09 Março 2023
"O esforço de partidos de esquerda em aumentar o quadro de filiados e candidatos com identidade e base política religiosa evangélica vem num crescendo desde os anos 2010 com reflexos significativos na ampliação do diálogo e visibilidade das identidades religiosas de outros candidatos e candidatas no segmento afro religioso e também católico, principalmente".
O artigo é de Christina Vital, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), autora de mais de 60 publicações sobre religiões, política e grupos armados no Brasil, entre elas os livros: Oração de traficantes: uma etnografia e Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014 no Brasil e o artigo “Irmãos contra o Império”, uma análise sobre religiosos nas eleições 2020. Nesta matéria, a autora apresenta alguns resultados de pesquisas recentes sobre candidaturas de religiosos à esquerda neste contexto de extremismo político e religioso. Essas pesquisas foram realizadas em parceria entre o Instituto de Estudos da Religião (ISER), a Fundação Heinrich Boll e o Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião (LePar), vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF).
Dados do World Values Survey (WVS) revelam que o Brasil é o país com menor frequência semanal à missa (8%) entre os 36 países com maior população católica. Em contraposição, a frequência semanal às igrejas evangélicas é de 53% (duas ou mais vezes por semana), segundo o Instituto DataFolha (2022). Vale lembrar que o segmento evangélico é que mais cresce no país conforme dados do IBGE. Na atualidade, o associativismo religioso é o que produz maior engajamento no Brasil diante de todas as mudanças globais nos planos tecnológico, do trabalho e também político. E engajamento é relativo à presença, contato pessoal e virtual, sentimento de pertencimento, formação de identidade, produção de comunidades e redes de solidariedade e reconhecimento.
(Gráfico: World Values Survey/WVS)
Não à toa, os evangélicos no Brasil têm sido disputados de modo cada vez mais ostensivo eleição após eleição desde 1989. De modo mais intenso, particularmente, desde 2010. Nas eleições de 2014, um dos candidatos à presidência se apresentava através de sua confessionalidade evangélica e uma carta contundente anunciava que evangélicos passavam de “pedintes a negociadores” afirmando que “a candidatura do Pastor Everaldo revela uma mudança clara de posição do segmento evangélico como player do jogo político”.
A participação de evangélicos em alguns eventos desde 2011 vem acentuando a percepção pública de que ser evangélico é igual a ser conservador. Os exemplos vão desde a articulação de políticos evangélicos para a suspensão do material do MEC de combate à homofobia nas escolas (o chamado Kit Gay) e a participação da maioria de evangélicos na Câmara Federal em favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 “em nome de Deus e da família”. Em 2018 a expressiva votação de evangélicos no candidato vitorioso fortalecia socialmente esta percepção pública, pois a cada 10 eleitores evangélicos, 7 declaravam voto em Jair Bolsonaro. Se é verdade que a hegemonia cristã católica e evangélica é mais conservadora em termos morais e de posicionamento político-partidário, coletivos, ongs e candidaturas evangélicas à esquerda, em favor da democracia foram se avolumando e assumindo contornos diferentes da atuação do “cristianismo da libertação” (conforme Joanildo Burity) dos anos 1970-1980. Posicionavam-se frontalmente ao fascismo, ao extremismo político e religioso, em defesa da democracia. Foi nesse contexto que algumas candidaturas evangélicas à esquerda foram apresentadas seja à vereança, seja à Câmara Federal.
Analisando os dados do TSE em 2022 para todos os cargos, um total de 27.600 candidaturas deferidas, identificamos 588 com nome de urna religioso (considerando católicos, evangélicos e afro). Somente concorrendo a uma vaga para a Câmara Federal, tivemos 171 candidaturas evangélicas, 5 católicas e 5 afro-religiosas. Considerando o foco deste eixo da pesquisa que recaiu sobre as candidaturas em partidos de esquerda e centro esquerda (PSB, REDE, PDT, PT, PSOL, PSTU, PCdoB, UP), identificamos um total de 12: 09 evangélicas, 02 afro-religiosas e 01 católicas. Temos que as candidaturas à esquerda para esses três grupos religiosos significam aproximadamente 7% do total de candidaturas com nome religioso. Ou seja, 93 % das candidaturas com nome de urna religioso estão em partidos de centro e direita. Se entre católicos e evangélicos esperaríamos o maior percentual em partidos à direita, entre afro a expectativa seria que estivessem majoritariamente, senão, exclusivamente, em partidos à esquerda, mas levando em consideração o nome de urna, a maioria de afro religiosos concorreram em partidos de direita e centro. No entanto, se considerarmos os vitoriosos afro-religiosos a uma vaga como deputado/a federal, observamos que todos estão em partidos à esquerda ou centro-esquerda no espectro político.
Comparando com os dados que produzimos no ISER, analisando todas as candidaturas devidamente registradas no TSE e aptas a concorrerem nos maiores colégios eleitorais, cobrindo estados em todas as regiões (Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Pará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás) temos um volume diferente de candidaturas com vínculo religioso. Com a metodologia empregada, baseada na identificação não pelo nome de urna, somente, mas pela apresentação do candidato ou candidata durante a campanha, temos um número total de 3.020 candidaturas com vinculação religiosa nesses 8 estados concorrendo a uma vaga para a Câmara Federal. Ou seja, conseguimos rastrear um número bem maior do que o registro somente por nome de urna no TSE.
Do total de 3.020 candidaturas religiosas identificadas pelo ISER em 8 estados nas eleições de 2022, 512 eram em partidos de esquerda ou centro esquerda (17% do total). Dessas candidaturas à esquerda, 418 se encontravam entre católicas (191), cristãs [1] (114), evangélicas (50) e afro religiosas (63).
O total de candidaturas evangélicas identificadas como um todo, ou seja, em todos os partidos, foi de 627 em 3,020 (igual a 20,8% do total de candidaturas religiosas). As candidaturas evangélicas em partidos de esquerda somam 50. Esse número corresponde a 8% das candidaturas evangélicas como um todo, ou seja, 92% dos evangélicos e evangélicas nesses 8 estados pesquisados encontravam-se filiados a partidos de direita ou centro.
O esforço de partidos de esquerda em aumentar o quadro de filiados e candidatos com identidade e base política religiosa evangélica vem num crescendo desde os anos 2010 com reflexos significativos na ampliação do diálogo e visibilidade das identidades religiosas de outros candidatos e candidatas no segmento afro religioso e também católico, principalmente. Nas eleições 2022, com base no banco de dados produzido pelo ISER, temos 9 partidos oportunizando essas candidaturas. Dentre eles, o PT foi o que reuniu o maior número (104) seguido de perto pelo PSB (103), depois o PDT (98) e PSOL (62). Chama atenção o maior número de candidaturas afro estar no PSOL, foram 25, e que seja esse o grupo religioso com maior representação no partido. Os católicos foram os mais presentes no PT (60). Evangélicos estiveram dispersos pelos partidos com predominância no PDT (15) e no PT (13).
Além dessas candidaturas, vimos acompanhando os movimentos Bancada Evangélica Popular, Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Cristãos Contra o Fascismo, Novas Narrativas Evangélicas e Um ato de amor. Todos esses grupos tem se organizado de modo consistente desde 2016, 2018 ou 2022 com vistas à eleição de representantes cristãos à esquerda, em prol da democracia e da justiça social, contra o fascismo e qualquer forma de intolerância e extremismo. Um ou outro grupo assumiu mais fortemente a agenda de gênero e sexualidade e para todos eles a questão racial é fundamental. O número de eleitos entre as candidaturas apoiadas por esses coletivos não é muito vultoso. Mas é justamente esse o nosso ponto ao acompanhar as esquerdas religiosas na política nacional. A importância social e política desses grupos é muito grande para o letramento de comunidades religiosas em relação às transformações sociais em curso, ao combate à homofobia, ao racismo, à violência doméstica, aos abusos de mulheres e crianças e isso tem repercussões evidentes na sociedade como um todo.
Nas eleições 2020 e 2022, a atuação em rede desses e outros grupos foi muito importante para eleger representantes de esquerda afro (todos os auto declarados afro-religiosos estão em partidos à esquerda), católicos e também evangélicos. No caso dos evangélicos, foram eleitas lideranças com grande visibilidade midiática, nacional e internacional. Seus mandatos, quase sempre comprometidos com uma agenda plural, impactam o campo religioso, mas não somente ele.
São políticos e ativistas que buscam promover em suas ações valores democráticos de respeito à diversidade e contra a calcificação social nos termos apresentados pelos cientistas políticos Chris Tausanovitch, Lynn Vereck e John Sides no livro The Bitter end: the presidential campaing and challenge to American democracy. E a calcificação seria um dos grandes males contemporâneos a serem combatidos, segundo os autores, visto que impede o fluxo de trocas entre grupos opostos que fariam suas escolhas baseados em ideias e interesses, mas exacerbação emocional, um tipo de “ética de torcida futebolística” que inviabiliza a relativização, o diálogo.
Assim, para a democracia e para a vida coletiva, embora com baixa representação quantitativa neste contexto de extremismos e calcificação, as esquerdas religiosas são ao mesmo tempo resultado de um letramento político e social e propulsores dele em populações com poucas oportunidades de acesso a discussões sobre justiça social, sistema econômico, raça, gênero e sexualidade.
[1] Aquelas candidaturas que se apresentam como cristãs ou que, pelo material de campanha, não era possível definir se era católica ou evangélica.
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Esquerdas religiosas em contexto de extremismo político no Brasil. Artigo de Christina Vital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU