06 Abril 2015
O arquiteto Rogerio Marcondes Machado lançou um argumento matemático na discussão sobre os benefícios da implantação de ciclovias em grandes cidades. A partir de um cálculo rápido, ele considerou o seguinte: se em um quarteirão com sistema rotativo de cobrança (como Zona Azul) estacionam 15 carros a cada duas horas, ao final de um dia 180 carros terão usado aquele espaço. Só que, na visão dele, 180 carros não correspondem a pelo menos 180 pessoas. Afinal, explica Marcondes, no momento em que os veículos são estacionados, deixam de ter qualquer pessoa a bordo. “São 180 carros por dia com zero usuário em cada um, o que resulta em zero usuário por dia, por mês ou por década”, diz.
A entrevista é de Mariana Barros, publicada pelo blog Ed Design Store, 31-03-2015.
A conclusão dele é que, dessa forma, basta um único ciclista usar a ciclovia por década para haver um incremento matemático no aproveitamento do espaço. “A vaga é o uso privado do espaço público, e a ciclovia, não”, afirma Marcondes.
Na semana passada, o prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) conseguiu suspender uma decisão liminar que paralisava a construção de ciclovias. A decisão foi do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador José Renato Nalini, que justificou que a falta de estudos sobre impacto viário não é suficiente para exigir a paralisação das obras.
Arquiteto formado em 1986, Rogério Marcondes Machado trabalhou com grandes nomes da arquitetura nacional como Paulo Mendes da Rocha e Jorge Wilheim. Tem seu próprio escritório de arquitetura e cenografia e é doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Eis a entrevista.
Seguindo a lógica de buscar o melhor uso do espaço público, não seria mais eficiente proibir que as pessoas estacionassem seus carros na rua em vez de apenas retirá-los de alguns trechos para implantar ciclovias?
Acredito que implantar ciclovias seja mais vantajoso, pois, além de restringir o uso do carro, permite diversificar o uso da superfície da cidade. Normalmente, a simples proibição de estacionar nas ruas é feita apenas para acrescentar mais uma faixa de circulação para melhorar o fluxo de veículos. Mas cedo ou tarde os carros têm que estacionar em algum lugar! As vagas perdidas no espaço público passam a ser oferecidas em estacionamentos fechados, shoppings e condomínios.
Assim, se um motorista em trânsito precisar estacionar para comprar ou fazer algo, ele tenderá a ir a um desses lugares. Disso resulta uma configuração espacial absurda e reveladora, como a dos shopping centers, onde a área destinada aos carros é equivalente ou até superior à área destinada a lojas e serviços.
Um exemplo é o Bourbon Shopping, na Zona Oeste de São Paulo, que possui uma área de vendas com 51.300 metros quadrados e 3.010 vagas, o equivalente a, no mínimo, 75.250 metros quadrados de área de estacionamento. Ou seja, o carro ocupa mais espaço que a atividade humana que justifica a existência do edifício.
Na sua opinião, qual o principal obstáculo para proibir que se estacione na ruas?
O principal obstáculo é ideológico. Acredita-se que andar de carro e estacioná-lo seja um direito do cidadão. Mas não é. Um carro estacionado na rua é uma forma de usar o espaço público para fins privados. Seria o mesmo que colocar, no espaço de uma vaga, um sofá e umas poltronas e fazer dali uma sala de estar particular. As bancas de jornal e as feiras livres são outros exemplos de uso privado de espaço público, mas elas proporcionam benefícios significativos à comunidade, como o acesso à informação e o fornecimento de alimentos frescos. Mesmo nesses casos, estão restritas a alguns pontos da cidade, ao contrário do que acontece com as vagas de carros, que bloqueiam uma quantidade desproporcional de espaços públicos. Vale lembrar que um carro vazio parado na rua não beneficia ninguém além do proprietário do carro.
Ao desalocar vagas de carros estacionados para implantar ciclovias, não seria possível aproveitar melhor esse espaço instalando também guarda-corpos que protegessem os ciclistas dos carros? Dispositivos de segurança como esse poderiam servir de incentivo para que mais ciclistas usassem as ciclovias?
O principal motivo de insegurança do pedestre e do ciclista não é a falta de guarda-corpos entre as vias, mas a falta de muros isolando o fluxo de carros do resto da cidade. O carro em movimento é muito perigoso. Naqueles testes de impacto feitos com bonecos para avaliar a segurança dos motoristas, a velocidade utilizada é de 60 km/h ou 80 km/h. Acima disso, há poucas diferenças entre os diversos modelos de carro. Essas velocidades só deveriam ser permitidas em rodovias, fora da área urbana. Para que o pedestre se sinta seguro a velocidade do carro deveria ser, no máximo, nas melhores das condições, 40 km/h. Somente assim haveria alguma possibilidade de frenagem e controle do carro para evitar atropelamentos. Vivemos um pânico subconsciente com relação ao carro em movimento. Notamos isso quando vemos um criança, distraída, andando próximo ao meio fio, temos a sensação de que ela está em grande risco, como se andasse à beira de um penhasco. É claro que guarda-corpos ao longo das ciclovias podem ajudar um pouquinho, mas o real problema permanece intacto.
A implantação de ciclovias nos espaços hoje usados por carros parece ser mais defendida e até desejada por uma parcela da população do que a implantação de faixas de ônibus. Por quê?
Pessoalmente, acredito que isso não reflita o desejo da maioria da população ou mesmo o da maioria dos ciclistas. Os corredores de ônibus são essenciais e eficientes. Corredores e ciclovias, porém, compartilham o mesmo desejo de usar o espaço público para fins públicos. Nesse aspecto, é também essencial melhorar calçadas e passarelas. Um dado surpreendente sobre a cidade de São Paulo é que o volume de pessoas que se deslocam a pé é crescente. E isso ocorre mais por ser uma alternativa mais econômica para as famílias de baixa renda do que uma eventual opção por um novo estilo de vida. Para esse grupo, a bicicleta é um meio viável, e isso tem sido observado nas novas ciclovias construídas nas regiões marginalizadas da cidade. Para mim, há uma oposição frontal entre a lógica do transporte individual de carro e os demais sistemas de transporte. Numa cidade como São Paulo, saturada de automóveis, não existe mais a possibilidade de compatibilização entre essas duas lógicas.
Na sua visão, por que as faixas exclusivas para motos, por onde passavam principalmente motoboys, nunca conquistaram o mesmo apelo por parte da população paulistana como as bicicletas parecem ter conquistado agora?
Pelo que me recordo, as faixas exclusivas para motos surgiram em algumas avenidas que não eram as preferencialmente utilizadas pelos motoboys. Talvez por isso elas tenham sido desativadas. Para o uso individual, comparadas com os carros, as motos são bastante econômicas o que, em termos sociais, é uma vantagem. Mas também deveriam andar em baixas velocidades, inclusive para a segurança dos próprios motoqueiros. Vale lembrar que as vias expressas exclusivas são inerentes ao transporte coletivo como trens e ônibus, cujo percurso é fixo e as paradas são predefinidas.
Automóveis e motos são diferentes, pois possuem grande mobilidade e autonomia, afinal motoristas e motoqueiros podem alterar a rota a qualquer instante. A meu ver, eles deveriam mesmo ziguezaguear pelas ruas já existentes da cidade, sempre em baixa velocidade e na medida em que haja espaço para eles. Não vejo qualquer racionalidade em se cortar a cidade com vias expressas para que carros andem em alta velocidade, deteriorando a vida urbana ao seu redor, levando-os a estacionar nos shoppings e condomínios. A dispersão do fluxo dos transportes privados poderia resultar no reposicionamento, dentro da malha urbana, das lojas, escritórios e residências, de modo mais homogêneo e descentralizado, em edificações menores.
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Para arquiteto, estacionar o carro na rua é fazer uso privado do espaço público, algo que as ciclovias não fazem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU