29 Mai 2023
A crise ecológica, que continua a se agravar e cujos impactos não conhecem fronteiras, deveria gerar mobilização e conscientização generalizada e em todas as áreas, sem exceção. Com a publicação do seu último livro, Mal de Terre (Payot), o sociólogo dinamarquês Nikolaj Schultz se debruça sobre as implicações antropológicas desta crise, a relação humana com o mundo ou ainda o conceito de liberdade na era do Antropoceno.
A entrevista é de Alexandre Minet, publicada por Fondation Jean Jaurès, 19-05-2023. A tradução é do Cepat.
Nikolaj Schultz, você é sociólogo, e escreveu em 2022 junto com Bruno Latour 'Memorando sobre a nova classe ecológica' (Petrópolis: Vozes, 2023). Por que você escolheu a ficção para seu último livro, Mal da Terra?
Sim, de fato, é um gênero muito diferente – não apenas do Memorando, mas também da maioria dos outros escritos acadêmicos clássicos que escrevo. Posso dizer algumas palavras sobre os motivos dessa escolha. O que acabou virando um livro foi originalmente um pequeno artigo de poucas páginas que foi publicado em várias línguas, escrito no mesmo tom ou no mesmo gênero misto, entre o texto pessoal e teórico. Quando o publiquei, fiquei muito surpreso com o grande número de reações que recebi, tanto dentro como fora da academia, dizendo-me que o artigo os tinha ao mesmo tempo comovido e feito refletir. Então eu disse a mim mesmo que esse gênero híbrido poderia ter algo a oferecer e que deveríamos continuar nessa direção.
Mas a razão pela qual decidi escrevê-lo também está ligada a um argumento mais metodológico. Como afirmam os teóricos da ecologia, o Antropoceno está se desenrolando como uma crise de sensibilidades, como uma situação em que nossos registros emocionais e afetivos não estão à altura da situação em que nos encontramos. Concordo com isso, e penso que isso significa que, no contexto das ciências sociais e humanas, devemos propor não apenas novas abordagens analíticas e teóricas, mas também novas formas de apresentar essas ideias, novos modos de narração da teoria, se quiser. Como diria Ursula K. Le Guin, precisamos tanto do risco da estética quanto da curiosidade da ciência. E me perguntei por que não experimentar essa abordagem em um único e mesmo livro, mesmo que isso significasse que às vezes eu estava um pouco perdido, não sendo um escritor de verdade.
Eu também estava tentando captar exatamente os efeitos desse duplo terremoto simultâneo da Terra e do homem – o que chamo no livro de “mal da Terra”. O que significa sentir o mundo encolhendo sob seus pés? Como são vivenciadas a transformação e a fragmentação dos lugares físicos da vida, onde os humanos destroem cotidianamente suas próprias condições de vida? Para abordar essa questão, eu precisava de uma forma de escrever diferente do estilo acadêmico clássico, e também tive que viver minha própria experiência desse “crash existencial” e conhecer pessoas que também fizeram esta experiência.
Mais concretamente, parto de uma noite mal dormida que passei durante a onda de calor de alguns anos atrás, onde de alguma forma fiquei completamente paralisado, inerte, por falta de sono no calor, bem ciente de que a própria tecnologia que me permitiu algum descanso – o ventilador – só aumentou meu consumo de energia e, portanto, agravou os problemas climáticos. É realmente uma experiência “nauseabunda”, quando se fica preso em tais tomadas de consciência, é realmente um momento de vertigem existencial.
Mas não dá para fugir: no dia seguinte, tentei fugir da cidade e do calor indo à ilha de Porquerolles, onde meu amigo havia me convidado para descansar alguns dias em seu barco – para então perceber que esta ilha está desaparecendo lentamente devido às mudanças climáticas, e que meus próprios vestígios como turista estão apenas intensificando esse processo de desaparecimento. Mais uma vez me senti prisioneiro de um mundo que mudou de forma, como uma espécie humana que transforma este mundo – e assim se tornou um outro ser.
Procurei assim descrever este tipo de mudança de afetos que, para alguns de nós, podem atingir-nos apenas momentaneamente – muitos tendem a esquecer a onda de calor com a chegada do outono… –, mas que, creio, só se intensificarão num futuro próximo, e que acho importante entender se quisermos saber o que nos tornamos, o que somos e o que nos tornaremos cada vez mais. Um conjunto de afetos com os quais não sabemos o que fazer, mas que teremos que apreender como um novo drama de estar no mundo de hoje e de amanhã esgotado pelo clima.
Em síntese, o livro é uma espécie de diário de viagem “autoetnográfico” numa ilha ecologicamente ameaçada, que questiona algumas das transformações das condições existenciais e sociais do ser humano e da sociedade, num momento em que estas são violentamente reconfiguradas. Funciona? Não sei, talvez. Não recebi muita atenção na França, onde foi publicado pela primeira vez recentemente, mas agora está traduzido em seis ou sete idiomas. Então talvez ofereça algo útil mesmo assim. Penso que pelo menos aborda alguns temas que elenquei acima…
Sua história questiona, como indivíduo, nossa relação com o mundo em um momento de mudança climática. Qual é a nossa responsabilidade agora? Em que consiste a nossa liberdade na era do Antropoceno?
Sim, como indiquei acima, parto da minha própria experiência, como pessoa, como ser humano, que estremece porque prova este sentimento de responsabilidade – uma responsabilidade que a maioria de nós tem consciência, mas da qual só por vezes tem a possibilidade de sentir toda a sua extensão. A ideia é justamente descrever essa experiência de outra maneira, esperando que ela possa gerar o que Donna Haraway chama de “capacidade de resposta” (response-ability), a capacidade de responder ao fato de ser um outro tipo de ser em um outro mundo.
Novamente, este é um exercício de responsabilidade e de sensibilidade – mas não apenas para nos tornarmos sensíveis a outras formas de vida, a outros seres vivos, mas também para nos tornarmos sensíveis ao fato de que nós nos transformamos em uma criatura bizarra e estranha! Um humano sim, mas um humano que deixa uma série de rastros, e que consequentemente tem outro conjunto de responsabilidades. Novamente, qual é a experiência dessa transformação? Quais são os efeitos dessa mutação?
Assim, uma maneira de abordar a crise de sensibilidade de que falei acima é, naturalmente, descrever todas as formas de vida não humanas entre as quais e através das quais vivemos e das quais dependemos – sejam cogumelos, lobos, polvos, plantas, etc. –, como muitos teóricos ecológicos fizeram para entender nossa condição terrestre. Mas uma outra maneira de proceder é voltar à figura do humano e concentrar-se nos efeitos de sua transformação em outro ser. Penso que precisamos de ambos os tipos de livros e estratégias, e provavelmente mais outros.
Um último ponto relacionado com isso, porque essa “figura individual” que você menciona é, obviamente, uma noção delicada e pesadamente carregada. Mas o interesse em retornar a essa figura obviamente não é se ater à sua forma moderna, mas partir dela e depois mostrar, por meio de um relato empírico e teórico, como essa figura muda de forma hoje. No posfácio do livro [em sua publicação em inglês], Dipesh Chakrabarty descreve bem essa abordagem: trata-se de mostrar através do livro como essa ideia de ser humano autônomo, indivisível, impenetrável é uma má descrição do ser humano, revelando-se como um mito – e como o ser humano é sempre permeado por, e permeia a si mesmo, uma multidão de outros seres, dos quais depende e que ao mesmo tempo destrói. E talvez, como Chakrabarty também sugere, a descrição dessa mutação poderia ser um caminho possível para a recuperação de si mesmo.
O seu questionamento sobre a liberdade não suscita também o da relação natureza/cultura, da sua necessária superação?
Na verdade, é a mesma coisa. Eu sei que muitos pensadores ambientais pensam que a liberdade é um conceito terrivelmente ultrapassado, por causa de suas conotações modernas, e é verdade que algumas concepções da liberdade provavelmente foram profundamente cúmplices da situação em que nos encontramos...
No entanto, penso que seria um grande erro desistir desse ideal de liberdade ou de dizer às pessoas que elas devem esquecê-lo completamente, que esse valor é apenas um ideal imperfeito e perigoso do passado. Por quê? Porque as pessoas estão muito apegadas a esse ideal – existencialmente, emocionalmente, politicamente – para abandoná-lo. Como disse recentemente em outra entrevista, temo que a ecologia não tenha nenhuma chance se tiver que competir com a liberdade.
Portanto, não podemos abandonar essa noção ou fingir que não significa nada para as pessoas. Mas o que podemos fazer é descrever como antigas concepções de liberdade se tornaram problemáticas hoje e como elas nos levaram em parte e continuam a nos levar a certos impasses, e então tentar redefini-los, reconceituá-los. Tratar-se-ia então de permanecer fiel ao valor, mas de questionar o seu sentido atual.
