A estratégia tanatopolítica de guerra: Hamas & Israel. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz e Márcia Rosane Junges

Soldados israelenses. (Foto: Timon Studler | Unsplash)

28 Outubro 2023

"A guerra atua através da morte da população, e não dos mortos em combate, ou num campo de batalha. Neste macabro jogo tanatopolítico, as vidas inocentes da população são oferecidas como sacrifícios necessários e inevitáveis para as estratégias políticas de ambos os lados", escrevem Castor M.M. Bartolomé Ruiz e Márcia Junges.

Castor M.M. Bartolomé Ruiz, doutor em Filosofia, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos, coordenador da Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Ética, Biopolítica e Alteridade.

Márcia Rosane Junges é graduada em Jornalismo pela Unisinos e licenciada em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. É especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova – UNIPD, na Itália, onde realizou co-tutela. É professora colaboradora do PPG Filosofia da Unisinos e do curso de graduação em Filosofia e atua como assessora pedagógica na Unidade de Graduação (UAGRAD) da Unisinos.

Eis o artigo.

A guerra é o pior dos males e a mais mortífera das soluções. O conhecido estrategista militar prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831) cunhou a máxima de que: “a guerra é um instrumento político, uma continuação das relações políticas por outros meios”. Este conhecido aforismo coloca em destaque o papel político que as guerras foram adquirindo na Modernidade. Ou seja, a guerra não mais deve ser considerada como um mero ato de defesa e ataque contra um inimigo, senão que, cada vez mais, foi adquirindo o papel de dispositivo biopolítico para gestão de interesses e manutenção de uma determinada ordem social, regional ou mundial.

Foucault, no curso no Collège da France no ano 1976, Em defesa da sociedade [1], inverteu o próprio aforismo de Clausewitz afirmando que na verdade “a política é a continuação da guerra por outros meios”. Talvez não seja possível estabelecer princípios universais absolutos sobre a política ou a guerra, afinal são práticas humanas históricas que devem ser analisadas em suas singularidades. Contudo, percebe-se que em nossa contemporaneidade os nexos entre a política e a guerra se estreitam ao extremo de operarem em diversos momentos de modo articulado e estratégico. A guerra, à diferença da política, tem como princípio a morte. A morte não é só uma consequência natural da guerra moderna, ela se tornou um objetivo calculado politicamente. À diferença das guerras antigas, a guerra moderna não pretende simplesmente conquistar riquezas ou submeter populações, ela visa obter ou manter o controle de uma determinada ordem social. A guerra se tornou um dispositivo biopolítico para governo da ordem mundial, regional ou social. Eis por que o papel da guerra deve ser circunscrito aos interesses estratégicos da ordem estabelecida. A guerra moderna tem que ser contida e permanente, sem ter por finalidade a destruição total do inimigo, senão a consecução de sua inserção utilitária dentro da ordem definida. Evita-se a guerra total, persegue-se a guerra cirúrgica necessária para circunstância, dado que uma guerra total significaria uma desestabilização imprevisível da ordem mundial, regional ou social e isso contraria os objetivos da própria guerra moderna.

Na guerra moderna, a morte adquiriu um papel estratégico, não de mera destruição absoluta do outro, nem de submissão total do inimigo, mas de controle da população. A população passa a ser um alvo da guerra na forma de efeito colateral previsto. As mortes da guerra são insumos estratégicos planejados para barganhar as disputas de poder. Não se deve matar de modo absoluto, mas se deve matar o suficiente para conseguir o controle da situação. Essa lógica tanatopolítica caracteriza uma boa parte das guerras modernas, dado que toda política que pretende continuar a guerra por outros meios se transforma numa tanatopolítica; esta nada mais é que uma política em que a morte dos outros é gerenciada estrategicamente para consecução de interesses vários, como controle da ordem.

A tanatopolítica tem a peculiaridade de se valer da morte como tática utilitária para objetivos estratégicos. Foucault no último capítulo, “Direito da morte e poder sobre a vida”, da sua obra História da Sexualidade 1: a vontade de saber, apresenta as características do poder moderno como sendo diferentes do clássico poder soberano. O poder soberano tinha poder de vida e morte, por isso “fazia morrer e deixava viver”, enquanto a modalidade de poder moderno pretende “fazer viver e deixar morrer”. Esse deslocamento aparentemente sutil caracteriza o que Foucault denominou de biopolítica ou biopoder. É um poder cujo alvo principal são as populações e não meramente os indivíduos singulares; um poder que visa gerenciar todas as potencialidades da espécie biológica humana para a extração do máximo de rendimento, produtividade ou benefício da condição biológica da população. A versão utilitarista da biopolítica parecia ter deixado de lado a lógica do poder soberano, “fazer morrer”, em prol de uma outra racionalidade produtiva da vida, “fazer viver”, com um investimento compulsivo em dispositivos para gerenciar utilitariamente os comportamentos da população.

Na última aula do curso que ministrou no Collège da France no ano 1976, Em defesa da sociedade, Foucault retoma a temática da biopolítica e, a uma certa altura, ele mesmo aponta paradoxos da biopolítica “no próprio limite do seu exercício”. As guerras modernas operam com o paradoxo que Foucault denomina de racismo biológico. Uma das funções do racismo biológico da guerra será definir positivamente a função da morte do outro, do matar o outro, numa lógica de racismo guerreiro: “se você quer viver, é preciso que o outro morra”. Na lógica da guerra moderna: “tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema do biopoder, se tende não só à vitória sobre os adversários políticos, mas à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou raça” (Foucault, 2000, p. 306). Por isso, “pelo fato de a guerra ser explicitamente posta como um objetivo político – e não meramente, no fundo, como objetivo político para obter certo número de meios, mas como uma espécie de fase última e decisiva de todos os processos políticos – a política deve resultar na guerra, e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto” (Foucault, 2000, p. 310). Eis porque as guerras modernas se fazem em nome da vida. A morte de uns se justifica para melhor vida de outros.

A peculiaridade da tanatopolítica moderna é que ela não pode agir na forma de um poder soberano absoluto, como ocorria nos antigos regimes. A tanatopolítica moderna tem que justificar publicamente a necessidade das mortes dos outros para legitimar o matar como uma necessidade política. O poder soberano da tanatopolítica moderna opera de modo mais letal que o poder soberano absolutista dos antigos regimes. Porém, a alta letalidade do novo poder soberano da guerra deve também produzir concomitantemente a legitimação da morte do outro na forma de necessidade da eliminação física do inimigo para nossa sobrevivência.

A tanatopolítica provoca uma espécie de sintonia inversa da biopolítica ao transformar a morte dos outros num meio útil de tornar produtiva a nossa vida. Desse modo, a tanatopolítica da guerra moderna obedece a uma vontade soberana de matar em nome da vida. A tanatopolítica moderna articula, de um lado, o poder soberano de decidir quem pode morrer utilizando para isso todos os meios militares e propagandísticos possíveis; em tanto, de outro lado, a mesma tanatopolítica é implementada seguindo a lógica utilitarista da biopolítica. A tanatopolítica da guerra moderna mata de modo cirúrgico e preciso o que for necessário matar para não hipertrofiar a sombra do poder soberano; ela mata nos tempos e prazos estrategicamente definidos pelo princípio utilitarista da morte do outro. A guerra não visa meramente destruir o inimigo ou derrotar um outro exército, senão matar de modo preciso e justificado para obter e manter o controle da ordem mundial, regional ou social. O que a tanatopolítica coloca em jogo é o controle da ordem social através da estratégica bélica como novo dispositivo político da gestão da ordem mundial.

Hamas & Israel

O novo e terrível estouro bélico que surgiu entre Hamas e Israel no dia 7 de outubro está eivado de uma lógica tanatopolítica que pretendemos analisar. A complexidade e longa duração de este conflito demanda um olhar caleidoscópico permanente, isso nos exige apresentar os elementos de algumas das peças desse complexo puzzle. Para tanto, consideramos pertinente retomar alguns dos elementos e dados históricos e sociais deste conflito, como meio de costurar algumas reflexões, que sempre serão incompletas.

O dilema ético da barbárie e seu horror: por que mataste a teu irmão?

Hamas planejou uma estratégia de barbárie brutal, com doses de desumanização aterradoras, a modo de estratégia tanatopolítica de excelência em sua guerra contra Israel. Previamente a quaisquer análises geopolíticas, devemos nos posicionar no questionamento ético radical que emerge ao contemplar a barbárie de vidas brutal e impiedosamente decepadas. A esse questionamento ético radical pertence o icônico questionamento que Deus fez a Caim: Por que mataste a teu irmão?

Hamas sabia que quando lançasse os foguetes contra Israel as sirenes de alarme soariam e todos os habitantes dos kibutzs e das pequenas cidades na fronteira deveriam correr a refugiar-se em seus bunkers. Hamas, atravessando a fronteira, foi relativamente fácil ir literalmente caçando a todas aquelas pessoas indefesas que sabia estavam escondidas nos bunkers ou na festa dos jovens. Sem nenhum tipo de piedade ou compaixão foram executando de modo cruel e impiedoso ao maior número de seres humanos possível. Hamas fez do horror sua estratégia tanatopolítica frente a Israel. Não tiveram piedade, nem misericórdia com crianças, até bebês, idosos, famílias inteiras se abraçaram instintivamente e assim foram fuzilados, cometeram violações inenarráveis, queimaram sem compaixão. Tudo sob a égide de uma estratégia tanatopolítica bem desenhada em que o maior número de mortos se tornaria a grande bandeira da provocação.

Nesse contexto de morte, perante o olhar das vítimas inocentes, temos que saber provocar e escutar de modo atualizado a grande questão: Como é possível que alguém possa realizar uma barbárie tão terrível olhando nos olhos das vítimas sem sequer algum fio oculto de sua humanidade não fosse sensibilizado? Como os seres humanos podemos chegar a cometer e normalizar essa barbárie? É possível alinhar algumas respostas mais simples como atribuir ao fanatismo político, ou ao doutrinamento ideológico sectário, o ódio étnico contido, etc. Mas quaisquer respostas sempre serão um modo superficial de eludir o questionamento que dirigido a todos os que com boa vontade se confrontam com a maldade humana: por que te esqueces tão rapidamente da morte do teu irmão?

Nesse cenário indescritível de barbárie, devemos resgatar os lampejos de humanidade que a ele se contrapõe. Um o testemunho de dois jovens que fugiam da festa atacada pelo Hamas e desesperados foram se esconder num kibutz. Ali encontraram um matrimônio árabe que os acolheu e advertiu para que fugissem pois o Hamas estava por ali. Eles se salvaram e o matrimônio árabe foi assassinado por Hamas. Outro testemunho de um jovem que desesperado se escondeu entre os corpos dos mortos ficando assim durante muito tempo até que um militar de Hamas chegou chutando os corpos para comprovar sua morte, quando descobriu que ele estava vivo, o militar do Hamas o olhou e lhe disse: “saia daqui”. Não podemos renunciar a crer na humanidade do ser humano, sem essa convicção radical estamos condenados à violência infinita da lei de Talião.

A guerra é o pior dos males e seu horror pode adquirir muitos meios de se mostrar. Se o terror que Hamas realizou nos apavora, talvez tenhamos uma outra atitude, até de mais tranquilidade e aceitação, com os até agora quase duas mil crianças – sem contar os adultos – mortas (assassinadas?) pelos bombardeios de Israel contra a população de Gaza. É possível simplesmente justificar esta sangria humana de matar a quase duas mil crianças (com um número total superior a cinco mil mortos até este momento) como um ato de legítima defesa? Os que disparam as bombas não tem que olhar nos olhos dos inocentes que matam, por isso mesmo eles podem ficar com a consciência bem mais tranquila nos seus dispositivos de lançamento.

Não podemos normalizar a barbárie nem justificar quaisquer método que utiliza a guerra como estratégia tanatopolítica. Se assim o fizermos, simplesmente sucumbiríamos à própria barbárie. Há que expor para luz a dor das vítimas e gritar por elas e com elas que toda guerra é o pior do males e a mais mortífera das soluções.

A sangria do povo palestino e a sombra do Hamas

 O ponto arquimédico deste complexo conflito está na situação do povo palestino e sua falta de um Estado próprio. Nos acordos de 1967 com Israel quedaram definidas as fronteiras políticas de um território palestino que compreenderia, de um lado, o território da Cisjordânia e de outro a atual franja de Gaza. Na Cisjordânia vivem aproximadamente três milhões e meio de palestinos, e em Gaza algo mais de dois milhões e duzentos mil. Israel ocupou militarmente os dois territórios palestinos na guerra de 1967 e decidiu desocupar militarmente a franja de Gaza em 2005, continuando a ocupação militar da Cisjordânia até o momento atual.

Durante décadas, o povo palestino só teve uma organização política que os representava, a Organização para Libertação de Palestina (OLP), cujo líder mais notável foi Yasser Arafat. Quando do início da década de 1990 começou a surgir uma dissidência política dentro da OLP, o Hamas. Israel e EUA apoiaram o fortalecimento de Hamas como dissidência da OLP, porque consideravam a divisão política do povo palestino uma forma de debilitar sua representatividade internacional e interna. Desse modo, Hamas em seus começos teve vários tipos de apoios de Israel e EUA. Algo muito similar ao que aconteceu quando os EUA decidiram apoiar à organização Al Quaeda de Osama bin Laden no Afeganistão, porque naquele momento lutavam contra seu maior inimigo, que era a URSS. Não puderam calcular os desdobramentos terríveis que estes grupos tiveram posteriormente.

Manifestação a favor da libertação da Palestina realizada nos Estados Unidos. (Foto: Aveedibya Dey | Unsplash)

Hamas, em 2006, venceu as eleições em Gaza e expulsou política e militarmente de Gaza ao outro grupo político Fatah (antiga OLP) da franja de Gaza. Hamas se impôs como governo total de Gaza, que é independente de Israel, ainda que se encontra cercado por terra, mar e ar de um modo quase total, até o extremo de se considerar a Gaza uma espécie de grande campo de concentração a céu aberto onde Israel mantem um controle quase total de tudo e de todos os que nele entram e saem.

O território da Cisjordânia continua ocupado militarmente por Israel, concedendo uma certa margem de liberdade administrativa do território à denominada Autoridade Nacional Palestina, hoje presidida por Mahmoud Abbas (Fatah).

Hamas é um grupo religioso sunita que radicalizou suas posições até adotar o jihadismo. Seus métodos violentos fizeram que vários países o declararam grupo terrorista, embora outros não. Sem dúvida que o que Hamas fez contra a população indefesa de Israel no dia 7 de outubro último é um ato terrorista; até o próprio termo terrorismo parece insuficiente para conseguir expressar o horror da barbárie cometida. Não entanto, o terrorismo de Hamas é diferente do de outros grupos islâmicos como Al Qaeda ou Estado Islâmico (ISIS), porque Hamas nunca atacou nenhum objetivo a não ser o Estado de Israel. Hamas só atua, por meio do terror, dentro do Estado de Israel.

Um outro aspecto relevante para melhor entendermos o Hamas diz respeito ao estreito apoio que ele mantem com o grupo político egípcio denominado de “Irmandade Muçulmana”, que também é um grupo sunita que tem por objetivo estabelecer a xaria islâmica. Tal relação entre ambos grupos é muito estreita e estratégica. A Irmandade Muçulmana é um grupo muito popular dentro de Egito, inclusive ganhou por maioria no parlamento as únicas eleições democráticas celebradas no Egito, em 2012, e seu presidente Mohammed Mursi foi deposto por um golpe de Estado dos militares egípcios, que declararam ilegal a Irmandade Muçulmana, continuando no poder, sem eleições, até o dia de hoje. Por este motivo, o governo militar do Egito não permite abrir a fronteira com a franja de Gaza para a saída dos refugiados da guerra. Tampouco permite que se estabeleça no Egito nenhum tipo de acampamento palestino, pois seria o elo perfeito entre a Irmandade Muçulmana e o Hamas. Eis porque há campos de refugiados palestinos em todos os países do Oriente Médio, menos no Egito.

Escutamos muita propaganda de que Hamas tem o apoio direto do Irã e do grupo xiita do Líbano, Hezbollah. Embora sejam plausíveis as conexões, não se tem constância de quanto há de realidade efetiva nesse apoio e quanto há de propaganda tóxica para incriminar o mais possível ao Irã neste conflito. Lembrando que Hezbollah e Irã são xiitas e Hamas segue uma linha de fundamentalismo sunita muito sectária, que os torna rivais. Por sua vez, pouco se fala das estreitas relações ideológicas que existem entre Hamas e Irmandade Muçulmana e a seita islâmica mais radical uaabita, sunita, que tem por base a Arábia Saudita, o mesmo território onde se gestou a milícia dos Talibãs e também o grupo de Al-Quaeda. O silenciamento dos elos entre grandes grupos sociorreligiosos e econômicos de Arábia Saudita com Hamas e a Irmandade Muçulmana, faz parte da intoxicação informativa que tem na Arábia Saudita um aliado estratégico dos EUA (e de Israel) na região, contra o Irã. Mas é muito sintomático constatar que vários dos máximos líderes do Hamas estão vivendo, publicando comunicados e dirigindo o grupo desde o Qatar, que é uma pequena península junto de Arábia Saudita, onde os EUA tem a maior base militar de todo o Oriente Médio.

Todos os indícios apontam que Hamas utilizou sua barbárie tanatopolítica de provocar o máximo de mortes possíveis com o objetivo político de dinamitar os acordos políticos que Israel já realizou com diferentes países árabes como Marrocos, Qatar, Sudão, que já reconheceram o atual status do Estado de Israel. Mas principalmente, o objetivo da tanatopolítica de Hamas parece que tem por alvo impedir que Israel consolide um acordo político com Arábia Saudita, que é principal potência sunita do mundo, pois tal acordo significaria condenar a inexistência definitiva do Estado Palestino.

O enigma do Estado de Israel

Para melhor entendermos o tabuleiro de xadrez deste complexo conflito temos de retomar alguns dados históricos do próprio Estado de Israel. Israel é o único Estado no mundo que foi criado de modo explícito por um ato da ONU, no dia 14 de março de 1948. Sua criação era um modo de reparação da terrível barbárie sofrida pelos judeus durante o regime nazista, assim como uma reparação histórica do antissemitismo secular que se alastra em diversas sociedades e culturas. O Estado de Israel oferecia uma terra e um pátria própria a todos os judeus do mundo que assim o quisessem, evitando uma perseguição secular de tantos países e momentos históricos. Contudo, a criação do Estado de Israel supôs a expulsão dessas terras dos moradores que lá estavam havia muitos séculos, os palestinos. Este foi o início de uma guerra sem fim. Nestas décadas de existência do Estado de Israel consolidaram-se dois princípios no âmbito internacional que tem um amplo consenso mundial: 1. Israel é um Estado com toda sua legitimidade para existir; 2. Israel tem o direito a defender-se quando for atacado, a justa defesa.

Pode-se dizer que estes princípios constituem a base inquestionável de quaisquer relação ou diálogo internacional sobre o Estado de Israel. Com base nestes princípios, o Estado de Israel justifica seu direito a defender-se do último ataque sofrido pelo Hamas.

Contudo, não é possível fechar os olhos à estratégia do Estado de Israel sobre os territórios palestinos e sua constante negação a conceder a existência de um Estado Palestino independente que inclua os territórios de Cisjordânia + Gaza + Jerusalém Oriental. Houve um momento histórico em que esta guerra poderia ter encontrado uma saída pacífica; foi quando se assinaram os denominados “Acordos de Oslo”, de 26 de outubro de 1994. Naquele momento o presidente de Israel, Isacc Rabin e o presidente da OLP, Yasser Arafat, assinaram acordos para implementar a existência do Estado Palestino. O resultado disso foi que um extremista fundamentalista judaico matou a Isacc Rabin, para que os acordos não se assinassem.

A realidade é que o Estado de Israel abandonou a faixa de Gaza em 2005 por ser um território pequeno e continua ocupando militarmente a Cisjordânia por ser um território muito maior. O estado de Israel utiliza uma estratégia de longo prazo que visivelmente pretende ir anexando a Cisjordânia metro a metro, casa por casa, oliveira por oliveira, chácara por chácara, dure o tempo que durar, custe as vidas que custar. Parece que a estratégia tanatopolítica de Israel consiste em manter um estado de guerra permanente, ciente que tem a supremacia militar e consegue manter o controle social e regional da população palestina. O estado de guerra permanente é uma estratégia tanatopolítica do Estado de Israel cujo objetivo final é conseguir o controle total do território e da população da Cisjordânia. Esta estratégia de estado de guerra permanente tem um alto custo de vidas humanas, mas parece que todas as mortes são justificadas como inevitáveis e necessárias para a consecução final da anexação de todo o território palestino. Esta estratégia tanatopolítica do estado de guerra permanente é assumida pelo Estado de Israel como uma tática política útil e necessária, ainda que isso signifique um exílio constante e até um genocídio lento do povo palestino, e inclusive a morte de incontáveis vidas de cidadãos israelenses como um sacrifício necessário.

Para iluminar o atual momento histórico, parece relevante resgatar a posição crítica a respeito do Estado de Israel na época de Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica radicada nos EUA, que em um primeiro momento se mostrou contrária ao surgimento do estado judeu na Palestina. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial, rechaçou a criação de um estado nacional árabe-judeu. Em artigo publicado por Domani e traduzido pelo IHU, a cientista política italiana Nadia Urbinati menciona que “rejeitando ambas as alternativas, Arendt argumentou a favor da inclusão da Palestina numa federação multiétnica que não fosse composta apenas por judeus e árabes. Somente em 1948, na tentativa de evitar a divisão, Arendt reviu a sua crítica anterior e aprovou uma solução binacional para a Palestina. Mas a sua crítica ao Estado-nação permaneceu. E isso a tornou apreciada por sua ampla visão e ao mesmo tempo detestada pelos conservadores de Israel como a mãe da ‘israelofobia’”.

Judeus ortodoxos participando de um comício do Dia Al Quds em Londres, em 2022, condenando ações do Estado de Israel. (Foto: Alisdare Hickson | Flickr)

É preciso atentar, contudo, ao fato de que as análises político filosóficas dessa pensadora nos campos do nacionalismo, federalismo, natalidade política, imperialismo e racismo colocaram uma lente de aumento na questão judaica da Europa do final do século XIX e, sobretudo, na primeira metade do XX, olhando de perto o surgimento do sionismo, suas possibilidades, mas também sua perigosa deriva, embasado no paradigma do Estado-nação e da cidadania de tipo francês, que concedia direitos humanos somente àqueles nascidos dentro do território em questão. Além disso, Arendt causou furor com a publicação de “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, no qual traça o perfil do oficial nazista encarregado pela logística do Terceiro Reich. Longe do estereótipo do tipo psicopata, a pensadora detectou a chocante mediocridade de um mero cumpridor de ordens, que por dever de ofício jamais se questionou de seu papel ético no extermínio da máquina de guerra alemã.

A tanatopolítica e a razão de Estado

Ainda resulta difícil avaliar quais são os verdadeiros objetivos da tanatopolítica que o Estado de Israel está cometendo contra a população de Gaza com o bombardeio sistemático da população que ao dia de hoje já se aproximam dos seis mil mortos: a maioria não são militantes do Hamas, senão a população civil que se esconde em casas, escolas, hospitais, igrejas, ou foge apavorada sem ter um lugar seguro. A estratégia do Estado de Israel de negar a entrada de ajuda humanitária, de medicamentos, de energia, água, alimentos, parece muito mais a utilização da lógica de vingança e do extermínio exemplar contra a população indefesa, talvez como estratégia de isolá-la politicamente do seu apoio ao Hamas. Para além de uma estratégia de guerra, a tanatopolítica em curso parece obedecer a uma razão de Estado que tanto pode querer provocar um novo exílio massivo de refugiados palestinos, quanto a sua maior matabilidade numérica, ambas estratégias debilitariam ainda mais a população palestina e fortaleceriam politicamente o Estado de Israel.

De outro lado, Hamas tinha clareza estratégica que esta situação tanatopolítica era altamente previsível e utiliza a população indefesa como escudo humano, assim como também utiliza as mortes inocentes, que eles mesmos expõem, como propaganda própria contra o inimigo. A estratégia tanatopolitica de Hamas também emprega o maior número de mortos da população palestina como uma arma política para provocar um levante generalizado nos países islâmicos e uma rejeição mundial contra a atuação do Estado de Israel.

Dos dois lados, a morte da população opera como uma variável estratégica do desenho político da guerra em curso. A lógica tanatopolítica da guerra atravessa e se impõe como uma estratégia que dirige os diferentes movimentos desse conflito.  A guerra atua através da morte da população, e não dos mortos em combate, ou num campo de batalha. Neste macabro jogo tanatopolítico, as vidas inocentes da população são oferecidas como sacrifícios necessários e inevitáveis para as estratégias políticas de ambos os lados. Eliminar o “outro” ou os “indesejáveis” do território é a estratégia política adotada tanto por Israel, quanto pelo Hamas: apagar quaisquer traços de alteridade, de humanidade e possibilidade de convivência pacífica entre os povos.

Nota

[1] FOUCAULT, Michel.  Em defesa da sociedade. São Paulo: Martin Fontes, 2000.

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