05 Janeiro 2024
"Nesse sentido, sacerdotes, diáconos e outras pessoas envolvidas no cuidado das almas podem ir ao encontro das pessoas e abençoá-las – sem ter que pensar em encontrar-se em situações pastorais contraditórias. Uma simples bênção, combinada com uma oração livre para pedir a ajuda e a graça de Deus, pode ser oferecida a todos. Além disso: cada pessoa, sem exceção, necessita da bênção de Deus, pois, como diz Paulo, “todos pecaram” (Rm 3, 23) — também aquele que ministram a bênção", escreve Stefan Oster, bispo de Passau, Alemanha, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 27-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fiducia supplicans1 - “confiança suplicante”: esse é o título de um novo documento romano, promulgado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé e assinado pelo seu Prefeito, o Cardeal Fernández. Trata de uma questão que há anos envolve intensamente a opinião pública, tanto dentro como fora da Igreja; uma intensidade semelhante, talvez, apenas àquela relativa à questão da possibilidade de admitir as mulheres aos ministérios consagrados. Trata-se da possibilidade de abençoar a união de casais fora do casamento entre um homem e uma mulher, portanto, por exemplo, casais do mesmo sexo ou novas uniões após uma separação ou divórcio. A grande maioria dos jornalistas que trataram desse documento altamente diferenciado, após a sua publicação, acolheram-no como uma espécie de virada marcante: o Vaticano permite finalmente a bênção de pessoas homossexuais!
Em contradição com a recente carta aos bispos alemães?
E, no entanto, apenas pouco tempo atrás, o Vaticano, na pessoa do Cardeal Secretário de Estado Parolin, havia comunicado numa carta aos bispos alemães que, no que diz respeito ao caminho sinodal alemão, há temas modificáveis que podem ser discutidos com Roma - e outros que são imutáveis. O Cardeal Parolin havia anexado à carta uma "nota" adicional2 do Dicastério para a Doutrina da Fé, sob a responsabilidade do Cardeal Fernández, cujo conteúdo também havia sido previamente aprovado por todos os outros chefes de dicastérios romanos que participaram na conversa. Essa nota enfatiza que, no que diz respeito à ordenação presbiteral reservada aos homens, “não há possibilidade de chegar a qualquer outro juízo” que não seja o estabelecido pela doutrina vigente.
Num segundo ponto, então, a nota afirma: “Outro tema sobre o qual a Igreja local não tem nenhuma possibilidade de apoiar uma opinião diferente diz respeito aos comportamentos homossexuais. De fato, embora reconhecendo que do ponto de vista subjetivo possam existir diversos fatores que nos exortem a não julgar as pessoas, isso não modifica em nada a avaliação da moralidade objetiva de tais comportamentos. O ensinamento constante da Igreja destaca que existe uma avaliação precisa e firme da moralidade objetiva das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Outro aspecto que não é discutido aqui é o grau de imputabilidade moral subjetiva de tais relações em cada caso individual”3. Aqui termina o texto - que tem apenas poucas semanas de vida - e que sai da mesma caneta do novo texto: Fiducia supplicans.
Se anteriormente muitas mídias sociais ficaram indignadas com aquela "nota", agora uma grande parte dos mesmos observadores da mídia saúda essa nova declaração como um texto em que a Igreja finalmente mudou de ideias: agora os casais homossexuais e de outro gênero também podem receber a bênção. Mas se foi recentemente afirmado que “a avaliação moral objetiva” dos comportamentos homossexuais está estabelecida, e se apenas em 2021 a então Congregação para a Doutrina da Fé havia reiterado que a Igreja não tem o “poder” de ministrar a bênção às “uniões entre pessoas do mesmo sexo”, o que aconteceu? A Igreja finalmente mudou sua doutrina? Será que a Igreja considera que agora de repente tem o “poder” de abençoar casais do mesmo sexo?
A resposta dada pelo Cardeal Fernández na nova declaração do seu Dicastério, na realidade não se enquadra no âmbito do ensinamento sobre a pessoa, e nem mesmo naquele que foi acima definido como “avaliação da moralidade objetiva”. Pelo contrário, enfatiza claramente que só no contexto do casamento entre um homem e uma mulher as relações sexuais encontram “o seu sentido natural, adequado e plenamente humano”4. A doutrina da fé – continua o texto – permanece firme nesse ponto.
Portanto, a novidade reside de fato na diferenciação do que pode ser entendido como “bênção”. Já foi dito na declaração de 2021 que se tratava de uma bênção no sentido litúrgico; uma bênção para um casal durante uma missa, uma bênção que poderia fazer pensar, ainda que remotamente, a um matrimônio. Isso não é possível. E o novo documento também permanece firme nisso. Mesmo nesse aspecto os dois textos não se contradizem: nenhuma modificação da doutrina, nenhuma forma litúrgica - e sobre isso o Cardeal Fernández é ainda mais explícito: não existirão modelos rituais a seguir, ou seja, não haverá um chamado ritual para a missa.
Contudo, há uma coisa que o Cardeal Fernández introduz como uma verdadeira inovação: desenvolve a doutrina da bênção expressamente fora das celebrações litúrgicas. Por exemplo: quando me movo publicamente, como sacerdote ou bispo, as pessoas continuam a pedir-me espontaneamente uma bênção: perguntam se posso abençoar a elas ou ao seu filho, os familiares que não estão presentes ou algum objeto. Nesse sentido, nunca neguei uma bênção – formulada como oração livre – e jamais passaria pela minha cabeça a ideia de informar-me se a pessoa que pede tal bênção era digna dela.
O Cardeal Fernández retoma precisamente essas situações e outras semelhantes – interpreta-as teologicamente como um pedido ascendente de bênção para receber a graça de Deus e, portanto, como suplicante, para poder viver melhor. Ele estende esse pedido de bênção também aos casais que, como se costuma dizer, se encontram em “situações irregulares”5. Por exemplo, pode-se rezar espontânea e livremente para que a vontade de Deus se cumpra também na sua vida. E, nesse sentido, cada pessoa e até cada casal podem agora ser abençoados.
Tais bênçãos, continua o texto, não devem ser promovidas expressamente, nem devem causar escândalo ou envolver um ritual. Além disso, a ocasião, as roupas ou os gestos de quem recebe a bênção não devem assemelhar-se a um casamento. Tudo deve estar ao serviço do acompanhamento pastoral das pessoas – para que Deus possa agir nelas – mas sem que a sua relação concreta seja expressamente aprovada, ou, como diz o texto, “validada”. Isso corresponde à pia convicção de que é sempre Deus quem dá o primeiro passo para vir ao nosso encontro. Há sempre o primado da graça – que pode então ajudar as pessoas a viverem de forma diferente diante de Deus, de acordo com a sua vontade. Nesse sentido, sacerdotes, diáconos e outras pessoas envolvidas no cuidado das almas podem ir ao encontro das pessoas e abençoá-las – sem ter que pensar em encontrar-se em situações pastorais contraditórias. Uma simples bênção, combinada com uma oração livre para pedir a ajuda e a graça de Deus, pode ser oferecida a todos. Além disso: cada pessoa, sem exceção, necessita da bênção de Deus, pois, como diz Paulo, “todos pecaram” (Rm 3, 23) — também aquele que ministram a bênção.
Sou, portanto, grato por essa declaração, pois em muitos aspectos pode nos ajudar nos debates polarizados sobre essa questão. Há dois anos, na diocese de Passau inaugurei um novo centro para o cuidado das almas das pessoas queer. Como Igreja Católica, no caminho pastoral com essas pessoas temos normalmente um grande déficit de compreensão e, muitas vezes, quase nenhuma capacidade de comunicação no cuidado das almas. Agora o campo de jogo para o caminho pastoral comum torna-se mais amplo. Uma oração pela bênção e benevolência de Deus no sentido da Igreja não deve mais necessariamente estar em contradição com a Igreja. E desse ponto de vista, o novo documento sobre a bênção pode ser uma bênção para todos aqueles que, no cuidado das almas, estão sinceramente empenhados no acompanhamento e ao mesmo tempo querem permanecer fiéis à Igreja na sua tradição.
Na Alemanha o texto pode ser esclarecedor, pois seguindo o caminho sinodal no nosso país, por um lado, atende aos pedidos de bênção dos referidos casais por parte de muitos participantes do Sínodo. Por outro lado, proibindo expressamente liturgias e ritos para tais bênçãos poderia bloquear uma tendência que corre o risco de se afastar da Igreja universal. De fato, nesse interim, foram lançadas iniciativas para formular textos e liturgias, ou já foram elaboradas, para dar às bênçãos um quadro análogo ao do matrimônio6. Mas isso é expressamente proibido.
O texto também pode ser esclarecedor para o processo sinodal universal. Durante o Sínodo de outubro passado, em Roma, a questão da possibilidade de abençoar pessoas do mesmo sexo foi levantada várias vezes – tanto por pessoas a favor como contra. E ali sempre estava suspensa também a possibilidade de uma modificação da doutrina, temida ou aprovada. Porque de fato existe também uma lógica interna segundo o entendimento: quem quiser abençoar, com aquele gesto deveria também aprovar (bem- dizer) o que sempre foi - e ainda é - considerado um pecado. Pode ser feito? E agora podemos entender: esse nexo não é obrigatório. Se entendermos a bênção segundo aquela diferenciação que o Cardeal Fernández nos apresenta agora e que foi expressamente aprovada pelo Papa, então é possível. E se fosse recebido dessa forma, então talvez esse tema permaneceria fora do Sínodo de outubro próximo, e talvez atenuado nos conteúdos. E os participantes no Sínodo poderiam, segundo o desejo do Papa Francisco, concentrar-se naquele que é o verdadeiro tema principal: tornar-se uma Igreja mais sinodal, missionária e participativa.
1. Clique aqui.
2. Clique aqui.
3. A nota aqui cita um documento da Congregação para a Doutrina da Fé: Notificação sobre alguns escritos do R.P. Marciano Vidal, c.ss.r., de 22 de fevereiro de 2001.
4. Dicastério para a Doutrina da Fé, Declaração “Fiducia supplicans” sobre o sentido pastoral das bênçãos, n. 5
5. Ibidem., n. 31
6. Clique aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A propósito da declaração “Fiducia supplicans”: Uma benção? Também para os curadores de almas! Artigo de Stefan Oster - Instituto Humanitas Unisinos - IHU