Novo documento do Vaticano mostra a abordagem “única” do Papa às questões da dignidade humana, diz teólogo moral

Foto: Reprodução | Vatican News

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10 Abril 2024

Entrevista com o professor Alain Thomasset, padre jesuíta, professor de teologia moral na Faculdade de Teologia Loyola, em Paris.

A entrevista é de Marguerite de Lasa, publicada por La Croix International, 09-04-2024.

O novo documento do Vaticano sobre ameaças à dignidade humana reafirma principalmente o ensinamento já declarado da Igreja, mas o teólogo moral Alain Thomasset diz que também inclui a contribuição única do Papa Francisco, especialmente no que diz respeito aos "ataques contra a dignidade humana na tragédia da pobreza, à situação dos migrantes, violência contra as mulheres, tráfico de seres humanos e guerra".

Thomasset, um padre jesuíta como o papa, ensina teologia moral na Faculdade de Teologia Loyola, em Paris. Ele diz que Dignitas infinita, a nova “declaração” do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre a dignidade humana, também é importante na forma como oferece distinções úteis entre vários significados de dignidade.

Eis a entrevista.

O propósito da Dignitas infinita é algo novo? Se sim, qual é a sua novidade?

Em geral, o texto recorda o ensinamento da Igreja desde o Vaticano II, que faz do respeito pela dignidade humana o princípio fundamental da ética, o fundamento dos direitos humanos e a condição para qualquer sociedade justa e pacífica. A sua novidade reside na clarificação do termo “dignidade”, visando evitar confusões na descrição das diversas violações desta dignidade.

Isto é diferente da abordagem dos papas anteriores? Qual é a perspectiva única do Papa Francisco?

O texto está em harmonia com papas anteriores (a saber, Evangelium vitae e Sollicitudo rei socialis, de João Paulo II, ou Caritas in veritate, de Bento XVI), mas podemos reconhecer a singularidade de Francisco na ênfase colocada nos ataques contra a dignidade humana na tragédia da pobreza, da situação dos migrantes, da violência contra as mulheres, do tráfico de seres humanos e da guerra. Estas são questões que o Papa queria ver acrescentadas ao primeiro rascunho do dicastério e que têm prioridade.

“Embora tenha havido uma consciência crescente da dignidade humana”, como diz o texto, por que é necessário reafirmar a dignidade infinita, inalienável e incondicional de cada ser humano hoje?

A dignidade da pessoa humana é ameaçada de diversas maneiras e de novas maneiras. Perante a discriminação ou a rejeição social (como o tratamento dos deficientes, dos idosos, dos bebês e dos moribundos), é necessário recordar que a dignidade não está ligada à aparência ou às capacidades, mas é dada com a vida. A distinção feita no documento entre “dignidade ontológica” (intrínseca, ligada ao fato de existir) e “dignidade existencial” (a experiência vivida dos indivíduos ou a valorização social da dignidade), por exemplo, ajuda a evitar confusão quando se fala de "morrer com dignidade" e evitar fazer disso um argumento frequentemente utilizado para o suicídio assistido ou a eutanásia.

Embora o documento aborde violações bem conhecidas da dignidade humana, como a violência, a pobreza, o aborto e a guerra, também são abordadas novas questões, a saber: as questões levantadas pelo mundo digital, a mudança de sexo e, de um modo mais geral, a legislação que tende a valorizar direitos individuais subjetivos, separados da consideração do que é comum a toda a humanidade e da dimensão relacional da pessoa. A liberdade de expressar esta dignidade não é autorreferencial e individualista, mas dedicada a servir os outros e o bem comum.

Este documento poderia levar a mudanças posteriores em certos pontos da doutrina?

As distinções feitas entre os diferentes significados de dignidade (ontológico, moral, social e existencial) são uma contribuição interessante que merece ser ampliada. Eles complementam a doutrina da Igreja para evitar confusão linguística, que é muito comum atualmente.

O documento incentivará os teólogos a trabalharem determinados temas ainda pouco estudados, como a violência digital, por exemplo?

O campo da violência digital é um ponto original do documento que merece trabalho teológico: como ele modifica nossa relação com o tempo, o espaço, as relações e o corpo?

Da mesma forma, quanto às mudanças de sexo e à teoria de gênero, como considerar as reais dificuldades vividas pelos indivíduos na salvaguarda da dignidade de cada um? Como, também, considerar a situação dos indivíduos homossexuais?

Por outro lado, surpreende-me não ver questões relacionadas com a inteligência artificial. A ecologia também é pouco abordada.

O que você acha da forma como a questão do abuso é tratada neste texto. É muito pouco ou já é significativo que a questão apareça num texto magisterial deste tipo?

É importante que o documento do Dicastério fale sobre abusos, uma vez que este ataque à dignidade das pessoas ocorreu dentro da Igreja e ainda temos dificuldade em compreendê-lo. O texto, embora breve, enfatiza corretamente que o abuso causa feridas para toda a vida. Permite-nos concentrar-nos nas vítimas, enquanto anteriormente o foco da Igreja estava principalmente nos atos do agressor.

A ênfase do documento na dimensão relacional da nossa liberdade permitiria também uma reformulação da ética sexual e familiar numa direção que evitasse a idealização indevida – uma fonte potencial de violência – e que valorizasse o respeito e a justiça nas relações.

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