É também uma longa discussão que tive com Bruno Latour ao longo dos anos, e em particular quando ele escreveu Onde estou? – um livro que tentou responder a essas perguntas de maneira diferente –, que ele estava escrevendo ao mesmo tempo que eu escrevia Land Sickness [título inglês de Mal de Terre]. É claro que Bruno Latour sempre suspeitou do conceito de liberdade, mas acabou concordando comigo: ele quase colocou “emancipação” no título da tradução inglesa e, como você deve se lembrar, a penúltima frase do ensaio se refere a um grupo de humanos composto de forma diferente: “Eles finalmente se emancipam”.
Também enfatizamos a necessidade de manter o ideal de liberdade no Memorando. E se continuo acreditando que isso é possível, é porque o significado, a compreensão e a experiência da liberdade assumiram muitas formas diferentes ao longo da história. O que a liberdade poderia se tornar? É verdade que todas as concepções modernas de liberdade conduzem a um impasse, justamente porque, como você justamente aponta, todas elas são construídas com base nessa distinção entre natureza e cultura que não pode mais ser mantida. Isso se aplica tanto à concepção pessoal de liberdade como a ausência de restrições externas em Hobbes, quanto à concepção moral da liberdade como controle de si em Kant, ou ainda para a concepção social da liberdade como a realização de si em Hegel, que estão todas fundamentalmente centradas no homem, e baseadas nesta ideia de uma natureza fora de nós, algo à parte (out there).
Em vez disso, devemos desenvolver uma ideia de liberdade como algo negociado com os muitos seres terrestres com e através dos quais os humanos coexistem, uma liberdade alcançada cultivando conexões com humanos e não humanos. É talvez uma espécie de liberdade experimentada como “ser-eu-com-o-outro” (Being-myself-with-another), como diria Hegel, mas que alarga o campo dos “outros” para incluir outras formas de vida e outros seres vivos do que os humanos, aqueles que antes eram excluídos do domínio da liberdade. Em outras palavras, a liberdade deve estar situada ou ancorada em condições terrestres de habitabilidade. Mas é claro que uma coisa é delinear tais princípios, outra coisa bem diferente é fazer com que essas novas concepções de liberdade ressoem afetivamente no nível da experiência...
A sua narrativa questiona o impacto das mudanças climáticas sobre o sentido da existência e a nossa condição humana. O que então, neste contexto, é o mal da Terra? E filosoficamente falando, não podemos então falar de um novo existencialismo?
Voltamos então ao ponto de partida da entrevista. Na verdade, o que estou tentando descrever é como o mundo se metamorfoseia e como a figura do homem e suas condições existenciais são transformadas em conformidade. Por quê? Porque as mutações destrutivas da Terra são causadas pelo ser humano e suas ações! Neste contexto, utilizo a metáfora do mal da Terra para descrever o abalo simultâneo do homem e da Terra, fruto desta constatação de que é um ser diferente de antes, de que é impossível escapar a estas questões, de que os problemas nos acompanham.
E, de fato, acredito que isso reconfigura certas questões existenciais. Voltando ao meu compatriota Kierkegaard, trata-se certamente de temor e tremor, mas não tanto sobre as profundezas infinitas de nossa liberdade interior, mas sobre as consequências externas que nossa liberdade deixa para trás, um conjunto de consequências que estamos experimentando agora, e que ameaçam a habitabilidade do planeta e, portanto, a subsistência de nossa própria espécie!
Podemos falar de um “novo existencialismo”? Não sei, talvez seja um existencialismo na tradição de Karl Jaspers e Peter Sloterdijk. O assunto ainda é a existência, mas se trata menos do "sentido" ou do "propósito" da existência humana do que sobre como os seres "permitem" ou "impedem" que outros seres permaneçam na existência. Ou, pelo menos, esses dois conjuntos de questões não podem mais ser separados!
Outra maneira de dizer isso é que a questão existencial torna-se muito mais intimamente ligada aos seres vivos que condicionam a existência humana, com os quais os humanos ainda coexistem, numa época em que estes não podem mais ser tomados como certos, quando estão até sendo aniquilados, por causa do próprio modo de existência humana cotidiana. Qual é a “condição humana”? E qual é a “náusea”? Como podemos imaginar isso?
Os “bons e velhos existencialistas” certamente não teriam imaginado tal reviravolta, mas se estivessem aqui hoje, provavelmente teriam feito perguntas relativas aos muitos seres vivos dos quais o ser humano depende para existir, e outras para entender o fato de que os humanos hoje causam a aniquilação desses seres vivos e, portanto, de sua própria existência. E, de fato, o que me interessa é entender os efeitos dessa “monstruosa” transformação humana.
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A crise ecológica e o “Mal da Terra”. Entrevista com Nikolaj Schultz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU