09 Mai 2023
"É uma ferida inaceitável que incontáveis pessoas sejam submetidas a situações de trabalho análogo à escravidão e que tantas outras não tenham teto, terra, pão, trabalho digno e estejam impossibilitadas de ter acesso ao lazer, à cultura, à educação de qualidade, dentre tantas outras coisas elementares para o bom desenvolvimento humano e que um trabalho adequado deveria dar condições de acessar", escreve Elvis Rezende Messias, docente-pesquisador da UEMG Campanha. Licenciado em Filosofia (UEMG) e bacharel em Teologia (UCDB). Especialista em Doutrina Social da Igreja (PUC Goiás) e em Filosofia (Claretianos). Mestre em Educação (UNIFAL) e doutorando em Educação (UNINOVE), com bolsa CAPES. É sócio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Filosofia da Educação (GRUPEFE, CNPq, UNINOVE).
Para bem pensarmos a realidade do trabalho e de quem trabalha, nesses dias em que comemoramos o Dia da Trabalhadora e do Trabalhador, uma afirmativa de Jesus é iluminadora: “O meu Pai trabalha sempre, e eu também” (Jo 5, 17). À luz desse texto bíblico, muitas pistas reflexivas nos são compartilhadas pelo ensino social católico. Vejamos algumas delas e desdobramentos.
1ª pista. O trabalho é uma dimensão fundamental da vida. Deus mesmo, o Senhor da Vida, trabalha sempre. O Amor não descansa e nunca se cansa, parafraseando São João da Cruz. Jesus revela Deus como um Pai Trabalhador, que faz um belo trabalho de amor, criando tudo que existe com uma beleza profunda. Dentre suas belezas criadas, a maior de todas é o ser humano, que Deus cria conforme a Sua própria imagem e semelhança (cf. Gn 1, 1-26).
2ª pista. O próprio Jesus, que assumiu nossa humanidade em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4, 14), foi um exímio trabalhador, “trabalhou com mãos humanas” (Gaudium et Spes = GS, n. 22), passando a maior parte dos anos de sua vida exercendo o ofício de carpinteiro, tal como Seu pai na terra, São José. Posteriormente, em Seu ministério público, trabalhou incansavelmente pela libertação e pela dignidade integral da pessoa humana (cf. Laborem exercens = LE, n. 6; Compêndio da Doutrina Social da Igreja = CDSI, n. 259-260).
3ª pista. Cada pessoa humana é sonhada e desejada por Deus a partir de Seu divino trabalho criador. Desse modo, a dignidade humana tem raiz no fato de ter sido o ser humano criado por Deus à Sua imagem e semelhança. Temos uma altíssima vocação e tudo quanto existe volta-se para o aperfeiçoamento de nossa humanidade, e nada que seja contrário a isso deve ser por nós admitido.
4ª pista. Ao nos criar, Deus nos caracterizou com o dom do trabalho, fato que está especialmente manifestado através da missão que nos deu de cultivar e guardar o Seu jardim (cf. Gn 2, 5-6.15). Isso significa que fomos chamados a participar de Seu trabalho criador (cf. CDSI, n. 263).
O mundo passa a existir, e nós, no mundo, como fruto do trabalho de Deus. E nós, uma vez que somos a única criatura feita à imagem de Deus, recebemos dele uma natureza trabalhadora, que não se resume a mero laborismo produtivista; ao trabalhar, o homem reflete uma das imagens daquilo que Deus mesmo é. As orações feitas pelo sacerdote durante a apresentação das oferendas na santa missa manifestam, maravilhosamente, a dinâmica colaborativa entre o trabalho humano e o trabalho de Deus: o trigo e a uva que recebemos são frutos do trabalho de Deus; o pão e o vinho, por sua vez, são frutos do trabalho do homem. (MESSIAS; CRUZ, 2020, p. 111).
5ª pista. Essa compreensão teológica nos ajuda a entender que o trabalho jamais foi uma espécie de maldição divina à humanidade (cf. CDSI, n. 256). O Catecismo da Igreja Católica (CAT) é enfático ao dizer que “o sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar [o ser humano] no jardim. Lá vive para ‘cultivá-lo e guardá-lo’ (Gn 2, 15): o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível” (CAT, n. 378). A Igreja professa fé na dignidade do trabalho, pois professa, antes, a fé em um Deus que “trabalha sempre” e na dignidade profunda do ser humano, que foi criado à imagem desse Deus trabalhador e que, como tal, é vocacionado a tomar parte no divino trabalho do Criador. Isso deixa claro que é digno o trabalho porque, acima de tudo, é digno quem trabalha: Deus e o ser humano.
