22 Março 2024
Organizações judaicas nos EUA e políticos israelenses atacaram o discurso contundente do cineasta britânico, um autor cult com apenas quatro filmes e um veterano em videoclipes.
A reportagem é de Gregório Belinchón, publicada por El País, 13-03-2024.
“Todas as nossas decisões [ao fazer o filme] procuraram nos refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer 'Veja o que eles fizeram então', mas 'Veja o que fazemos agora'. Nosso filme mostra aonde a desumanização nos leva”. Assim começou o discurso de Jonathan Glazer (Londres, 58 anos), com o Oscar de melhor filme internacional em mãos por The Zone of Interest, filme que levou o drama de Auschwitz à última edição do Oscar. “Agora estamos aqui como homens que recusam que o seu judaísmo e o Holocausto sejam sequestrados por uma ocupação que levou tantas pessoas inocentes ao conflito, sejam elas as vítimas do 7 de outubro em Israel, seja o ataque em curso em Gaza”.
Surgiu um dos grandes diretores de videoclipes dos anos 90, o diretor de quatro filmes considerados cult, o artista que conseguiu transmitir o horror dos campos de extermínio nazistas nas salas de cinema sem que se visse uma única imagem das vítimas da gala do Oscar no domingo reforçado como criador com voz própria, sem medo nem autocensura.
Com seu discurso obteve aplausos mornos nas bancas do Dolby Theatre, mas confirmou sua idiossincrasia: Glazer não quer nem precisa se casar com ninguém. Agora, fora de Los Angeles, a resposta não tem sido calma. Em Israel, apesar da alusão direta, o discurso foi ignorado. Um dos poucos ministros que respondeu foi o da Diáspora e Luta contra o Antissemitismo, Amijai Chikli. “Não tenho ideia de qual é o nome do idiota útil de plantão que escolheu ontem à noite enfiar uma faca nas costas do seu povo”, escreveu um dia depois do Oscar na rede social X, com uma foto de Glazer em Los Angeles, e o descreveu como um "judeu auto-antissemita" para quem "não há perdão". Danny Danon, deputado do mesmo partido, o Likud, liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, considerou “uma pena que um realizador judeu tenha aproveitado o palco que lhe foi dado para fazer declarações antissemitas comparando o Holocausto com a guerra inevitável que nos foi imposto”.
No que diz respeito ao Oscar, quem mais criticou o cineasta não foram os políticos israelenses, mas sim as organizações judaicas sediadas nos Estados Unidos. A Liga Antidifamação enfatizou que “Israel não sequestra o Judaísmo ou o Holocausto ao se defender contra terroristas genocidas”, então o discurso foi “fatalmente incorreto e moralmente repreensível”, enquanto o Congresso Judaico Mundial o chamou de “uma afronta à memória de aqueles que sofreram os horrores do Holocausto”.
Porém, todas as considerações sobre o discurso esquecem a parte final do agradecimento. Glazer filmou ao lado do campo de Auschwitz (com a aprovação do Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau) para ressuscitar a atmosfera, e dedicou o Oscar a uma idosa polonesa, Aleksandra Bystroń-Kołodziejczyk, que conheceu antes das filmagens e que era parte da resistência quando tinha apenas 12 anos. Algumas semanas depois que Glazer a conheceu, ela morreu. A equipe filmou na casa dela, próxima ao muro do campo, onde ela circulava de bicicleta para deixar maçãs (em um desses passeios ela encontrou uma partitura composta pelo preso Joseph Wulf, que sobreviveu) para os presos. A bicicleta e os vestidos de Bystroń-Kołodziejczyk aparecem em Zona de Interesse, quando em uma sequência noturna uma garota é vista realizando a mesma ação: esconder comida para os prisioneiros.
Porque Glazer passou quase uma década preparando The Zone of Interest, uma adaptação muito gratuita do romance homônimo de Martin Amis, que viu o filme finalizado antes de morrer no mesmo dia em que o filme estreou em Cannes, onde ganhou o Grand Prix Prêmio do júri. Meses depois, na competição de San Sebastián, o cineasta, em entrevista ao El País, explicou que quando criança ficava impressionado ao ver imagens do vandalismo da Kristallnacht: “Pessoas fisicamente como meu pai, meus tios, eu mesmo, aparecem colecionando as janelas quebradas das vitrines das lojas. Quando criança eu não entendia o que estava acontecendo, mas isso me dava uma sensação perturbadora. E o mesmo aconteceu com os pedestres que simplesmente observavam sem agir ou ajudar. Por que essa passividade? Assim, ele procurou “o canto da história a partir do qual enfrentar esses acontecimentos, uma abordagem que não havia surgido antes na tela”. Em 2014 leu uma resenha do romance homônimo de Martin Amis, e sem ler o livro, apenas com a resenha, perguntou ao seu produtor, James Wilson (que colecionou o Oscar com ele, e que durante a temporada de premiações sido bastante beligerante contra uma certa “simpatia seletiva”), para comprá-lo. “Embora o personagem do comandante criado por Amis seja fictício, investiguei pessoas reais e isso me levou a uma longa jornada.” É por isso que no filme os protagonistas têm os seus nomes autênticos: o comandante de Auschwitz, Rudolf Höss e a sua esposa, Hedwig.
O londrino disse em setembro: “Sejamos honestos. Ninguém nasce assassino em massa, mas passo a passo a passividade, o desejo de ser aceito, leva-o a esse destino. Esta escalada ocorre ainda hoje”, palavras que se tornaram ainda mais relevantes desde o passado dia 7 de outubro, quando eclodiu a guerra em Gaza.
Depois dessa conversa, o cineasta relembrou uma conversa com o pai: “Na minha casa nunca se falava claramente do Holocausto, embora estivesse lá”, lembrou. “A minha família instalou-se no Reino Unido, vindo da Ucrânia e da Bessarábia, depois do pogrom de 1903. De qualquer forma, quando o meu pai descobriu que eu estava neste projeto, disse-me: 'Não sei porque é que está fazendo isto. Deixe apodrecer. E essas três palavras [em inglês Let it rot] provocaram em mim uma resposta rápida: 'Eu realmente gostaria que apodrecesse, mas isso não aconteceu apenas no passado'.
Glazer estudou quando criança em uma escola judaica em Camden, bairro londrino onde cresceu e ainda mora. Sua família era judia reformista e, quando criança, ele se inscreveu no programa Givat Washington, no qual passou cinco meses em Israel, em uma vila juvenil que era uma mistura de escola secundária e kibutz. Depois de se formar em design teatral pela Universidade de Nottingham, começou a dirigir trailers.
Em 1993 lançou três curtas-metragens que lhe abriram caminho na publicidade e posteriormente nos videoclipes. Em 1997 ganhou o prêmio MTV de melhor diretor de videoclipe, e sua assinatura está nos filmes de Radiohead, Nick Cave, Jamiroquai, Blur e Massive Attack. Nesse momento decidiu saltar para o cinema, paixão herdada do pai. Admirador de Kubrick, Glazer dirigiu apenas quatro filmes em sua vida: Sexy Beast (2003), um brutal filme de gangster filmado parcialmente na Espanha com Ben Kingsley e Ray Winstone; Reencarnação (2004), com Nicole Kidman descobrindo a alma do marido morto em uma criança; Under The Skin (2014), que também dedicou uma década de produção e em que Scarlett Johannson interpreta uma cruel alienígena, e The Zone of Interest, que no domingo ganhou dois Oscars (filme e som internacionais).
Glazer primeiro filmou com os atores que personificavam a vida comum dos Höss e, mais tarde, para que não afetasse os atores, acrescentou os ruídos e gemidos de desespero causados pela maquinaria dos campos de extermínio nazistas.
Em setembro, Glazer disse ao El País: “Não queria fazer uma peça para museus, feita com uma distância gratificante do público. Porque então você se esquece da incrível capacidade do ser humano de cometer crimes aberrantes, passiva ou ativamente. É tão fácil ir nessa direção..." No domingo, a sua intervenção foi simplesmente consistente com as suas palavras.
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Jonathan Glazer, o diretor judeu de “A Zona de Interesse” que ousou apontar Israel no Oscar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU