A contraofensiva de Kiev está moribunda. Para evitar derrota humilhante da Otan, Washington cogita a “fase Biden” – com envolvimento direto em ataques, por mísseis, ao território russo. Risco de conflagração mundial é maior que nunca
O artigo é de M. K. Bhadrakumar, escritor indiano, publicado por no Idian Punchline e reproduzido por Outras Palavras, 20-9-2023.A tradução é de Antonio Martins.
A guerra terrestre na Ucrânia terminou e uma nova fase está começando. Até mesmo os defensores obstinados de Kiev nos meios de comunicação e nos think tanks ocidentais já admitem que uma vitória militar sobre Moscou é impossível e que a retirada russa dos territórios sob seu controle é algo muito além da capacidade ucraniana.
Daí a engenhosidade inicial do governo Biden, ao tentar explorar um Plano B, aconselhando Kiev a ser realista sobre a perda de território e a procurar pragmaticamente o diálogo com Moscou. Esta foi a mensagem amarga que o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, transmitiu recentemente, em pessoa, a Kiev.
Mas a reação cáustica do presidente Zelensky numa entrevista subsequente à revista The Economist é reveladora. Ele respondeu que os líderes ocidentais ainda falam bem, prometendo que permanecerão ao lado da Ucrânia “enquanto for necessário” (mantra de Biden), mas ele, Zelensky, detectou uma mudança de humor entre alguns de seus parceiros: “Eu tenho essa intuição ao ler, ouvir e ver os olhos deles [quando dizem] ‘estaremos sempre com vocês’. Mas vejo que eles não está aqui, não conosco.” Certamente Zelensky está interpretando bem a linguagem corporal, pois na ausência de um sucesso militar esmagador em um curto período, o apoio ocidental à Ucrânia é limitado por uma questão de tempo.
Zelensky sabe que será difícil sustentar o apoio ocidental. No entanto, ele espera que, se não os estadunidenses, a União Europeia pelo menos continue a fornecer ajuda, e possa abrir negociações sobre o processo de adesão da Ucrânia, possivelmente até mesmo na sua cúpula em dezembro. Mas ele também apresentou uma ameaça terrorista velada à Europa – alertando que não seria uma “boa história” para a Europa se “encurralasse estas pessoas [da Ucrânia]”. Até agora, essas ameaças sinistras, vindas de ativistas de baixo escalão da franja fascista de Bandera, foram silenciadas.
Mas a Europa também tem os seus limites. Os arsenais ocidentais de armas estão esgotados e a Ucrânia é um poço sem fundo. É importante ressaltar que falta convicção sobre se o fornecimento contínuo faria alguma diferença nesta guerra por procuração que é invencível. Além disso, as economias europeias estão em crise e a recessão na Alemanha pode descambar para a depressão, com profundas consequências de “desindustrialização”.
A visita de Zelensky à Casa Branca nos próximos dias vai se tornar um momento decisivo. O governo Biden tornou-se pesaroso, porque a guerra por procuração na Ucrânia está impedindo executar a todo vapor uma estratégia Indo-Pacífico contra a China. No entanto, durante uma aparição no programa This Week da ABC, Blinken declarou explicitamente, pela primeira vez, que os EUA não se oporiam ao uso, por Kiev, de mísseis norte-americanos de longo alcance para atacar em profundidade o território russo – um movimento que, segundo Moscou, ultrapassaris a “linha vermelha”. e que tornaria Washington parte direta no conflito.
Conhecido historiador militar estadunidense, pensador estratégico e veterano de combate, o coronel (reformado) Douglas MacGregor (que serviu como conselheiro do Pentágono durante o governo Trump), é presciente quando diz que uma nova “fase Biden da guerra” está prestes a começar. Tendo esgotado as forças terrestres, o foco mudará agora para armas de ataque de longo alcance, como os mísseis de longo alcance Storm Shadow, Taurus, ATACMS e outros.
Os EUA estão considerando enviar mísseis ATACMS de longo alcance – que a Ucrânia vem pedindo há muito tempo – com capacidade para atacar o território russo. A parte mais provocativa é que plataformas de reconhecimento da Otan, tanto tripuladas como não tripuladas, serão utilizadas em tais operações, tornando os EUA um virtual cobeligerante.
A Rússia tem exercido contenção no ataque à fonte de tais capacidades inimigas – mas por quanto tempo essa contenção continuará é uma incógnita. Em resposta a uma pergunta incisiva sobre como Washington veria os ataques em território russo com armamento e tecnologia americanos, Blinken foi beligerante. Argumentou que o número crescente de ataques ao território russo por drones ucranianos tem a ver a “como eles [os ucranianos] vão defender seus território e como eles estão trabalhando para recuperar o que lhes foi confiscado. Nosso papel [dos EUA], e o papel de dezenas de outros países ao redor do mundo que os apoiam, é ajudá-los a fazer isso.”
A Rússia não vai aceitar uma escalada tão descarada, especialmente porque estes sistemas de armas avançados usados para atacá-la são, na verdade, tripulados por pessoal da Otan – subcontratados, ex-militares treinados ou mesmo oficiais em serviço. O Presidente Putin disse aos meios de comunicação social, na última sexta-feira, que “detectamos mercenários e instrutores estrangeiros tanto no campo de batalha como nas unidades onde o treino é realizado. Acho que ontem ou anteontem alguém foi capturado novamente.”
O cálculo dos EUA é que, em algum momento, a Rússia será obrigada a negociar e um conflito congelado se seguirá. Neste, os aliados da OTAN manteriam a opção de manter o envolvimento militar da Ucrânia e o processo que conduz à sua adesão à aliança militar, e permitir que o governo Biden se concentre no Indo-Pacífico.
No entanto, a Rússia não se contentará com um “conflito congelado” que fique muito aquém dos objetivos de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, que são os objetivos principais da sua operação militar especial.
Diante desta nova fase da guerra por procuração, resta saber que forma assumirá a retaliação russa. Pode haver múltiplas formas sem que a Rússia ataque diretamente os territórios da OTAN ou utilize armas nucleares (a menos que os EUA realizem um ataque nuclear – cujas probabilidades são zero a partir de agora).
Já é possível ver a possível retomada da cooperação técnico-militar entre a Rússia e a Coreia do Norte (potencialmente incluindo a tecnologia de mísseis balísticos intercontinentais) como uma consequência natural da política agressiva dos EUA em relação à Rússia e do seu apoio à Ucrânia. A questão é que hoje é com a Coreia do Norte; amanhã poderá ser com o Irã, Cuba ou Venezuela – o que o coronel MacGregor chama de “escalada horizontal” por parte de Moscou. A situação na Ucrânia está interligada com os problemas da Península Coreana e de Taiwan.
O ministro da Defesa russo, Sergey Shoigu, disse na televisão estatal na quarta-feira que a Rússia “não tem outras opções” senão alcançar uma vitória na sua operação militar especial e continuará a fazer progressos na sua missão principal de destruir o equipamento e o pessoal do inimigo. Isto sugere que a guerra de desgaste será ainda mais intensificada, enquanto a estratégia global poderá mudar para alcançar a vitória militar total.
Os militares ucranianos estão desesperados por mão de obra. Só nas 15 semanas de “contra-ofensiva”, mais de 71 mil soldados ucranianos foram mortos. Fala-se de Kiev procurar o repatriamento dos seus cidadãos em idade militar entre os refugiados na Europa. Por outro lado, na expectativa de um conflito prolongado, a mobilização na Rússia continua.
Putin revelou na sexta-feira que 300 mil pessoas se voluntariaram e assinaram contratos para se juntarem às forças armadas. Novas unidades estão se formando, equipadas com tipos avançados de armas e equipamentos, “e algumas delas já estão 85-90 por cento equipadas”.
A grande probabilidade é que, uma vez que a “contraofensiva” ucraniana se esgote dentro de algumas semanas como um enorme fracasso, as forças russas possam lançar uma ofensiva em grande escala. É concebível que as forças russas possam até atravessar o rio Dnieper e assumir o controle de Odessa e da costa que conduz à fronteira romena, de onde a Otan tem lançado ataques à Crimeia. Não se engane, para o eixo anglo-americano, cercar a Rússia no Mar Negro sempre foi uma prioridade máxima.