6ª pista. Conforme nossa dignidade inalienável, fica evidente que não é qualquer condição de trabalho que nos é digna. É lamentável que o trabalho frequentemente tenha se tornado um instrumento de sofrimento e de exploração das pessoas! É um pecado gravíssimo que tantas pessoas trabalhadoras desenvolvam seu trabalho sem receber um salário digno e o devido reconhecimento social, sem direitos (que já são poucos e fracos) respeitados, submetidos à lógica do mercado, ao produtivismo desumano, ao consumismo sufocante, ao materialismo reducionista. É uma profunda afronta à dignidade do trabalho e de quem trabalha quando a dignidade humana termina imolada no altar sacrílego do dinheiro idolatrado.
7ª pista. Diz a Igreja que “o trabalho é essencial, mas é Deus – não o trabalho – a fonte da vida e o fim do homem” (CDSI, n. 257). Por consequência, impõe-se a exigência da justiça, que está muito acima da busca por lucro, pois ela deve reconhecer a dignidade de cada pessoa e lhe dar o que é devido. Por isso, denuncia: “O curso da história está marcado por profundas transformações e por exaltantes conquistas do trabalho, mas também pela exploração de tantos trabalhadores e pelas ofensas à sua dignidade” (CDSI, n. 267).
8ª pista. Este Deus “que trabalha sempre” (Jo 5, 17) é o mesmo Deus que também descansou no sétimo dia da Criação (Gn 2, 2). Essas duas coisas não se contradizem. O descanso de Deus revela-se como dimensão fundamental da realidade do trabalho. Isto é “o repouso não é o não trabalho. Pelo contrário, ele é condição humana indispensável [...] o repouso também é ‘produtivo’, ou seja, ele produz vida, também é uma forma que honra a dignidade da vida humana e de toda a criação, combatendo, entre outras coisas, a exploração e a idolatria produtivista” (MESSIAS; CRUZ, 2020, p. 113). Em especial, deve haver todo esforço para que o domingo seja guardado e “santificado com uma caridade operosa” (CDSI, n. 285).
Como desdobramento, fere-se a universal dignidade do ser humano que tantas pessoas ainda tenham que se submeter a formas de trabalho excessivas em carga-horária, com péssima remuneração e salário, com ideologias que naturalizam a diferença salarial entre homens e mulheres. É uma ferida inaceitável que incontáveis pessoas sejam submetidas a situações de trabalho análogo à escravidão e que tantas outras não tenham teto, terra, pão, trabalho digno e estejam impossibilitadas de ter acesso ao lazer, à cultura, à educação de qualidade, dentre tantas outras coisas elementares para o bom desenvolvimento humano e que um trabalho adequado deveria dar condições de acessar.
Há quem argumente, contudo, que uma certa precarização do trabalho é necessária para que seja garantido emprego para as pessoas. A ideia, aí, é que uma escolha deve ser feita: ou direitos ou emprego. Isso é de uma perversão absurda! A lógica do mercado não é antropológica, ou seja, não é humanizada. Ao contrário, é radicalmente indiferente à centralidade e primazia do ser humano. O subemprego é tão nocivo quanto o desemprego. Ambos afrontam a dignidade do trabalho e, sobretudo, de quem trabalha.
Assim sendo, estas situações de profundo desrespeito à pessoa trabalhadora resultam também, além de uma indiferença antropológica, de uma subsequente opção social e de um sistema econômico que coloca os lucros e o capital acima da dignidade do trabalho e do ser humano (cf. CDSI, 277). Como se pode notar, existe aí uma inversão perversa das coisas, que transforma o ser humano em mercadoria e a mercadoria em valor “quase humano”.
Diante disso, o consagrado ensinamento da Igreja afirma o seguinte:
Independentemente do seu conteúdo objetivo, o trabalho deve ser orientado para o sujeito que o realiza, pois a finalidade de qualquer trabalho permanece sempre o homem. O componente objetivo do trabalho deve ser subordinado à realização do homem e, portanto, à dimensão subjetiva, graças à qual é possível afirmar que o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. (LE, n. 6).
Desde a publicação da encíclica Rerum novarum (RN), do papa Leão XIII, em 1891, a Igreja tem se dedicado intensamente ao anúncio da elevada dignidade das trabalhadoras e dos trabalhadores e à denúncia das situações profundamente degradantes às quais incontáveis pessoas têm sido submetidas em seus trabalhos, tomando parte em suas lutas e clamores. Essa encíclica marca um novo e substancial desenvolvimento do magistério social católico sobre as questões sociais (cf. CDSI, 87). Assim explica o papa Francisco:
Com a industrialização emergiu um capitalismo brutal: uma espécie de economia que aniquila os seres humanos. Grandes industriais sem consciência fizeram com que as pobres populações agrícolas trabalhassem duramente com salários de miséria em minas e em fábricas sem condições. Havia crianças que já não viam a luz do dia. Eram como escravos, enviadas para debaixo da terra para puxarem vagões de carvão. Muitos cristãos ajudaram com grande empenho nesta necessidade, mas depressa perceberam que isso não era suficiente. Então desenvolveram ideias a fim de agirem social e politicamente contra a injustiça. O documento que é considerado fundador da Doutrina Social Católica continua a ser a encíclica do papa Leão XIII, Rerum novarum. (FRANCISCO, 2016, p. 12).
E a encíclica leonina afirma o seguinte:
[...] estamos convencidos de que é necessário vir em auxílio das pessoas de classes inferiores, pois estão numa situação de infortúnio e de miséria imerecida [...] os trabalhadores se veem entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. [...] É com toda a confiança que nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do nosso direito; [...] calarmo-nos seria, aos olhos de todos, trair o nosso dever (RN, n. 2 e 10).
Desse modo, a denúncia profética da Igreja nos interpela a ações concretas, críticas e organizadas. Isso significa que se o tão falado critério da eficiência econômica não serve para a promoção da dignidade integral de todas e cada uma das pessoas, então, na verdade, ele de nada serve (cf. Populorum Progressio = PP, n. 14). “Sempre que um trabalhador é visto como uma simples mercadoria ou uma engrenagem impessoal numa máquina, a sua dignidade é violada. O trabalho é para o Homem, não o Homem para o trabalho. Isto tem consequências na relação entre trabalho e capital, no direito ao trabalho e nos direitos da pessoa no trabalho.” (SCHLAG, 2018, p. 95).
É preciso, então, que se diga um contundente “‘Não’ a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui”, como disse Francisco em seu discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Isso implica um “não!” ao reducionismo do trabalho, um “não!” ao reducionismo do ser humano trabalhador!
Está em jogo, dessa forma, a defesa daquilo que o magistério social católico, concordando com a Organização Internacional do Trabalho (OIT/ONU), chama de “trabalho decente”. Em que consiste isso? Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate (CV, n. 63), assim o caracterizou:
um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher;
um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade;
um trabalho que permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação;
um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar;
um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz
um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual;
um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa.
Diante de um cenário que ainda insiste em subalternizar pessoas por meio da naturalização da exploração desumana do trabalho, redescobrir a dignidade inalienável da pessoa que trabalha é uma urgente tarefa. Importa redescobrirmos, portanto, nossa dignidade integral, lutando por ela diariamente a partir de Cristo e do Seu Evangelho Social, cujo ensinamento enaltece o trabalho e, sobretudo, quem trabalha. Em síntese, o sentido objetivo do trabalho se esclarece somente quando radicado no valor subjetivo da pessoa trabalhadora, que é à imagem e semelhança do Deus Trabalhador. Não devemos aceitar nada menos do que corresponda, de fato, à nossa altíssima dignidade e vocação. A luta por um trabalho digno é um irrenunciável dever de fé.
BENTO XVI. Caritas in veritate. 29 jun. 2009. Disponível aqui.
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes. 07 dez. 1965. Disponível aqui.
FRANCISCO. Participação no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares: discurso do Santo Padre. 09 jul. 2015. Disponível aqui.
FRANCISCO. Prefácio. In: DOCAT. Como agir? São Paulo: Paulus, 2016.
JOÃO PAULO II. Laborem exercens. 14 set. 1981. Disponível aqui.
LEÃO XIII. Rerum novarum. 15 maio 1891. Disponível aqui.
MESSIAS, Elvis Rezende. CRUZ, Dom Pedro Cunha. O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulus, 2020.
PAULO VI. Populorum progressio. 26 mar. 1967. Disponível aqui.
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da doutrina social da Igreja. Tradução da CNBB. São Paulo: Paulinas, 2005.
SANTA SÉ. Catecismo da Igreja Católica. Edição típica vaticana. São Paulo: Loyola, 2000.
SCHLAG, Martin. Trabalho humano, emprego e direitos dos trabalhadores. In: SCHLAG, Martin (Org.). Manual da doutrina social da Igreja: um guia para os cristãos no mundo. Cascais: Princípia, 2018.
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O trabalho de quem trabalha: pistas e desdobramentos à luz da Doutrina Social da Igreja. Artigo de Elvis Rezende Messias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU