29 Janeiro 2016
"A popularização da internet permitiu que tivéssemos acesso a uma quantidade inimaginável de informações. Da mesma forma, ela possibilitou que adotássemos determinados comportamentos sem o questionamento moral dessas ações, camuflados por nossos avatares e/ou perfis nas redes sociais ou “escondidos” dentro de um grupo de Whatsapp", escreve Felipe Tessarolo, professor universitário, em artigo publicado por EcoDebate, 28-01-2016.
Eis o artigo.
Hannah Arendt (1906-1975) foi uma teórica política alemã, de origem judaica, que atuou também como jornalista e professora universitária. Escreveu livros como As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958), Homens em tempos sombrios (1968) e Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1963) e é considerada uma das pessoas mais influentes do século 20.
Este artigo pretende fazer uma analogia entre as ideias expressas por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, o conceito sobre a banalidade do mal e o comportamento dos indivíduos nas redes sociais, que de certa forma replicam as análises desenvolvidas pela autora.
Adolf Eichmann foi um oficial da Gestapo nazista responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Foi capturado na Argentina e julgado em Jerusalém no ano de 1961. Hannah Arendt foi enviada como correspondente pela revista The New Yorker para cobrir as sessões do julgamento tornadas públicas pelo governo israelense. Em 1963, com base nos artigos publicados pela The New Yorker, a autora publicou um livro sobre o julgamento e nele desenvolveu uma análise sobre Eichmann.
Um dos pontos polêmicos do livro é a maneira como a autora interpreta o comportamento de Eichmann, pois além de cobrir todo o processo do julgamento, ela ainda entrevistou pessoalmente o acusado. Segundo Hannah Arendt, Adolf Eichmann não era um monstro, alguém com um espírito demoníaco e antissemita. Ela o identificou como um burocrata, um sujeito medíocre, que de certa forma renunciou a pensar nas consequências que os seus atos poderiam ter. “Embora as atrocidades por ele conduzidas tivessem sido de uma crueldade inimaginável, ‘o executante era ordinário, comum, nem demoníaco, nem monstruoso’. Eichmann revelou-se, durante todo o processo, até os dias que antecederam sua morte por enforcamento, como uma pessoa incapaz de exercer a atividade de pensar e elaborar um juízo critico e reflexivo” (SIQUEIRA, 2011).
Uma analogia com o cotidiano
Segundo Hannah Arendt, Adolf Eichmann era um indivíduo comum, pertencente ao cidadão médio, que não possuía um histórico de violência e muito menos aparentava características de um caráter distorcido ou doentio. O oficial da Gestapo agia segundo o que acreditava ser o seu dever, executando suas ordens sem nenhum tipo de questionamento (seja para o bem ou para o mal), com o intuito de desenvolver a sua carreira profissional da melhor forma possível.
“Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?” (ARENDT, 2008).
Dessa forma, a autora defende que a massificação da sociedade e o totalitarismo permitiram o desenvolvimento de uma multidão que cumpria ordens sem questionar, uma massa incapaz de fazer julgamentos morais. Sob essa perspectiva, Eichmann não era tachado como um monstro, mas um funcionário zeloso que apenas cumpria com as ordens que recebia.
“O que tornava Eichmann uma aberração era o fato de ele nunca haver experimentado as exigências do pensamento diante dos acontecimentos. A questão que a filósofa se propõe a aprofundar, então, é a ausência do pensamento e sua possível relação com os atos maus” (Duarte, 2000, apud Andrade, 2010).
Mas qual o intuito de toda essa descrição, muito simples perante a complexidade da obra e do tema desenvolvido pela autora, do conceito de banalidade do mal? Gostaria de fazer uma analogia com o nosso cotidiano e as práticas desenvolvidas nos canais de comunicação, principalmente nas redes sociais.
Comportamentos camuflados
Começo com um simples exemplo: quantas vezes, no seu cotidiano, você compartilha uma mensagem/informação, sem saber se ela é verdadeira ou não, com os seus colegas de trabalho ou com amigos e familiares? Pense no constrangimento que você passaria caso alguém desacreditasse essa informação no momento em que você está falando. Agora compare com o que você tem feito nas redes sociais virtuais.
Alguma vez você pegou uma foto íntima de um conhecido e saiu por aí mostrando essa foto para todas as pessoas que você encontra no seu dia-a-dia – no ambiente de trabalho, na fila do supermercado ou num encontro com amigos mais próximos? Agora compare com o que você tem feito nas redes sociais virtuais.
Hoje em dia, para disseminar uma informação basta apertar o botão de enviar e/ou compartilhar. Mas a facilidade desse ato pode ser inversamente proporcional às repercussões e os efeitos que causamos na sociedade como um todo. A popularização da internet permitiu que tivéssemos acesso a uma quantidade inimaginável de informações. Da mesma forma, ela possibilitou que adotássemos determinados comportamentos sem o questionamento moral dessas ações, camuflados por nossos avatares e/ou perfis nas redes sociais ou “escondidos” dentro de um grupo de Whatsapp.
Comportamentos sem questionamento
Repito aqui uma citação para enfatizar o meu ponto de vista:
“O que tornava Eichmann uma aberração era o fato de ele nunca haver experimentado as exigências do pensamento diante dos acontecimentos. A questão que a filósofa se propõe a aprofundar, então, é a ausência do pensamento e sua possível relação com os atos maus” (Duarte, 2000, apud Andrade, 2010).
Até que ponto nós estamos sustentando padrões estéticos e comportamentos deploráveis simplesmente porque não analisamos as repercussões dos nossos atos? Assim, quais são os acontecimentos, as notícias e as mensagens compartilhadas, sem uma análise crítica da sua parte, que estão permitindo que você se torne uma pessoa ruim?
Lembre-se que, antes de pertencermos a um grupo de Whatsapp e ter um perfil numa rede social, somos seres humanos com a beleza da nossa individualidade e livre arbítrio. Utilize essas ferramentas para engrandecimento desses dois pontos que compõem o seu ser: fazer parte da humanidade e ser um indivíduo de características únicas.
Devemos sempre lembrar que o universo virtual não é um ambiente “separado” da nossa realidade, muito pelo contrário. Nesse sentido, qual a fronteira que separa os seus atos daqueles praticados por Eichmann? Quantos indivíduos tem a imagem manchada (quando muitas vezes arruinada) por falsas informações e momentos íntimos compartilhados por “todos” no ambiente digital. Hanna Arendt afirma que “o maior mal perpetrado é o mal cometido por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser pessoa”.
Reflita se suas ações são fruto de suas opiniões e pensamentos ou se você anda seguindo o fluxo de uma multidão que simplesmente replica comportamentos sem nenhum tipo de questionamento ou de análise das consequências.
Fontes:
André Duarte. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Hannah Arendt. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Belo Horizonte (BH): Companhia das Letras/Editora UFMG; 2008;
José Eduardo de Siqueira. “Irreflexão e a banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt”. Revista – Centro Universitário São Camilo – 2011; 5(4):392-400;
Marcelo Andrade. “A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas”. Revista Brasileira de Educação v. 15 nº 43, jan./abr. 2010.
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Sobre a banalidade do mal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU