16 Mai 2023
"A despeito das disputas partidárias e denominacionais, a Frente Parlamentar Evangélica e lideranças empresariais evangélicas direcionaram suas forças à eleição de Bolsonaro em 2018 e alcançaram um destaque e relevância no Executivo e Legislativos federais nunca visto antes na história do país entre 2019 e 2022 A linguagem política do governo de então se misturava a uma gramática cristã, no mais das vezes, pentecostal", escreve Christina Vital, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense – UFF, autora de mais de 60 publicações sobre religiões, política e grupos armados no Brasil, entre elas os livros: Oração de traficantes: uma etnografia e Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014 no Brasil e o artigo “Irmãos contra o Império”, uma análise sobre religiosos nas eleições 2020, em artigo enviado pela autora ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O Brasil mudou muito em dez anos (2013-2023) e as formas de presença das religiões no espaço público também. Diante disso, como entender o comportamento político de religiosos na política institucional na atualidade? Embora a diversidade religiosa seja uma evidência na sociedade, católicos e evangélicos são os mais proeminentes na politica partidária, a ocuparem cargos no executivo, legislativo e judiciário, embora o movimento negro e de religiosos de matrizes africanas venha crescendo neste âmbito.
Com base em pesquisas realizadas acompanhando religiosos no Congresso Nacional desde 2007, vou propor uma abordagem sobre o comportamento de evangélicos na política neste momento histórico.
Por que eles e não os outros? Em primeiro lugar porque o tipo de ação de evangélicos vem fazendo escola em muitos âmbitos da política hoje. Em segundo lugar porque é o grupo religioso que mais cresce no Brasil e América Latina. Em terceiro porque a ostensividade de suas práticas repercute na cultura nacional e na experiência de espiritualidade de muitos brasileiros de todas as classes sociais.
Nas manifestações de junho de 2013 gritos de guerra defendiam a laicidade do Estado. Neste mesmo ano foi criado o Movimento Estratégico pelo Estado Laico – MEEL. O que estava acontecendo na sociedade brasileira e na política nacional para que a religião (ou a contraposição a ela no espaço público) surgisse como um mote reunindo jovens com várias formações e de várias classes sociais?
Um evento específico animava o coro nas ruas: a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal passou a ser presidida pelo deputado federal e pastor assembleiano Marco Feliciano (então PSC-SP). Este ato político representava mais uma conquista da articulação de políticos evangélicos no Congresso Nacional. Uma sensação de empoderamento público, de fortalecimento do capital político desses religiosos crescia paulatinamente com repercussões na vida pública nacional que se atualizam até os dias de hoje.
Em 2014, às vésperas das eleições, o antigo deputado federal e líder da igreja neopentecostal Sara Nossa Terra, bispo Robson Rodovalho, lançou uma carta intitulada “Antes pedintes, hoje negociadores”. Nesta carta, apresentava o novo lugar dos evangélicos na vida nacional como players e indicava a candidatura do Pastor Everaldo, a primeira candidatura confessional evangélica à presidência da República, como indicativa desta mudança na correlação de forças.
As eleições 2014 se encerraram com Everaldo em quinto lugar com menos de 1% dos votos válidos, mas isso não abalou a organização social e política de líderes empresariais evangélicos. O cientista político Adriano Codato foi um dos que revelou a mudança no perfil da direita brasileira, mais urbana, empresarial e cristã, e o crescimento paulatino da força política de conservadores.
O que o cidadão comum observava era uma presença cada vez maior de evangélicos no mainstream musical, em seus locais de trabalho, nas edificações urbanas, na programação da TV e rádio. A pirâmide religiosa brasileira parecia ter mudado a sua base: de católica para evangélica. Mas não só a sua base em termos econômicos, pois os evangélicos no Brasil estão cada vez mais numerosos entre aqueles com maior poder aquisitivo. Os escândalos envolvendo a Operação Lava Jato, por exemplo, tinham no centro do debate um evangélico, o ex-procurador Deltan Dallagnol. Posteriormente, outro evangélico de destaque ganhou os holofotes em uma polêmica envolvendo a indicação de seu nome para uma vaga ao STF, o atual Ministro André Mendonça.
A suspensão do material didático do MEC de combate à homofobia na escola ocorreu no primeiro ano de governo da então presidente Dilma Rousseff por ação direta de integrantes da Frente Parlamentar Evangélica sob o comando do deputado federal Anthony Garotinho (então PR-RJ). A despeito das disputas partidárias e denominacionais, a Frente Parlamentar Evangélica e lideranças empresariais evangélicas direcionaram suas forças à eleição de Bolsonaro em 2018 e alcançaram um destaque e relevância no Executivo e Legislativos federais nunca visto antes na história do país entre 2019 e 2022. A linguagem política do governo de então se misturava a uma gramática cristã, no mais das vezes, pentecostal.
Naquelas eleições, 70% de evangélicos declararam voto em Jair Bolsonaro, então candidato pelo PSL. Se o conservadorismo político e moral parecia dominar a base evangélica nacional, forças evangélicas progressistas organizaram-se politicamente em torno de alguns partidos com vistas a disputar as eleições municipais de 2020. Cresceram em número, em voz na sociedade e em candidaturas em 2022. Os vitoriosos e vitoriosas ocupam hoje cargos no Executivo e Legislativo nacional e estaduais.
Em termos de seus comportamentos podemos dizer que há os Republicanos, grupo integrado majoritariamente por liberais e progressistas evangélicos que valorizam o Estado laico e atuam ora revelando suas identidades religiosas como meio de se comunicar com uma ampla parcela da sociedade em defesa de ideais democráticos e pluralistas e ampliação de direitos para minorias. Suas identidades religiosas emergem como integradoras não como excludentes de atores sociais quaisquer.
Há os que estou chamando de patrimonialistas em referência à elaboração do sociólogo Max Weber. Esses evangélicos atuam a partir de uma indistinção entre o público e o privado, fazendo prevalecer seus interesses empresariais sobre os coletivos sob o manto de uma defesa “da obra” de Deus, em última instância.
Ou seja, defenderem seus impérios empresariais seria o mesmo que proteger a “obra do Senhor”. É verdade que este tipo de atuação não foi inaugurado por evangélicos, mas é empregada por eles combinando o sentido econômico ao religioso em suas ações. Evangélicos liberais do ponto de vista econômico e conservadores do ponto de vista moral conformam o tipo ideal deste “evangélico patrimonialista”.
Por fim, podemos identificar os “evangélicos do quinhão”. Seu modo de comportamento político envolve a defesa de uma identidade excludente de outras. Uma dinâmica de afirmação de legitimidade como se correspondessem a uma organização de classe (como médicos ou policiais, como disseram em pesquisas) ou correspondessem a uma identidade política (como a racial e de gênero).
Com base nesta forma que apresentam como legítima de participação política, defendem sua participação como representantes de um grupo. É comum ouvirmos líderes da FPE dizerem que devem alcançar 30% da Câmara Federal porque os evangélicos no Brasil corresponderiam a este percentual. Não querem dissolver fronteiras, mas apostam suas fichas na luta pelo seu quinhão na divisão do poder político em cargos de destacada influência.
Neste grupo, destacam-se evangélicos auto declarados conservadores, membros de partidos de direita e, muito residualmente, evangélicos à esquerda, ainda que não motivados por interesses econômicos e sim de representação religiosa/cultural.
Qual a importância desta categorização? Acredito que seja útil para a ação social e política de defensores do pluralismo religioso, da laicidade do Estado e da garantia e ampliação de direitos sociais, individuais e coletivos. Um meio de ação social e de interpretação política e sociológica de um contexto sem precedentes em nossa história.
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Religiosos republicanos, patrimonialistas e “do quinhão”: como entender evangélicos na política hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU