17 Mai 2023
Jorge Riechmann me atende pelo Zoom com o mesmo rosto sereno e agradável de sempre. A última vez que nos vimos foi no Festival de Ecopoesia do Vale do Jerte, em dezembro passado. Desde então, muita coisa aconteceu, entre elas, sua audiência judicial por ter participado, há mais de um ano, de um protesto pacífico na escadaria do Congresso dos Deputados, quando lançaram um líquido que simulava sangue.
Ele é um dos 15 ativistas que foram presos e agora enfrenta, assim como seus companheiros, possíveis penas de prisão. Contudo, eu o encontro animado. Conta-me do entusiasmo que sente pela realização do I Congresso Internacional de Humanidades Ecológicas, na Universidade Autônoma de Madri, onde é professor titular, do orgulho que sente pelos seus alunos (alguns também ativistas) e das rotas que realiza por Cercedilla.
Riechmann é filósofo, ambientalista, matemático e uma das vozes mais respeitadas no campo do ecossocialismo, com mais de setenta ensaios publicados, incluindo trabalhos individuais e coletivos. Além disso, é tradutor, poeta fecundo (com quase quatro dezenas de coletâneas de poemas) e alguém que, ao contrário de muitos acadêmicos, não concebe uma separação entre o trabalho na torre de marfim e a militância nas organizações de base. Conversamos sobre a sua prisão, o ecofascismo e, em geral, a respeito do rumo incerto que a crise climática está tomando.
A entrevista é de Azahara Palomeque, publicada por La Marea-Climática, 15-05-2023. A tradução é do Cepat.
Jorge, conte-nos do que você é acusado e que tratamento recebeu durante o processo.
Por um lado, danos ao patrimônio; por outro, desordens públicas. As duas são acusações por artigos do código penal. Pensamos que nenhuma delas se justifica, porque não houve desordens públicas naquela manhã, simplesmente realizamos um protesto que entendemos ser totalmente legítimo, ou seja, desordens públicas não houve. Depois, a acusação de danos ao patrimônio também não se sustenta, porque o líquido que foi derramado tinha sido preparado justamente para que não fosse danoso. Então… se estivéssemos em um mundo normal, as acusações cairiam.
Além disso, em um caso como este, deveria prevalecer o direito ao protesto legítimo e ao papel que entendemos que as ações de desobediência civil desempenham. Estas, bem pensadas, servem para que uma sociedade democrática possa se responsabilizar pelos conflitos reais, quando ainda talvez haja algum tempo para agir.
Como você já sabe, em termos de aquecimento global, a questão mais angustiante tem a ver com o tempo, com a forma como vai se fechando o que os pesquisadores e pesquisadoras, mas também a Organização das Nações Unidas, chamam de “janela de oportunidade”, que talvez ainda tenhamos.
Eu acredito que é isso que move as pessoas jovens e as um pouco mais velhas, que estão fazendo o que podem, de modo mais intenso em outros países do que no nosso. As propostas que estão sendo desenvolvidas na Grã-Bretanha, Alemanha e França estão mais à altura do que as nossas.
Se chegar a ser preso, vai se arrepender?
Não.
Mas, pode acontecer. Não sei se você pensa: “não voltarei a fazer isso”, porque o que pode acontecer é muito grave.
Como há outro julgamento pendente – devido à ação que realizamos no outono de 2019, quando se interditou o tráfego no Paseo de la Castellana [Madri], e eu também fui uma das três pessoas presas – e esse julgamento passou na primeira fase da instrução, com o juiz decidindo nos acusar, então, agora, eu tenho duas possibilidades de punição... Vou esperar para ver como esses dois julgamentos se desenvolvem e, depois, veremos como se segue. Contudo, olhando para trás, acredito que as duas ações foram totalmente justificáveis.
Nos movimentos ambientalistas, temos clareza de que há ocasiões em que a lei tem que ser infringida para chamar a atenção sobre situações que são muito lesivas para o que é necessário continuar chamando de “bem geral” e às possibilidades de alcançar, em algum momento, como dizia o lema da revista Mientras tanto uma humanidade livre e justa, em um planeta habitável.
É impressionante o que custa, aqui, em um país como o nosso, levar adiante esse tipo de protesto... onde são colocadas em jogo essas possibilidades de ser punidos. Chama-me a atenção que algo que teríamos que considerar quase um comportamento cívico básico é percebido como algo muito estranho, difícil e quase heroico. Claro, isso é um déficit da nossa sociedade, que vem desaprendendo muito da gramática do protesto na democracia. Eu penso que nisso houve um grande retrocesso.
Para responder sem rodeios: quando se atua em movimentos sociais, a possibilidade de detenção e prisão por defendermos aquilo em que acreditamos (por exemplo, uma Terra que não se transforme em um inferno climático), há muito tempo, foi assumida por muitos de nós.
Estamos vendo uma tendência ocidental muito preocupante a criminalizar o coletivo ambientalista, especificamente seus protestos pacíficos, e a lhes aplicar a lei antiterrorismo. Na Espanha, o último relatório da Promotoria incluía o ambientalismo na seção de terrorismo internacional. No Reino Unido, acabam de condenar dois ambientalistas a 3 anos e 2 anos e sete meses de prisão por obstruírem uma ponte. Enquanto isso, os termômetros nos deixam, em abril, temperaturas de junho... O que esse procedimento da justiça busca?
A situação social e ecológica vai se agravando constantemente. O que antes eram alertas que chegavam a uma pequena parcela da população, agora, talvez alcancem setores mais amplos, e vai se abrindo a visão acerca de quais serão as consequências dessa situação. No limite, estamos falando de uma Terra inabitável para seres como nós.
Não se pode pensar que o aquecimento global é uma questão de viver de forma um pouco mais desconfortável, porque teremos mais dias de calor e precisaremos gerir melhor a água. Não é uma questão de alguns incômodos, mas, sim, de territórios, ecossistemas, que sejam favoráveis à vida, que permitam a vida ou não. O limite do horizonte é o inferno de uma Terra inabitável. Se isso começar a ser um pouco visto, o potencial de alteração da ordem estabelecida será muito grande.
Provavelmente, há um reflexo conservador muito forte frente a esse horizonte de um despertar social mais amplo que não pode deixar de mover os fundamentos dessa ordem socioeconômica. Se verdadeiramente se almeja enfrentar essas perspectivas da Terra inabitável, quase nada pode continuar sendo como é, em todos os âmbitos. E, em particular, esta ordem socioeconômica capitalista, as formas de consumo que chamamos “modos de vida imperiais”, os imaginários culturais, a economia, a política...
Por outro lado, não podemos perder de vista que, no momento, está se desenvolvendo algo que vai além de um reflexo conservador. Esse tipo de fascismo, neofascismo incipiente, que responde assim a uma crise dessa dimensão: se não há para todos, America first, ou minha família, minha nação primeiro, e isso à custa seja do que for. Se há menos terra habitável, guerreemos para conseguir terra habitável; se não há recursos para todos, então, que sejam para os meus. Essa é a resposta que vemos ser delineada. Com isso, são congruentes as respostas de uma ordem pública mantida com uma severidade cada vez maior e com a militarização das sociedades.
Fala-se de ‘ecofascismo’, mas não vejo o ‘eco’ em lugar algum, só o fascismo puro.
Sim, sim, concordo. É preciso falar em fascismo puro. As forças fascistas que vão se desenvolvendo, em geral, têm pouco de ‘eco’. Dito de outra forma, algo que talvez não seja tão óbvio: se falássemos de ecofascismo para nos referirmos a fenômenos de agora, sim, há algumas extremas-direitas que introduzem em sua visão de mundo esses elementos de um planeta limitado em que não há para todos. Contudo, se falamos de ecofascismo, na realidade, também deveríamos dizer que o nazismo clássico, o de Hitler, foi um ecofascismo.
De fato, uma das arrancadas na reflexão contemporânea sobre ecofascismo é a de Carl Amery, um ensaísta e romancista alemão que, anos atrás, publicou um livro traduzido para o espanhol chamado Auschwitz: ¿comienza el siglo XXI? Hitler como precursor (Turner, 2002). Tem uma primeira parte sobre questões ecossociais que podem ser encontradas no nazismo clássico, como esta ideia de Lebensraum, que significa literalmente “espaço vital”: se nós somos uma raça eleita, cercada por raças de menor valor, e temos pouco espaço vital, então, precisamos nos expandir por meio da conquista de território...
Essa ideia de espaço vital escasso, que não dá para todos, era um dos pilares dessa ideologia nazista, e isso é explorado por Amery na primeira parte do livro. Depois, há outra em que argumenta que a crise ecossocial, ao longo do século XXI, poderia levar a um renascimento do nazismo. Então, se chamássemos de ecofascismo ao que está sendo delineado agora, então, também seria possível dizer que o nazismo clássico era um ecofascismo.
Claro, mas referia-me à adoção de políticas contra esse espaço vital, que inclusive aceleram os efeitos da mudança climática, como a remodelação da Puerta del Sol [Madri].
Sim, sim, eu entendo você. Se pensarmos na remodelação da Sol, por exemplo, sim. Outro dia, alguém chamava isso de negacionismo urbanístico.
Certa vez, você disse que fracassou, ou que o movimento ambientalista fracassou, porque esses temas já estavam sobre a mesa, nos anos 1970, e nada foi feito a respeito. Como convive com esse fracasso de décadas? Considera que existe alguma forma de deixar de ser um fracasso?
Tomara que essa janela de oportunidade que vai se fechando seja uma janela mais ampla do que eu percebo. Sobre a questão do fracasso... claro, os movimentos ambientalistas vêm fazendo coisas ao longo do tempo. Mas, quando se vê este assunto com um pouco de distância, observa-se que o ponto em que estamos é o que as lutas ambientalistas se esforçavam para evitar. Nesse sentido, pode-se falar de fracasso histórico, sem que isso signifique que seja necessário arrancar os cabelos ou jogar muita cinza na cabeça. Lutou-se e enfrentamos forças superiores às nossas.
Na minha área, penso também na história das ideias, nos desdobramentos filosóficos que fomos fazendo a partir do ambientalismo, e penso que há alguns erros nessa trajetória. Por exemplo, considero que foi um erro, nos anos 1970, não apreender o que estava em jogo com essa visão de uma bioeconomia ou economia ecológica que incorporasse termodinâmica e ecologia.
O trabalho de um Georgescu-Roegen não foi bem aproveitado e isso tem consequências que continuam, até hoje, acerca de nossa compreensão das transições energéticas etc. Ecosofias, como a de Arne Naess, chamada de ecologia profunda ou ecologismo profundo, não foram suficientemente valorizadas ou incorporadas. Na verdade, isso gerou muita rejeição, também dentro do ambientalismo, e eu penso que foi um erro, porque essa era a parte do ambientalismo que, sim, apresentava uma perspectiva não antropocêntrica.
Um terceiro erro de nossa parte, a partir dos anos 1980-1990, foi essa perspectiva mais convencional sobre o desenvolvimento sustentável, a ideia de que era possível trabalhar dentro do sistema. Aí, parte do ambientalismo cedeu muito a isso que, ao final, foi gattopardismo do sistema. Não é ruim ver quais foram os erros.
Em seu último livro, ‘Bailar encadenados’ (Icaria, 2023), você reflete sobre a liberdade parcial do capitalismo de vigilância, um conceito de Shoshana Zuboff. Existe um extrativismo digital normalizado que molda nossos comportamentos. Como considera que serão as lutas políticas, neste contexto sem precedentes? Na linha da desobediência civil, estamos mais perversamente controlados do que nunca...
Sim, eu acredito que apenas se começa a ver essas dimensões da sociedade de controle, após uma fase de muito enaltecimento digital, nos anos 1990 e início dos anos 2000. Agora, vê-se um pouco mais essa dimensão de potencial totalitarismo digital. Dentro desse fenômeno da nova Guerra Fria que vai se delineando, ficamos fixados no que está acontecendo em uma sociedade como a chinesa, onde esse controle algorítmico é mais rápido, mas isso não dever ser visto como um problema de uma sociedade menos centrada nas liberdades individuais, mas de uma tendência geral que também nos toca de perto.
Eu, aí, não tenho muitas respostas... Simplesmente, faço também um alerta frente ao pressuposto de que “isto não vai parar de progredir”, que “a digitalização é irreversível”... Se formos capazes de efetivar uma resposta social à altura das circunstâncias, eu penso que deveria haver elementos de desdigitalização, de fazer com que isso retroceda.
Não sei se seremos capazes, mas deveríamos, nem que seja apenas pela consideração básica de que é suicida, em um tempo tumultuoso como o que vem, fazer com que os serviços básicos como o abastecimento de água e o correto funcionamento dos hospitais dependam de que a internet não caia. Uma sociedade que mantivesse um mínimo de prudência, um pouco do princípio da precaução, seria muito mais cautelosa, e não estamos sendo assim no momento. Embora vejamos mais os aspectos obscuros, segue-se dando por certo que não há outro caminho possível a não ser essa digitalização a todo custo.
Além de toda a mineração que está por trás disso, o gasto de recursos naturais...
Sim, isso também passa a ser visto um pouco mais. Essa ideia de uma economia desmaterializada, de que as coisas vão estar na nuvem, é claro que não pode ser sustentada tendo em conta os dados [risos]. Não os dados digitais, mas, sim, o que sabemos sobre os intercâmbios de matéria e energia em nossas sociedades.
Uma última pergunta: o que fazemos com a angústia?
Não é uma coisa tão fácil de responder. Porque, por um lado, precisamos não reprimir tanto a ansiedade e o medo como fazemos. São emoções com as quais é difícil de conviver, mas necessitamos delas como advertência frente às realidades que enfrentamos. O problema é quando o medo e a angústia se tornam algo que nos paralisa.
A primeira coisa é tentar não ficar sós, buscar os contextos coletivos e comunitários que nos permitam elaborar essas questões angustiantes em comum. Essa é uma dimensão importante dos movimentos sociais: apoio mútuo, também na hora da elaboração em comum das questões difíceis. Mas, além disso, precisamos de pontos de apoio que nos permitam resistir nos tempos duros que estão por vir. Esses pontos de apoio serão diferentes para cada pessoa.
Em geral, os vínculos sociais mais imediatos vão contar muito para todos, como poder contar com pessoas próximas com quem compartilhar a angústia e também as perspectivas melhores. Mas, além disso, precisamos de pontos de apoio que podem ser… No meu caso, é a poesia, sobretudo. Para outra pessoa pode ser a música. Às vezes, a militância também tem esse aspecto de conseguir enfrentar a angústia.
Por outro lado, a via da poesia tem a ver com ecoespiritualidades. O projeto da poesia moderna cumpre algumas funções que as religiões conseguiram desempenhar em outros contextos. Nesses dias, relíamos Rafael Cadenas, com o Prêmio Cervantes. Claro, é um poeta no qual isso é evidente, mas é comum nos projetos de poesia modernos, dos românticos alemães até hoje. Dizia Rafael Cadenas: a poesia não deve ser vista como um gênero literário, mas, sim, como um tipo de experiência.
Então, precisamos de pontos de apoio assim também. E chegaríamos ao que desenvolvi na poesia como a ideia de “aí”, ser capazes de nos situar com isso que no budismo se descreveria como “atenção plena”, que os cristãos costumavam chamar de “viver na presença de Deus”, ou seja, esse tipo de presença cabal na realidade em que estamos. Há aí um ponto de encontro entre formas de espiritualidade, projetos poéticos e um modo de viver melhor.
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“Precisamos de pontos de apoio que nos permitam resistir nos tempos duros que estão por vir”. Entrevista com Jorge Riechmann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU