19 Fevereiro 2022
Pergunte a um padre, a um rabino ou a um imã qual é o maior desafio para sua congregação e talvez possa escapar de sua boca algo sobre a necessidade de nutrir os valores espirituais em um mundo secularizado. No entanto, as religiões de todo o mundo devem enfrentar um problema igualmente grave, mas de cunho diferente: como permanecer em atividade, em um sentido mais material e competitivo. Na religião, como em outros âmbitos, o covid-19 ajudou a distinguir entre vencedores e perdedores. As igrejas que responderam de maneira eficaz às necessidades de seu rebanho mesmo antes da pandemia em muitos casos prosperaram, pois as pessoas estão mais preocupadas com a morte e durante o lockdown tiveram mais tempo livre para frequentar os serviços religiosos e orar.
A reportagem é publicada por The Economist e reproduzida por Internazionale, 12-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
No entanto, as igrejas que não estavam indo bem antes tiveram mais dificuldade em manter unidas as suas congregações. A pandemia acelerou a passagem para as celebrações on-line, oferecendo a muitas pessoas que antes eram praticantes uma boa desculpa para não aparecerem mais. Muitas instituições religiosas fecharam suas portas da noite para o dia, transferindo os serviços para o Zoom. Agora, com a reabertura dos espaços públicos, não se sabe quantos fiéis irão voltar. Se, como parece provável, forem poucos, duas tendências que já eram evidentes anteriormente poderiam se intensificar. Muitas organizações religiosas vão se desfazer de seus imóveis subutilizados. E um número maior de igrejas vão se fundir.
Os economistas há muito tempo analisam os grupos religiosos como se fossem empresas. Em 1776, o escocês Adam Smith argumentava no livro A riqueza das nações que as igrejas são empresas semelhantes a açougues, padarias ou cervejarias. Em um mercado livre e competitivo, onde dependem de doações e voluntários para fechar as contas, o clero deve agir com “zelo” e “industriosidade” para lotar seus bancos. Fusões, aquisições e falências são inevitáveis.
Hoje, o mercado da religião está em constante mudança, talvez mais do que no passado. Do lado da demanda, as igrejas do mundo ocidental estão sofrendo os efeitos da secularização global que começou muito antes da pandemia.
Até mesmo nos Estados Unidos, o exemplo mais marcante de um país rico que prosperou acompanhado pela religião (graças a ela, segundo alguns), o percentual de cidadãos que se definem cristãos caiu de 82% em 2000 para 75% em 2020. De acordo com o último levantamento da World Values Survey, uma rede global com sede na Áustria, cerca de 30% dos estadunidenses declaram participar de um serviço religioso pelo menos uma vez por semana. Isso é muito quando comparado a outros países ricos. No entanto, o número vem caindo constantemente desde o início do milênio, quando era de 45%.
Do lado da oferta, a competição tende a ser acirrada onde os governos não impõem a religião que as pessoas deveriam seguir. De acordo com John Gordon Melton, da Baylor University, Texas, existem cerca de 1.200 denominações cristãs nos Estados Unidos, além de um grande número de outras religiões. Para atrair suas congregações, devem se esforçar para tornar atraente a frequência à igreja. De acordo com uma pesquisa do Gallup, 3/4 dos estadunidenses declaram que a música é um fator importante; 85% são atraídos pelas atividades sociais. Como afirma Roger Fink, professor da universidade estadual da Pensilvânia, a chave do pluralismo não é a presença de "mais religiões", mas o fato de que elas respondem aos gostos dos consumidores.
A pandemia levou as igrejas de todo o mundo a inovar. O centro cristão Milton Keynes, no Reino Unido, por exemplo, desenvolveu cursos de educação religiosa e grupos de oração on-line e presenciais. Mantém um banco de alimentos e abriu uma "câmara sensorial" ("um espaço calmo e relaxante") para as crianças com dificuldades de aprendizagem. “As igrejas precisam revisar as estratégias com que exercem se ministério para garantir que estejam em sintonia com as mudanças em nossa cultura atual”, afirma Tony Morgan, fundador do The untuck group, uma empresa de consultoria eclesiástica com sede em Atlanta que aconselha os párocos do Milton Keynes.
No entanto, muitas igrejas não conseguiram acompanhar o ritmo. Seu clero não se transferiu on-line durante o lockdown, seja por falta de tecnologia ou porque não apreciava particularmente a ideia. Alguns demoraram a reabrir. Enquanto isso, a transmissão ao vivo dos serviços religiosos tornou mais fácil para os fiéis "saltar de uma igreja para outra". Em uma pesquisa de 2020 com cristãos praticantes nos Estados Unidos pelo grupo Barna, que pesquisa religiões em todo o mundo, 14% mudaram de igreja, 18% frequentavam mais de uma igreja, 35% frequentavam apenas a igreja de referência antes da pandemia e 32% tinha parado completamente de ir à igreja.
Um objetivo importante para qualquer igreja, esteja ou não em dificuldade, é fazer face às despesas e isso hoje invariavelmente significa rever o portfólio imobiliário. A religião organizada enfrenta os mesmos problemas dos proprietários de centros comerciais e escritórios que se esvaziam à medida que os negócios se movem on-line. Aguentar e assistir à gradativa redução dos participantes? E de que outra forma eles poderiam repensar suas propriedades?
Durante séculos as religiões acumularam riquezas terrenas na forma de propriedades. O Vaticano possui milhares de prédios, alguns nas áreas mais elegantes de Londres e Paris. A Igreja da Cientologia possui propriedades localizadas em ruas exclusivas de Hollywood que estão avaliadas em cerca de US$ 400 milhões, um castelo em estilo medieval na África do Sul e uma mansão oitocentista no Sussex, na Inglaterra. O Wat Phra Dhammakaya, um templo de propriedade da seita budista mais rica da Tailândia, ostenta salas de meditação em todo o mundo. As posses da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais conhecida como Igreja Mórmon, são um mistério; fala-se que eles tenham algo como US$ 100 bilhões em investimentos nos Estados Unidos, incluindo fazendas, um parque temático no Havaí e um shopping center perto de seu templo de Salt Lake, no Utah. Até mesmo instituições religiosas menores dependem das propriedades imobiliárias para seu bem-estar terreno. Templos, sinagogas e mesquitas estão observando atentamente o aumento dos preços no setor imobiliário.
Isso se tornou ainda mais importante com o declínio da prática religiosa formal e o consequente declínio nas doações. Na última década, a igreja no Reino Unido fechou seus prédios em um ritmo de mais de duzentos por ano. Centenas mais poderiam ser vendidos ou demolidos nos próximos anos. Nos Estados Unidos também, dezenas de milhares de edifícios enfrentam o mesmo fim. Nas últimas duas décadas, quase 1/3 das sinagogas dos EUA foram fechadas.
A Igreja de St. Mary em Berlim, uma grande estrutura gótica de tijolos vermelhos, reflete essa tendência. Está cheia de seculares afrescos e baixos-relevos em pedra. No entanto, os bancos estão vazios. A congregação está diminuindo desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com seu pastor luterano, Gregor Hohberg, os jovens berlinenses ainda têm "necessidades religiosas", mas as atendem com aulas de ioga e grupos de meditação. A opinião pública, continua ele, não entende que a igreja acolhe as famílias gays e que entre os pastores há também muitas mulheres. Segundo o padre Hohberg, a maioria dos alemães considera que a igreja está fora de moda.
Enquanto isso, em todo o mundo, com o aumento dos preços, o pagamento das tarifas de serviços e a manutenção urgente estão se tornando proibitivos. A igreja da Inglaterra declara que nos próximos cinco anos precisará de 1 bilhão de libras (cerca de 1,2 bilhão de euros) – ou seja, sete vezes mais as receitas registradas em 2020 - para as manutenções. Nas últimas três décadas, as igrejas inglesas fecharam a um ritmo preocupante. Nos Estados Unidos, as despesas ligadas aos prédios representam mais de um quarto dos orçamentos da igreja. No entanto, estima-se que as igrejas em todo o país dispunham de 80% mais espaço do que o necessário.
Muitas mesquitas também estão com em dificuldades, especialmente no Ocidente. Embora muitas vezes atraiam mais fiéis do que igrejas bem financiadas, seus orçamentos, estimados em média em 70.000 dólares anuais por mesquita nos Estados Unidos, costumam ser demasiado pequenos para manter os edifícios em boas condições.
A internet foi ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Estima-se que um sermão virtual do arcebispo de Canterbury em 2020 tenha sido ouvido por 5 milhões de pessoas – ou seja, mais de cinco vezes o número de pessoas que iam à igreja todas as semanas no Reino Unido antes da pandemia. Apesar disso, a participação on-line tem um preço. Se os crentes pararem de frequentá-los, os antigos edifícios correm o risco de se tornarem obsoletos.
É por isso que os grupos religiosos estão vendendo suas propriedades em um ritmo mais elevado do que antes, ou estão procurando novas maneiras de usá-las. Os líderes religiosos que aspiram a um lugar no paraíso estão aprendendo a se adaptar vendendo ou alugando imóveis na Terra, onde cupins e ferrugem os consomem. As Testemunhas de Jeová, que contam com 9 milhões de fiéis em todo o mundo, venderam sua sede no Reino Unido, onde imprimiam os panfletos e a revista A Sentinela. Hillsong, uma megaigreja australiana que toda semana tem 150.000 praticantes em 30 países, aluga teatros, cinemas e outras instalações para os cultos dominicais.
No entanto, separar-se de uma propriedade sagrada pode ser difícil. Em 2020, os supervisores do famoso templo hindu Venkateswara de Tirumala, no estado indiano de Andhra Pradesh, foram chamados de "anti-hindus" por tentarem leiloar dezenas de propriedades "não vitais" que haviam sido doadas pelos fiéis. Eles foram obrigados a abandonar a ideia.
Outra abordagem mais radical para esse tipo de problema está se espalhando: se sua igreja não pode prosperar sozinha, junte-a a outra. Alguns meses atrás, Jim Tomberlin, um pastor que virou consultor, foi convidado a dar um parecer por uma igreja próxima de Detroit, Michigan, em graves dificuldades. Sua congregação mal contava com 50 pessoas e na propriedade gravava uma dívida de 450.000 dólares. Seus líderes gostariam de se juntar a outra paróquia a 15 minutos de carro, que acolhe um rebanho de mil fiéis e tem um orçamento saudável. Como muitos outros em situação semelhante, os peixes pequenos pediram a Tomberlin para mediar. "Eles reconhecem que a alternativa à fusão é a morte", afirma ele sem muitos rodeios. A tendência à fusão entre igrejas começou antes da Covid, mas o ritmo poderia se acelerar. Para estimulá-la, há razões não apenas teológicas, mas também administrativas, com orçamentos cada vez menores e pastores se aposentando. A consolidação dessa tendência está ocorrendo entre igrejas de rito católico, entre sinagogas e também dentro de outras religiões. Mas é especialmente comum entre as igrejas protestantes dominantes nos Estados Unidos.
Como em qualquer empresa, quando duas igrejas se juntam, seus líderes podem ter conflitos, as mudanças culturais podem afastar os fiéis e as finanças conjuntas nem sempre funcionam. Nas fusões entre igrejas, é mais provável que a mais fraca perca fiéis. De acordo com uma pesquisa de 2019 com cerca de 1.000 líderes religiosos que enfrentaram uma fusão na última década, cerca de um quinto das igrejas menores perdeu mais de 40% de sua congregação dentro de um ano após a fusão.
Mas também surgiram cerca de 1.750 "megaigrejas" protestantes com mais de 2 mil frequentadores regulares e orçamentos multimilionários, algumas como resultado de fusões. Algumas têm muitas sedes. De acordo com Warren Bird, um pastor estadunidense especialista em megaigrejas, uma boa fusão entre paróquias é semelhante a um casamento bem-sucedido. Cada parceiro tem que trazer em dote algo para fazer funcionar o acordo, mas uma igreja em dificuldades que se junta a uma que está indo bem poderia simplesmente ser engolida por esta última.
Os economistas não estão sozinhos em pensar que a competição religiosa possa ser saudável. “Se houvesse apenas uma só religião na Inglaterra”, argumentava o escritor francês Voltaire em 1830, “haveria que temer o despotismo, se houvesse duas, se cortariam gargantas; mas existem trinta, e vivem em paz e felizes”. Talvez um pouco otimista demais. Mas o vírus certamente induziu as instituições divinas a fazer um balanço da situação de seus recursos comerciais além daqueles espirituais.
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As religiões também estão à mercê do mercado e da concorrência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU