11 Março 2024
Toda a população de Gaza já está com fome, segundo a ONU, devido ao corte deliberado da ajuda humanitária por parte de Israel e à destruição de infraestruturas na Faixa. Sem ajuda externa, a catástrofe é “quase inevitável”.
A reportagem é de Beatriz Lecumberri, publicada por El País, 10-03-2024.
As pernas esqueléticas de uma criança, civis em busca desesperada de comida e sendo bombardeados, bebês já letárgicos morrendo por falta de comida, aviões lançando comida de pára-quedas, dezenas de caminhões carregados de ajuda esperando que as portas da Faixa se abram para poder distribuí-la. “A velocidade da tragédia em Gaza não tem precedentes”, diz ao El País Ricardo Pires, chefe de comunicações da Unicef em Nova York. “É algo que nunca vimos e se as coisas não mudarem, isto é apenas o começo do desastre, da desnutrição em Gaza. Não há tempo”, insiste.
Neste momento, todos em Gaza passam fome, com mais de um quarto dos seus 2,2 milhões de habitantes enfrentando “níveis catastróficos de privação e falta de alimentos”, segundo a ONU. A fome, a fase mais crítica da insegurança alimentar, é “iminente”, especialmente no norte da Faixa e “quase inevitável” sem intervenção externa num período muito curto de tempo. “Israel tem deixado de fome intencionalmente os palestinos em Gaza desde 8 de outubro”, denunciaram especialistas da ONU esta semana.
A gravidade e a magnitude da insegurança alimentar são medidas na chamada Classificação Integrada de Fases (CIF), um conjunto de procedimentos e ferramentas aprovados internacionalmente e totalmente independentes que estabelecem cinco fases: mínima, acentuada, crise, emergência e fome. Para que se considere oficialmente que a fome castiga uma população, existem três critérios: que 20% dos habitantes morram de fome, que 30% das crianças estejam gravemente desnutridas e que duas em cada 10.000 mortes diárias sejam devidas à fome, à desnutrição ou à falta total de alimentos.
Forte! CNN gringa põe imagens de crianças nas paredes de seu estúdio. Uma para cada criança morta por Israel. O visual é chocante! 🇵🇸 pic.twitter.com/GOr9B4Sf8Z
— André Fran (@andrefran) March 11, 2024
Neste momento e segundo a CIF, 2,2 milhões de habitantes de Gaza, ou seja, toda a população, já se encontram na fase 3 ou crise, “a maior percentagem de pessoas que sofrem deste tipo de insegurança alimentar aguda”. 50% da população está em situação de emergência (fase 4) e pelo menos um em cada quatro agregados familiares está em condições catastróficas ou de fome.
O vice-diretor executivo do Programa Mundial de Alimentação, Carl Skau, alertou no fim de fevereiro que é necessário agir imediatamente para permitir um aumento no volume de alimentos que chega ao norte da Faixa, porque “se nada mudar, a fome é iminente” naquela área.
No sul, as organizações humanitárias entregam alimentos, mas não em quantidade suficiente ou regularmente. Skau mencionou “uma perspectiva real de fome até maio ”em Gaza, mas Máximo Torero, economista-chefe da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), é ainda mais pessimista: “Acredito que a velocidade e a expansão do conflito podem levar que isso aconteça mais rápido”, disse ele a este jornal.
A CIF publicará em meados deste mês um relatório atualizado sobre Gaza, que este especialista acredita que confirmará sem dúvida a deterioração da segurança alimentar e nutricional sofrida nas últimas semanas. Qualquer chance de sobrevivência está sendo tirada da população porque ela não tem acesso a alimentos e água.
Hunger is everywhere in #Gaza 📍
— UNRWA (@UNRWA) March 10, 2024
The situation in the north is tragic, where aid via land is denied despite repeated calls. Ramadan is approaching. The death toll continues to rise.
Humanitarian access across the #GazaStrip & an immediate ceasefire are imperative to save lives. pic.twitter.com/mgdgxqDeJu
Segundo o especialista da FAO, esta situação não se registra noutros locais afetados pela fome extrema, onde o acesso à população é possível. Em Gaza, o problema não é apenas a guerra, cada vez mais generalizada e intensa, mas “os graves danos à infraestrutura e a impossibilidade de chegada de ajuda humanitária, para além da deslocação sem precedentes da população e da destruição de serviços de água e saneamento”, acrescenta. “É uma situação totalmente anômala que viola todos os direitos à alimentação. Qualquer chance de sobrevivência está sendo tirada da população porque ela não tem acesso a alimentos e água”, afirma o economista-chefe da FAO.
Gaza está sujeita a um bloqueio israelense desde 2007, quando o grupo islâmico palestino Hamas assumiu o poder na Faixa. Nada nem ninguém entra ou sai deste território palestino de 365 quilômetros quadrados sem autorização israelense. Entre 53 e 59% dos habitantes de Gaza viviam na pobreza antes do início deste novo ataque de conflito. Em 7 de outubro de 2023, militantes do Hamas infiltraram-se em Israel e mataram cerca de 1.200 pessoas e fizeram 250 reféns, segundo dados oficiais. Israel lançou uma ofensiva militar, aérea e terrestre contra a Faixa que dura até hoje e já causou mais de 30 mil mortes em Gaza, segundo números do Ministério da Saúde palestino.
Antes de outubro, dois terços da população de Gaza recebiam ajuda para comer, sob a forma de alimentos ou subsídios. A desnutrição infantil aguda não atingiu 1%.
Metade da população de Gaza é composta por menores. Atualmente, 15% das crianças com menos de dois anos sofrem de desnutrição aguda no norte de Gaza, segundo um estudo conjunto da Unicef e do Programa Mundial de Alimentação). Todas as crianças com menos de 5 anos, ou 335 mil, correm o risco de desnutrição aguda grave, segundo especialistas da ONU.
Em fevereiro, um relatório do Global Nutrition Cluster (GNC), uma aliança de ONG e entidades da ONU liderada pela Unicef, concluiu que mais de 90% das crianças com menos de 5 anos em Gaza comem duas vezes por dia ou menos. Devido à escassez de alimentos, ao fato de por vezes não estarem em boas condições e às más condições de higiene geral, estas crianças são afetadas por doenças infecciosas, especialmente diarreias potencialmente fatais porque o seu sistema imunitário já está enfraquecido pela falta de alimentos e água.
Especialistas da ONU notaram que no hospital Kamal Adwan, no norte de Gaza, já existem 15 crianças que morreram devido à desnutrição. Na noite de sexta-feira, mais três crianças morreram pela mesma causa no hospital Al Shifa, também no norte, segundo informou no sábado o porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, Ashraf Al-Qidr. “Quando as crianças começam a morrer desta forma, sabemos que a fome está aí ou mesmo ao virar da esquina”, alertaram. Outros menores morreram devido à falta de alimentos em outros hospitais ou abrigos onde estão superlotados, mas os números são difíceis de obter e verificar.
O artigo 54 do protocolo adicional às Convenções de Genebra de 1949 diz que “é proibido atacar, destruir, remover ou inutilizar bens essenciais à sobrevivência da população civil, tais como bens alimentares (...) seja para fazer matar civis de fome, para causar seu deslocamento ou para qualquer outro propósito”. A Resolução 2.417 do Conselho de Segurança ONU, adotada em 2018, condena o uso da fome e da inanição da população civil como arma de guerra.
Em janeiro, medidas cautelares emitidas pelo Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas em Haia exigiram que Israel tomasse medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos em Gaza, tais como assistência alimentar e água potável. Nos últimos meses, vários responsáveis israelenses, como o ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, e o ministro da Energia, Israel Katz, expressaram a sua intenção de privar os civis de Gaza de comida e água.
Especialistas da ONU notaram que no hospital Kamal Adwan, no norte de Gaza, já existem 15 crianças que morreram devido à desnutrição.
Nos últimos dias, multiplicaram-se as informações sobre negociações entre Israel e o Hamas patrocinadas por terceiros países para um cessar-fogo de 40 dias. Israel permitiria a entrada de camiões, tendas, combustível e outros materiais para reabilitar, por exemplo, hospitais.
Os Estados Unidos, a Jordânia, o Egito, os Emirados Árabes Unidos e a França lançaram alimentos de aviões para Gaza. Israel controla o espaço aéreo da Faixa e estas iniciativas, que para o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, “deveriam ser a solução de último recurso”, devem ter a sua aprovação.
Na quinta-feira, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou que Washington, juntamente com outros países aliados, construirá um porto temporário em Gaza para acesso à ajuda humanitária de Chipre, o país da União Europeia mais próximo da Faixa (cerca de 370 quilômetros).
“Não se pode negociar com a ajuda humanitária. É uma obrigação básica de Israel e deve ser fornecida incondicionalmente”, sublinharam os especialistas da ONU.
A IV Convenção de Genebra estabelece que as potências ocupantes, neste caso Israel, têm “o dever de fornecer alimentos e produtos médicos à população do território ocupado”.
“Voltar não será fácil. Isso vai levar tempo. Devíamos garantir o acesso seguro à ajuda humanitária e planejar rapidamente a logística para levar essa assistência aos locais onde as pessoas estão morrendo de fome, porque já vimos o que aconteceu na semana passada”, afirma Pires. O chefe da Unicef refere-se à morte de mais de uma centena de habitantes de Gaza quando perseguiam um comboio de ajuda, alguns deles fuzilados por soldados israelenses, o que descreveu como uma “tragédia”.
“A prioridade é parar a violência agora e deixar entrar a ajuda humanitária que espera na fronteira. Primeiro temos que resolver a emergência, reduzir o impacto e depois ver como reconstruímos e isso vai demorar. Mas, por enquanto, a prioridade é o cessar-fogo para poder entrar massivamente com assistência. O tempo é crucial, devemos agir imediatamente”, afirma Torero.
Os números e relatórios apresentados por entidades como a FAO ou a Unicef são elaborados graças a funcionários locais, missões esporádicas de representantes destas entidades da ONU e informações obtidas via satélite. São fiáveis, mas “os saldos que temos agora são muito inferiores à verdade que virá quando pudermos entrar em Gaza”, alerta Pires.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A fome “iminente” em Gaza: como chegamos a isso? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU