01 Abril 2024
"Seja como for, livros e mais livros têm sido escritos sobre a 'extrema-direita no Brasil'. O tema vende. E vende muito. Mas, por incrível que possa parecer, ninguém, nesses livros, define, de modo convincente, 'extrema-direita'. Muito menos, 'extrema-direita' no Brasil. É curioso. Mas é assim", escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas, em artigo publicado por Jornal GNN, 21-03-2024 e enviado pelo autor.
É arriscado navegar a contravento. Notadamente no Brasil. Especialmente no oceano das impressões políticas. E ainda mais sobre conjunturas imediatas.
Entretanto, chega um momento que o autoengano ambiente enraivece. Cansa, intriga. Tira do prumo.
Qualquer pessoa minimente educada sabe bem que Jair Messias Bolsonaro não é Hitler nem Mussolini. Que Luiz Inácio Lula da Silva não é Roosevelt nem Ghandi. Que o momento aberto pela crise financeira de 2008 não tem nada que ver com os anos de 1930. Que a gestão da pandemia no Brasil não foi menos desastrosa que na maior parte se não na totalidade dos países pretensamente democráticos do Ocidente. E sabe também que não existem – e quase nunca no passado existiu – “genocidas”, “fascistas”, “nazistas” e afins caminhando pelas ruas, praças e vielas brasileiras.
Qualquer pessoa minimente educada sabe disso.
Que os homens práticos da política alimentem essas ilações é até entendível. Seu marketing visa simplificar para polarizar, e polarizar para vender suas ideias. Geralmente ilusões. Quase sempre muitos enganos.
Que jornalistas e articulistas de conglomerados de informação façam o mesmo para surfar no fluxo também vai compreensível.
Mas que especialistas em história e ideias políticas – muita vez, doutores do saber em universidades – promovam essa banalização de conceitos e percepções, aí já é demais.
Da mesma maneira que qualquer pessoa singelamente letrada ou que frequentou dois ou mais semestres de um bom curso universitário de Antropologia sabe bem que não existe nem nunca existiu patriarcado em nenhuma sociedade do Ocidente e menos ainda no Brasil, qualquer pessoa com o mínimo de noção de História Política e das Ideias sabe bem que Jair Messias Bolsonaro e seus acólitos podem ser tudo – grosseiros, confusos, radicais – menos a expressão de uma extrema-direita.
Muito já se teorizou sobre tentações ideológicas nesse campo e em campos similares. Alguma síntese desse debate foi apresentada.
Quem, por exemplo, chamar o candidato republicado, Donald J. Trump, de partícipe da extrema-direita vira objeto de gargalhadas. O seu mandato como presidente dos Estados Unidos foi marcado pela alt-right, que é algo mais complexo que o tea party e seus congêneres mundo afora, mas todos sabem que ele nem o seu partido se aninham no extremo-direitismo de ocasião. Tout court ou não.
De volta aos fundamentos, vale simplesmente lembrar que extrema-direita é uma corrente de pensamento filosófico e cultural tipicamente europeia e especialmente francesa que emergiu na viragem do século XVIII ao XIX como mostra de profunda condenação a dimensões do radicalismo da Revolução Francesa.
Os seus partidários sempre se apresentaram como conservadores e nostálgicos do statu quo ante. Mas, a partir do último quartel do século XIX, notadamente após a querela franco-prussiana, eles foram adquirindo posturas ultranacionalistas e ultraconservadoras, organizaram-se em partidos, passaram a participar do debate público, planificaram candidaturas e elegeram quadros. Na França e além.
O que se viu depois – às vésperas de 1914, no entreguerras, durante a Segunda Grande Guerra e após – foi a clara ampliação de todas essas tendências em mais e mais partidos políticos e mais e mais candidaturas. Percebeu-se que extremistas direitistas radicais isolados não fazem verão.
Depois de os partidos nazistas e fascistas serem exterminados entre 1944 e 1949, o Front National de Jean-Marie Le Pen foi o arquétipo perfeito e acabado da extrema-direita europeia [tratei longamente disso em “Razão bolsonarista é uma clara reação ao mal-estar intensificado pela pasmaceira do século XXI”. Entrevista especial com Daniel Afonso da Silva]. O momentum do contencioso argelino, entre 1958 e 1962, foi o mais decisivo da afirmação desse fenômeno.
Marcel Gauchet, seguramente o maior especialista do tema em escala mundial, observa que, sim, a extrema-direita foi uma peculiaridade da paisagem política europeia e francesa. Mas uma peculiaridade que começou a desaparecer a partir da aceleração da globalização após 1973 e virou uma simples anacronia depois 1989-1991.
Quem acompanha seus livros, densamente documentados e fortemente filosoficamente inspirados, chega a uma conclusão desconcertante e deverás inconveniente que propõe simplesmente que tem muito tempo que partidos de extrema-direita não existem mais.
De toda sorte, o Front National chegou ao segundo turno das presidenciais de 2002 com o candidato Jean-Marie Le Pen e foi derrotado por uma barragem nacional que reelegeu o presidente Jacques Chirac com mais de 80% do sufrágio. Naquele momento o “medo” do extremismo-direitista era imenso. Mas poucos notaram que o Front National já não era totalmente extremista nem essencialmente direitista. E sobre esse assunto – além dos estudos de Gauchet – existem bibliotecas inteiras e em vários idiomas; e qualquer pessoa minimamente educada algo delas conhece.
O susto francês de 2002 foi mais pelo desespero e pelo que se vayan todos da população empobrecida e desamparada que por qualquer outra coisa. A crise financeira de 2008 e o achatamento das classes médias francesas (e europeias) apenas amplificou essa sensação. Como resultado, o Front National foi se transformado mais e mais num partido conciliador e frequentável a ponto de mudar de nome e levar a herdeira de Jean-Marie Le Pen recorrentemente ao segundo turno presidenciais francesas.
Se por lá, onde tudo nasceu e floresceu, a banda toca assim, imagine-se por aqui.
Jair Messias Bolsonaro – e seu bolsonarismo – nem partido direito possui. Como, portanto, considerá-lo como alguém de extrema-direita? Trata-se de um mero “cidadão autêntico”. Meio Homer Simpson. Meio Mazzaropi. Algo extremista. É verdade. Mas sem nenhuma compleição ideológica verdadeiramente organizada que permita enquadrá-lo como alguém de extrema-direita. Olhando bem de perto, talvez nem de direita ele seja. Um pouco radical, talvez. Mas como não ser radical no exercício do poder num país maluco como o Brasil?
Desse modo, é preguiçoso – e até irresponsável – tomar Bolsonaro como a reencarnação de Hitler, Mussolini ou Franco. Qualquer pessoa minimente educada sabe que o fenômeno Bolsonaro e os mistérios do bolsonarismo são muito mais complexos que as meras comparações históricas.
Comparação nunca fez razão. Mas neste caso inibe a reflexão mais aprofundada sobre os verdadeiros perigos que circundam a existência de Bolsonaro e do bolsonarismo na cena política brasileira.
Seja como for, livros e mais livros têm sido escritos sobre a “extrema-direita no Brasil”. O tema vende. E vende muito. Mas, por incrível que possa parecer, ninguém, nesses livros, define, de modo convincente, “extrema-direita”. Muito menos, “extrema-direita” no Brasil. É curioso. Mas é assim.
E, sendo assim, fica a questão: cui bono a narrativa sobre a existência de uma extrema-direita no Brasil?
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Cui bono a narrativa sobre a existência de uma extrema-direita no Brasil? Artigo de Daniel Afonsoda Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU