15 Março 2023
O biblista e cardeal italiano Gianfranco Ravasi, comenta a tradução italiana do Catecismo Menor e do Catecismo Maior de Lutero, em artigo publicado , ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 12-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A edição italiana é comentada pelo teólogo Fulvio Ferrario.
Segundo Ravasi, "os dois catecismos são uma referência capital e um grande atestado do ardor pastoral do Reformador pela alfabetização religiosa do povo cristão".
Martinho Lutero. Os Escritos de 1529 [em tradução livre] em versão breve e em versão ampliada, esses textos representam um ponto de referência capital para a pastoral do Reformador, que tentou simplificar a alfabetização religiosa do povo.
“Bom Deus, quanta miséria eu vi! O homem comum nada sabe da doutrina cristã, em particular nas aldeias, e infelizmente muitos pastores são quase inaptos e incapazes de ensinar; e, mesmo assim, todos devem se chamar de cristãos, devem ser batizados e receber os santos sacramentos, mas não conhecem o Pai Nosso, o Credo ou os Dez Mandamentos. Vivem como os brutos e irracionais suínos."
Assim se abre o Catecismo Menor que Lutero compôs em 1529, desconcertado com a ignorância religiosa registrada em suas visitas às diversas comunidades alemãs, palavras que, infelizmente, poderiam ser transcritas com poucas variações ainda hoje para as muitas paróquias italianas e na nossa própria sociedade que se despojou de todas as raízes, ainda que apenas culturais, cristãs.
O texto, que responde aos cânones do gênero catequético – basta pensar no Catecismo da Igreja Católica elaborado sob a orientação do então Cardeal Ratzinger e publicado pelo Papa João Paulo II em 1992, em uma forma maior e num “compêndio” posterior, revela uma clareza e essencialidade absolutas.
Por um lado, é indubitável a finalidade pedagógica prática, que torna a leitura clara e transparente por sua substancial simplicidade; por outro lado, talvez seja possível intuir nas entrelinhas da obra uma tentativa de aproximação global à clássica dialética luterana entre lei e evangelho. Mas para entender a gênese, o contexto, a estrutura e a espiritualidade das páginas do Reformador, é importante consultar a introdução do teólogo e pastor valdense Fulvio Ferrario, curador dessa nova edição acompanhada pelo texto em alemão.
Por enquanto é suficiente evocar a arquitetura desse Enchiridion, isto é, um manual destinado a “pastores e pregadores inexperientes”. Parte-se do Decálogo que “um pai de família deve, da maneira mais simples, ensinar aos que moram em sua casa”.
O Credo segue com a trilogia de seus artigos de fé: criação, redenção, santificação. Depois aparece um comentário lapidar a perguntas e respostas aos sete pedidos do Pai Nosso. Por fim, alarga-se numa espécie de ramificação relativa aos sacramentos, do batismo à confissão e ao "sacramento do altar" (a Eucaristia), com os corolários das bênçãos matutina e vespertina.
Aqui estão apenas alguns exemplos de catequese luterana para estimular a leitura integral da obra que o curador comenta ao pé de página com notas teológicas e históricas de grande interesse. Em apoio ao sexto mandamento "Não cometer adultério", lemos: "Devemos temer e amar a Deus e, portanto, viver de maneira casta e disciplinada, em palavras e ações, cada um amando e honrando seu cônjuge". Ferrario aponta que, segundo a intencionalidade implícita nos próprios preceitos originais, "a interpretação oferecida do mandamento é em termos exclusivamente positivos, evidenciando não o que é proibido, mas o que é ordenado".
Lutero, Il Grande Catechismo, Claudiana, pag. 379, € 35 e Lutero, Il Piccolo Catechismo, Claudiana, pag. 179, € 24 (Foto: Divulgação)
Para o Pai Nosso, escolhemos a sexta invocação “Não nos deixeis cair em tentação” que é assim explicada:
“Deus não tenta ninguém, mas nesta oração pedimos que Deus queira nos proteger e salvaguardar, para que o diabo, o mundo e a nossa carne não nos traiam nem nos desviem para a falsa fé, para o desespero ou para outros grandes escândalos e vícios e, caso sejamos tentados nesse sentido, para que no final consigamos e mantenhamos a vitória”.
Surpreendente para alguns podem ser, além disso, algumas respostas a respeito dos sacramentos: seguem a doutrina tradicional, chegando no caso da confissão ao ponto de elaborar até modelos de exame de consciência e listas de culpas.
Aqui está a declaração geral para esta última:
“A confissão compreende duas partes. A primeira que se declarem os pecados; a segunda, que se receba a absolvição ou o perdão do confessor como se fosse do próprio Deus e não se duvide, mas se acredite firmemente que assim os pecados são perdoados, diante de Deus no céu".
Para o "sacramento do altar" Lutero é claramente "católico", pois se opunha firmemente ao reformista suíço Zwinglio que interpretava apenas simbolicamente a presença de Cristo no pão e no vinho da Eucaristia: “É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, que Ele mesmo deu a nós cristãos para ser comido e bebido sob as aparências do pão e do vinho”.
Em continuidade editorial com o texto a que nos referimos até agora, devemos lembrar que no mesmo ano, 1529, Lutero também apresentava um Catecismo Maior mais amplo e articulado, seguindo o mesmo enredo temático do Catecismo Menor.
Se este último foi traduzido para o italiano já a partir do século XVI, o Maior foi traduzido e comentado pela primeira vez em italiano pelo próprio Fulvio Ferrario, que também é professor de dogmática teológica. Nessas páginas se consegue entender melhor a perspectiva hermenêutica que Lutero imprimiu nos componentes radicais da fé e da doutrina cristã, tanto que chegou a confessar, evocando outro seu famoso tratado: “Não há nenhum dos meus livros em que realmente me reconheço, senão aquele sobre o Servo arbítrio e o Catecismo”. O certo é que, entre as Obras Escolhidas de Lutero que a editora Claudiana vem propondo há tempo, os dois catecismos são uma referência capital e um grande atestado do ardor pastoral do Reformador pela alfabetização religiosa do povo cristão.
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Dois catecismos de grande clareza. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU