16 Junho 2023
A venda de carros a combustão será proibida em 2035. No futuro, todos os carros serão elétricos? O pesquisador Aurélien Bigo defende sobretudo uma mobilidade mais sóbria, mas “o poder público deve acompanhar o movimento”.
Aurélien Bigo é pesquisador especializado na transição energética dos transportes, associado à Cátedra de Energia e Prosperidade. É o autor do livro Voitures: fake or not?, publicado em maio de 2023 pela editora Tana.
A entrevista é de Alexandre-Reza Kokabi, publicada por Reporterre, 13-06-2023. A tradução é do Cepat.
Na França, de acordo com os números, 80 a 85% das famílias têm carro. Como o carro se tornou tão central em nossas vidas?
É possível usá-lo para ir trabalhar, fazer compras, buscar os filhos na escola ou até mesmo sair de férias. Tornou-se, de certa forma, o canivete suíço da nossa mobilidade.
Ele conquistou um grande lugar nos nossos imaginários, através do marketing da indústria automobilística. Construiu-se toda uma cultura automotiva, e com ela hábitos de mobilidade e estilos de vida. Tanto que, na maioria das vezes, pegamos as chaves do carro de maneira irrefletida, mesmo quando estamos sozinhos – a lotação dos veículos é de 1,6 passageiro em média. Ele ocupa um lugar tão grande nas nossas viagens que, muitas vezes, não nos imaginamos fazê-las de outra forma.
Em seu livro, você escreve que o carro é hoje “o rei do asfalto” porque moldou o ordenamento dos nossos territórios.
Nossas cidades, nossos vilarejos ou nosso campo foram moldados por e para o carro desde seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial. Se passamos de cerca de 1 automóvel para cada 25 habitantes em 1950 para 1 automóvel para cada 2 habitantes em 2000, é porque tudo foi feito para que isso acontecesse: uma densa rede de estradas e rodovias que nunca para de crescer, parques de estacionamento por todo o lado e muitas vezes gratuitos, ou postos de combustíveis. Um carro nunca está longe de uma bomba de combustível. No final de 2021 existiam 11.151 postos de combustíveis em território francês, ou seja, quase um posto para cada 6.000 habitantes.
Graças a esses ordenamentos, as cidades se espalharam e os conjuntos habitacionais de casas individuais se multiplicaram na periferia. As maiores aglomerações concentram os principais investimentos, atividades e serviços, o que faz com que você tenha que ir cada vez mais longe para ir ao trabalho, à escola, ao esporte, às compras, almoçar com a família, ir ao hospital. Esta forma de ordenar o território, tendo como pedra angular o automóvel, tendeu a desqualificar qualquer outra mobilidade. É também isso que torna hoje tão difícil questionar o lugar ocupado pelo automóvel. Pela nossa dependência real e pelo apego apaixonado que desenvolvemos por este objeto onipresente, o futuro da mobilidade continua a ser pensado sob a perspectiva de um único prisma.
Por que esse quase monopólio do automóvel tem que acabar?
O sistema “tudo carro” tem consequências deletérias. Sacrificamos muitas coisas para isso: nosso tempo e nosso dinheiro, nossa saúde, o planeta. A queima de combustível para nos locomover também tem o efeito de emitir CO2, contribuindo assim para as mudanças climáticas – os carros emitem 16% das emissões de gases de efeito estufa. E as emissões de poluentes dos carros envenenam o ar que respiramos. Os avanços tecnológicos nos motores dos carros reduziram o consumo de combustível, mas isso levou a efeitos rebote significativos: nos encorajou a percorrer mais quilômetros com carros maiores. O que provocou um aumento acentuado no consumo total de combustível fóssil.
A infraestrutura e os veículos também consomem recursos e matérias-primas para sua construção, manutenção e operação. E mobilizam grandes áreas: para estacionar e fazer rodar os nossos carros, temos de pavimentar, ou seja, isolar o solo, o que também contribui para as alterações climáticas. Os acidentes de trânsito matam. Eles são responsáveis por aproximadamente 3.000 mortes por ano na França metropolitana, bem como 240.000 feridos. Os carros também nos privam da atividade física essencial. Sua poluição sonora perturba nossa tranquilidade, degrada nossa qualidade de vida e nossa saúde.
O fim da venda de carros a combustão novos está previsto para 2035. O governo conta com o desenvolvimento em massa do carro elétrico. Essa é a estratégia correta?
Não devemos acreditar que a mudança para o carro elétrico será suficiente, mas a eletrificação é, sem dúvida, essencial para atingir nossos objetivos climáticos: ao longo de todo o seu ciclo de vida, o veículo elétrico na França é cerca de 2 a 5 vezes menos poluente do que o carro a combustão. Nenhuma outra energia ou tecnologia está disponível no curto prazo e em larga escala para substituir o petróleo. Quanto mais demorarmos na eletrificação, mais continuaremos dependentes do petróleo e ficaremos para trás em nossos objetivos climáticos.
Infelizmente, nos últimos anos, as montadoras aproveitaram a queda no preço das baterias para aumentar seu tamanho. Os políticos conseguiram empurrá-los para o elétrico – eles não teriam ido por si –, mas não as obrigaram a produzir veículos leves, equipados com uma bateria de tamanho razoável e adequados para trajetos curtos do dia a dia, que são, no entanto, necessários para limitar sua pegada de carbono, sua poluição e ser acessíveis ao maior número possível de pessoas.
Então, devemos ter em mente que o carro elétrico não é a cura milagrosa para todos os incômodos gerados pelo automóvel. Está longe de ser “zero emissões”, uma vez que requer uma grande variedade de matérias-primas. Procurar substituir os nossos 38 milhões de carros a combustão por carros elétricos, para uso equivalente, seria o pior erro. Sem sobriedade, corremos o risco de não ter recursos suficientes para sua construção, eletricidade para seu funcionamento ou dinheiro para comprá-los. Então temos de ser mais imaginativos. Em suma, o futuro do carro é elétrico, mas o carro não é o futuro da nossa mobilidade.
Como você prevê o abandono dos carros?
Devemos implementar uma verdadeira sobriedade. O desafio é viajar menos, reduzir as nossas necessidades de transporte relocalizando ao máximo a nossa economia e os nossos estilos de vida, recriando a proximidade entre os locais de vida e de trabalho, do comércio, dos serviços, do lazer.
Portanto, a utilização dos meios de transporte deve ser feita de acordo com os principais usos diários. Existe uma enorme escolha a combinar conforme os percursos, a sua extensão, as cargas a transportar e o número de passageiros:
• Andar a pé e de bicicleta são muito adequados para distâncias curtas.
• Para distâncias médias, além do transporte público, existe toda uma gama de veículos intermediários entre bicicletas e carros, como bicicletas eletricamente assistidas (VAE), speed-pedelecs (uma espécie de VAE 45 km/h), bicicletas de carga, bicicletas dobráveis (para transporte público), velomóveis e bike cars, minicarros. Mas, atenção! Os benefícios ambientais oferecidos pelos veículos intermediários dependem do seu uso e do que eles substituem. Eles só se justificam quando substituem o carro.
• Para distâncias mais longas, podemos reinvestir no trem, nos autocarros, desenvolver o compartilhamento de carro – se não for em detrimento do trem – e o aluguel de carro, que permite uma maior utilização dos veículos em circulação e reduzir o seu número.
Existem mil formas de nos fazer esquecer o carro particular, mas os poderes públicos terão de acompanhar seriamente o movimento, de forma a organizar a mobilidade do futuro. É o caso, por exemplo, do “desafio extremo” da Ademe, que visa experimentar novas soluções de deslocamento para substituir o automóvel nos deslocamentos do dia a dia em zonas periurbanas e rurais com veículos intermédios entre a bicicleta e o automóvel.
Muitos coletivos lutam para impedir a construção de novas rodovias, como a A69 perto de Toulouse. A moratória desses projetos é imperativa?
Sim, é uma luta que me parece legítima. Parar as tendências que estão indo na direção errada é o mínimo que podemos fazer, porque já estamos atrasados. Será necessário parar os muitos projetos de infraestruturas rodoviárias e aeroportuárias, mas também rever alguns financiamentos massivos dedicados ao automóvel, de forma a mobilizar os recursos disponíveis para as outras formas de mobilidade acima referidas.
Hoje, o apoio do Estado ao automóvel é geral e incondicional. Os subsídios à indústria automobilística, e em particular às montadoras nacionais, chegam a bilhões de euros. Passam também pelos bônus de compra para os automobilistas e apoiam o sistema do lado da procura, com bônus de conversão ou implantação de zonas de baixas emissões. O problema é que todas essas políticas visam acelerar a renovação da frota de carros, o que é útil em alguns aspectos, mas não nos ajuda o suficiente para abandonar o carro.
Todos têm interesse em ficar sem carro? Para os núcleos familiares mais precários e afastados dos centros urbanos, estes auxílios não são benéficos para continuar a se deslocar?
É claramente mais fácil ficar sem carro na cidade. No campo, por exemplo, há muito menos escolha: 92% dos domicílios rurais possuem carro, e a parcela de deslocamentos feitos de carro é próxima a 80%. Muitas pessoas estão, portanto, atoladas em sua dependência do automóvel, devido ao baixo investimento em alternativas confiáveis ou veículos mais econômicos do que os carros atuais.
Mas considerar que “não é possível fazer diferente” e que sempre será assim é um erro grave, e a imobilidade só reforça as desigualdades. Para grande parte da população dependente do automóvel, ficou cada vez mais difícil arcar com os custos relacionados com o seu veículo. Especialmente quando o preço do combustível, dos carros novos e usados aumenta, bem como as despesas com seguros, manutenção, pedágio ou estacionamento. Possuir um carro custa em média cerca de 4.000 euros por ano.
A alta do preço do combustível, o movimento dos Coletes Amarelos e a guerra na Ucrânia revelaram o custo dessa dependência para os mais precários. Não se faz um favor a eles quando se inicia a máquina sempre da mesma maneira.
Nos últimos meses, várias ações de desobediência civil foram realizadas para esvaziar os pneus dos SUVs. Este é um gesto útil quando as montadoras, a exemplo da Renault, continuam a colocar esses veículos no centro de sua estratégia industrial?
É um gesto que me parece refletir um cansaço com a falta de ação dos governos em relação ao superdimensionamento dos veículos. Desde meados da década de 1960, os carros ficaram muito mais pesados. Ficou mais longo, mais largo, mais alto, mais pesado e, portanto, requer motores mais potentes. Os SUVs, menos aerodinâmicos e muitas vezes maiores, são o símbolo disso. As montadoras privilegiam cada vez mais os veículos de modelos mais sofisticados, que permitem aumentar as suas margens, mesmo que isso signifique vender menos e ser menos acessíveis.
Eles também representam uma grande injustiça em tempos de zonas de baixa emissão, que excluem veículos antigos a combustão que pertencem mais a famílias de baixa renda. Os SUVs a combustão ou elétricos mais recentes poderão continuar rodando, apesar das partículas que emitem além do escapamento via abrasão dos pneus e dos freios – quanto mais pesado o veículo, maiores são essas emissões –, apesar do alto consumo de recursos e energia, da sua periculosidade e de ocuparem muito espaço. Se o modo de agir obviamente faz com que as pessoas reajam e levantem questionamentos, entendo, em todo o caso, que algumas pessoas queiram provocar agitação para colocar essas questões na agenda política.
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“O futuro do carro é elétrico, mas o carro não é o futuro da nossa mobilidade”. Entrevista com Aurélien Bigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU