como o Brasil, no qual o número de pessoas vulneráveis que recorrerão a este tipo de trabalho indigno digital, ou seja, uma nova ralé digital, é bem maior do que nos países centrais.
Na dimensão da moralidade, como entendida por Axel Honneth (2015), é preciso compreender aqui a atualização do pano de fundo moral e das interações éticas em um contexto de indignidade generalizada, o que vai explicar em grande medida a adesão ao radicalismo de extrema direita. Neste sentido, o que presenciamos com o trumpismo e o bolsonarismo é o aprofundamento de uma moralidade ultra meritocrática. Isto significa que, em um contexto econômico no qual a diferença entre vencedores e perdedores no mercado de trabalho é gigantesca, teremos uma interação ética indigna entre as classes, o que se reverbera no aumento do ódio, da intolerância, da violência e do medo. Não por acaso, os discursos profundamente meritocráticos de Trump e Bolsonaro, por exemplo, são uma das principais marcas deste tipo de moralidade conservadora e intolerante, na qual os vencedores se sentem ameaçados em seus privilégios, considerados justos, e os perdedores se sentem desamparados, humilhados, esquecidos, abandonados e revoltados. Nenhum contexto é mais propício do que este para a adesão aos sentimentos autoritários, por razões distintas, entre vencedores e derrotados. Neste sentido, a revolta muda dos derrotados se transforma no sentimento antipolítica e antissistema que vai levar à adesão e identificação afetiva com os líderes da extrema direita.
No plano da ideologia, a análise de Boltanski e Chiapello (2009) sobre o terceiro espírito do capitalismo ainda se apresenta como uma das mais produtivas para esta discussão. Uma das principais características do terceiro espírito, para os autores, é exatamente a sua capacidade de neutralizar as críticas sociais e esconder todas as hierarquias do capitalismo indigno, sugerindo a existência de um novo capitalismo do bem, políticamente correto, inclusivo e preocupado com todas as questões sociais relevantes de nosso tempo. [9] Nada é mais falso e perigoso do que isso. Com isso, o terceiro espírito do capitalismo precisa ser compreendido como uma ideologia, no sentido de amenizar e ao mesmo tempo justificar as contradições atuais do sistema, buscando o engajamento afetivo e prático de seus diferentes atores e classes sociais.
Assim, a desigualdade atual é vista como algo mutável, desde que as pessoas sejam flexíveis e procurem se engajar nos projetos oferecidos por este novo capitalismo, supostamente mais dinâmico e inclusivo do que em períodos anteriores. Deste modo, o fracasso na realização de projetos pessoais e a não inclusão no mercado de trabalho passa a ser internalizado mais do que nunca como culpa dos derrotados, ou seja, a ideologia do novo capitalismo de projetos esconde exatamente a sua verdadeira face profundamente meritocrática. Com isso, temos um terreno fértil para a extrema-direita, que vai se apropriar instrumentalmente da pauta trabalhista, prometendo ironicamente dignidade, como pode ser visto claramente nos discursos de Trump, Bolsonaro e Le Pen, dentre outros.
Por fim, no plano da cultura, encontramos na obra de Richard Sennett (2006) uma importante análise. O principal aspecto de sua percepção sobre o novo capitalismo flexível é exatamente o que ele vai chamar de “corrosão do caráter"[10]. Com isso, o autor procura descrever o tipo humano produzido e exigido pelo novo capitalismo, o qual precisa ser flexível em todos os sentidos, não se apegando a nenhum laço duradouro, de modo a poder aproveitar todas as chances que o mercado oferece. Trata-se nada menos do que um tipo humano ultra-meritocrático, ou seja, um novo self made man em sua versão mais acabada, ultra individualista e desapegado de qualquer laço de lealdade, fidelidade e autoridade. Esta cultura prática do capitalismo, produzida pelas grandes corporações, vai se espraiar para todas as esferas da vida social e com isso produzir um novo indivíduo blasé e resignado, preocupado apenas com a construção de sua trajetória pessoal e indiferente à indignidade alheia.
O que temos com isso? Para os vencedores do novo capitalismo flexível e indigno, o sistema oferece a possibilidade de melhora constante da carreira, realização pessoal, prestígio e, em uma palavra, felicidade. Esta promessa, entretanto, é quase sempre frustrada, como podemos ver em trágicas históricas de bilionários e celebridades cuja falta de sentido existencial coloca em questão todas as metas de autenticidade prometidas pelo novo capitalismo[11]. Por outro lado, para os derrotados, o sistema oferece frustração, humilhação, culpa, autopunição e, obviamente, insegurança material, ou seja, em uma palavra, indignidade. Seria possível impedir a ascensão da extrema-direita, com todas as suas falsas promessas, seu cinismo e oportunismo, em um cenário tão trágico como esse? A partir dos relatos empíricos que temos de vários países do mundo neste exato momento, a resposta é um trágico não. Este é o mundo da vida real de milhões de pessoas, produzido pelo capitalismo indigno, traduzido na revolta e indignação que alimenta a extrema direita.
[1] Faço aqui uma adaptação do conhecido conceito de “ralé” de Jessé Souza (2009), para pensar a realidade do capitalismo global contemporâneo.
[2] As obras de autores como Richard Sennett, Robert Castel e Klaus Dörre, dentre outros, sobre seus respectivos países, confirmam nitidamente a validade desta constatação.[
[3] No caso brasileiro, por exemplo, onde a desigualdade material entre as classes é enorme, o desrespeito, a intolerância, a indiferença e consequentemente a tensão social como um todo é visivelmente maior do que em países como a Alemanha, no qual a desigualdade entre as classes, ainda que esteja em crescimento, é visivelmente menor do que no Brasil.
[4] Um debate mais recente, neste ponto, vai se remeter ao suposto fim da globalização e ao fracaso do neoliberalismo, como pano de fundo económico e político para o acirramento dos conflitos e contradições atuais.
[5] Neste contexto, Ruy Braga vai contestar a tese do “ódio branco”, em seu recente livro “A angustia do precariado” (2023), mostrando que em contextos de precariedade pode haver o aumento da solidariedade e até movimentos antirracistas nos ambientes da classe trabalhadora.
[6] Neste sentido, uma crítica séria e distanciada sobre o lulismo e o seu fracasso foi feita por André Singer (2018). Para ele, especialmente no governo Dilma Rousseff, houve uma tentativa de construção de um pacto desenvolvimentista e rooseveltiano, tendo o mesmo fracassado diante de forças políticas contrárias ao governo, que culminaram no processo de Impeachment da presidente. Outra crítica importante à chamada “hegemonia lulista” foi feita por Ruy Braga (2012) em seu provocativo livro “A política do precariado”.
[7] Neste contexto, é extremamente importante comprender as manifestações de 2013 no Brasil. Para tanto, um excelente livro é o de Elisio Estanque, “Classe média e lutas sociais” (Unicamp, 2015), no qual o autor problematiza o papel da classe média neste cenário e faz uma interessante análise sobre a “blindagem” do sistema político.
[8] Para uma análise sistemática sobre o golpe de Estado sofrido por Dilma Rousseff em 2016, ver o livro “A Radiografia do Golpe”, de Jessé Souza (2016).
[9 ]Desenvolvi esta análise no E-Book “A ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo” (Maciel, 2022), fruto de pesquisa coletiva que venho realizando há alguns anos com executivos no estado do Rio de Janeiro.
[10] Este conceito do autor se afina de maneira muito interessante com a ideia clássica de caráter social, desenvolvida por Erich Fromm (1970) em seu tempo, de modo a tematizar o tipo de pessoa comum predominante em uma determinada época. O ponto em comum é que Fromm percebeu uma profunda conexão entre os imperativos da cultura capitalista e os sentimentos autoritários, o que podemos perceber também em nosso tempo. Desenvolvi uma análise sobre a obra de Fromm, neste sentido, no artigo “A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista” (Sociologias, UFRGS, 2020).
[11] Desenvolvi uma análise nesta direção, a partir da ideia de “reconhecimento fake”, no artigo “Reconhecimento e desigualdade: da ética da autenticidade à cultura do novo capitalismo” (Ciências Sociais Unisinos, 2017).
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No Capitalismo Indigno, raiz da extrema-direita. Artigo de Fabrício Maciel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU