27 Novembro 2023
"Deus é pai, eu sou pai, portanto eu sou um deus: esse é o silogismo grosseiro da mente masculina de todos os tempos", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 24-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Outra noite, a convite da minha filha, participei com ela e o seu namorado na manifestação contra a violência contra as mulheres organizada em Bolonha por "Non Una di Meno". Havia vários milhares de pessoas, na sua maioria jovens, na sua maioria mulheres, mas também nós, homens, não éramos poucos, até vislumbrei alguns senhores que se poderiam definir, como eu, “de uma certa idade”. Faixas, apitos, algumas trombetas, algumas panelas e colheres, enfim, as coisas habituais sempre usadas nas manifestações para fazer barulho e chamar a atenção. A novidade, pelo menos para mim, foram as chaves de casa, agitadas por muitas garotas para simbolizar com seu tilintar que nem em casa se sentem seguras. Minha filha também as sacudia, mas me segurava com o outro braço, então aquele gesto dela não me preocupava. Obviamente acima de tudo ressoavam os slogans, gritados com força e paixão pelas jovens mulheres. O mais repetido era o seguinte: “O estuprador / não é adoentado, / é filho saudável / do patriarcado”.
O patriarcado. Enquanto eu ouvia essa palavra repetida centenas de vezes, para todos naquela praça o inimigo número um, não pude deixar de pensar na nossa civilização. Tudo errado? Até o termo "pátria"? E o que dizer da nossa religião? "Pai Nosso que estais no céu". “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. “Papa” significa pai, e em Veneza e outras cidades antigas o chefe da igreja é chamado de “patriarca”. Quando se abre a Bíblia, além disso, há uma verdadeira inundação de patriarcado, começando obviamente pelos patriarcas bíblicos Abraão, Isaque, Jacó, com suas esposas, escravas e concubinas, até o rei Davi, que teve cerca de uma dezena esposas, e seu filho Salomão que teve centenas. Claro, a Bíblia também conhece mulheres independentes como Rute, Ester, Judite, mas se trata de exceções. O Deus masculino, primeiro e absoluto patriarca, fundamento de todos os outros patriarcados, dirige-se aos homens e a eles entrega a sua lei com os dez mandamentos, dos quais o último afirma “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Êxodo 20,17). A mulher, aqui imediatamente pensada como esposa, é colocada entre a casa e os escravos e os animais, uma coisa entre as coisas. E ainda hoje para muitos homens e mulheres essas palavras masculinas são a “Palavra de Deus”.
Não que nas outras religiões a situação seja muito diferente, visto que a invocação da divindade sob o nome de Pai é um fenômeno primordial, encontrado em quase todo lugar: na Mesopotâmia, no antigo Egito, na Grécia onde Homero tanto na Ilíada como na 'Odisseia chama Zeus de "pai dos homens e dos deuses", em Roma onde o termo pai já está contido no nome do deus supremo Júpiter, e na Índia onde Krishna, avatar de Vishnu, é abordado dizendo: "Você é o pai deste mundo." O Islã é uma exceção, já que é proibido falar de Deus como “pai” porque é considerado demasiado coloquial, mas isso não impediu justamente ali o estabelecimento de um patriarcado muito pesado.
Resumindo: Deus é pai, eu sou pai, portanto eu sou um deus: esse é o silogismo grosseiro da mente masculina de todos os tempos.
Levei em consideração a religião porque acima de tudo nela era condensada a alma profunda de um povo com seus ideais e valores. Mas qual é a lição a ser aprendida da prevalência do patriarcado em todas as principais civilizações do planeta? A resposta, na minha opinião, é a seguinte: a adoração da força. Ou seja, o patriarcado refere-se, muito mais que ao machismo, à prevalência universal da força. Por ser fisicamente mais forte, o homem é o sumo sacerdote dessa estrutura arquetípica primitiva cuja lógica fundamental é a força, com o que dela decorre, ou seja, o poder por um lado e a submissão pelo outro. A violência física até o assassinado nada mais é do que a manifestação mais evidente dessa estrutura que, ainda hoje, permeia todo âmbito vital.
Ainda hoje, de fato, a economia, o direito, a política, a tecnologia, a cultura, o desporto e a religião são exatamente isso em quase todas as suas manifestações: adoração da força.
Se um homem levanta a mão contra uma mulher, ele o faz porque deseja que ela seja submissa a ele, e provavelmente tenta resgatar assim os casos em que deve ser ele quem deve ser submisso, no âmbito de trabalho, entre os amigos ou em uma centena de outras situações. Contudo, nem mesmo as mulheres escapam a essa lógica prevalecente e impessoal da força. Pelo contrário, hoje não são poucas que tendem cada vez mais a se "masculinizar": isso pode ser percebido na linguagem vulgar, outrora prerrogativa dos homens e agora não mais, e também a partir da própria violência física que algumas delas reservam para outras mulheres, como infelizmente acontece ler com certa frequência nos noticiários diários.
A verdadeira questão não é, portanto, o fato de um ser homem e a outra ser mulher, patriarcado ou matriarcado, até porque há homens que não adoram, aliás, combatem a força (veja-se Gandhi) e há mulheres que adoram e usam a força (veja-se Margaret Thatcher). O ponto focal diz respeito mais ao segundo componente do termo "patri-arcado" ou "matri-arcado", ou seja, o sufixo "arcado" que se refere ao grego "arché" que neste caso significa "poder, comando, soberania". O ponto focal é a força, com o poder que ela confere.
Uma das maiores pensadoras do nosso tempo, Simone Weil, escreveu: “A força é o que torna uma coisa qualquer um que lhe seja submetido”. Continuava dizendo que a força homicida é apenas uma forma grosseira de força, que conhece manifestações diferentes e mais sutis, todas unidas pela transformação do ser humano numa coisa: “Está vivo, tem uma alma; e ainda assim é uma coisa." O problema deriva do fato de “a alma não ser feita para habitar uma coisa”, e por isso, quando é obrigada a fazê-lo, “não resta nela mais nada que não sofra violência”. Simone Weil conclui: “Que um ser humano possa ser uma coisa é, de um ponto de vista lógico, uma contradição; mas quando o impossível se torna realidade, a contradição se torna suplício na alma.”
Por isso, além dos sorrisos obrigatórios, todos nos sentimos mal e somos tomados por uma sensação de aprisionamento. Daí a nossa linguagem violenta e agressiva, nos tons da voz, antes mesmo nos termos e nos conteúdos. Somos todos prisioneiros do deus da força, mesmo que obviamente o sejam primeiro aqueles que levantam a mão, ainda mais se o fazem de forma covarde contra quem é mais fraco.
Para mim, a única libertação que conheço é a cultura, que inspira e faz florescer dentro de mim aquela dimensão que Simone Weil chamava de “alma”. Tudo no nosso mundo precisaria de mais alma. Nesse sentido, concluo com um fato pessoal para me reconectar com o ponto de partida pessoal de onde parti. Um dia um amigo iconógrafo quis me dar de presente um ícone, pintando-o especificamente para mim e me disse para escolher o tema. Escolhi Sophia, Hagía Sophia, a divina Sabedoria. O ícone que agora está em minha casa representa-a num trono, rodeada de anjos. Não o Deus masculino e dominador, mas a Sabedoria com rosto de mulher, porque é a dimensão feminina (presente em cada ser humano) que expressa relação e não força, harmonia e não imposição de si. Essa é a verdadeira divindade, o sumo ideal ao qual nos educar e educar desatando o nó de espinhos do patriarcado, e de todo outro “arcado”, dentro de nós.
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O verdadeiro problema não é o patriarcado, mas o culto à força do qual somos escravos. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU