"A história não chega ao fim com a Inteligência Artificial - IA, nem no sentido do colapso nem do idílio. Na década passada, a massificação das mídias sociais foi o terreno da eclosão das revoluções 2.0, como a revolução do Twitter, no Egito, ou Junho de 2013, no Brasil, que contou com ferramentas disponibilizadas pelo Facebook", advertem os pesquisadores.
Como as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras serão transformadas com a incorporação da Inteligência Artificial – IA no mundo do trabalho é o "x da questão" a ser investigado neste momento em que a aceleração tecnológica tem modificado não só o trabalho, mas também diversas esferas da vida humana. "Essa é a pergunta que menos temos ouvido ser formulada a respeito da incorporação massiva das tecnologias de IA no cotidiano das atividades, que incluem o trabalho assalariado, mas, evidentemente, se referem a horizontes muito mais amplos de ação. Para nós, a questão de fundo de toda essa discussão é renitente: como compreender as condições em que já estamos de tal forma que essa compreensão sirva para articular lutas, para reconhecer as transformações por que passam hoje, e por onde as lutas escoam nessas novas condições. Isto é, como as novas configurações tecnológicas reconfiguram as lutas, e como as lutas podem avançar por sua vez reconfigurações do presente", sublinham Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte, integrantes do podcast Chapação Maquínica, na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Neste 1º de maio, Dia do Trabalhador, os pesquisadores refletem sobre os efeitos da aceleração tecnológica no mercado de trabalho e propõem uma terceira via de olhar para esta realidade, em contraposição aos dois polos do debate: o "deslumbramento-diurno-iluminista", apregoado "por vertentes progressistas eufóricas que não enxergam futuro nas lutas dos trabalhadores que não estejam alinhadas às tendências industriais e pós-industriais", e o "depressivo-noturno-romântico", "ocupado por críticos românticos ou antimodernos, que desde as fornalhas da revolução industrial vaticinam criaturas monstruosas e moinhos satânicos tomando o lugar dos seres humanos e suas relações concretas". Essa polarização, pontuam, "própria da modernidade, funciona como um transtorno ciclotímico: o primeiro momento tecnutópico da adesão incontida ao desenvolvimento das tecnologias é seguido pelo momento tecnofóbico, marcado pela percepção agônica e a sensação de dilaceramento ante perturbações e mazelas técnicas".
Outra via de examinar o impacto das máquinas no mundo do trabalho, asseguram, consiste em recolocar o problema, uma vez que os dois polos "tropeçam na mesma pedra". "O problema não está, propriamente, nas tecnologias em si (meios de produção), mas no sistema de organização da sociedade e do trabalho (modo de produção), que compele as máquinas a serem dispostas em oposição ao humano, ou seja, voltadas a comprimir os salários e aumentar a taxa de exploração por meio do mais-valor relativo". Outra parte da abordagem do problema, acrescentam, "depende de políticas públicas desenhadas para amparar os trabalhadores sem as mesmas condições de adaptação, políticas voltadas a compensar os desarranjos estruturais, com a redução da jornada de trabalho e mais direitos".
Se, no futuro próximo, reiteram, os empregos desaparecem numa "velocidade impossível de ser acompanhada por políticas públicas de requalificação do capital humano", será fundamental investir em políticas de renda. "A aparente parada econômica, seguida do que Giuseppe Cocco chamou de sua 'aceleração algorítmica', que vimos acontecer durante os lockdowns da pandemia de covid-19, mostrou que não estamos nem um pouco preocupados com o trabalho, mas com a renda. Ela é a questão transversal que atravessa as lutas do século XXI, que continuam a ser um conjunto de lutas biopolíticas num meio tecnopolítico, em que vida e técnica se atravessam, constituem e bloqueiam mutuamente", concluem.
Bruno Cava em entrevista no IHU (Foto: Cristina Guerini | Acervo IHU)
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (YouTube). É autor de A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e de A vida da moeda: crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.
Carolina Salomão (Foto: UniNômade)
Carolina Salomão é graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre e doutora em Psicologia pela mesma universidade. É pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Memória, Subjetividade e Cultura (NIMESC/PUC-Rio) e pesquisadora colaboradora da revista Lugar Comum (Rede Universidade Nômade). Atualmente, faz parte do Laboratório Território e Comunicação (LABTeC/UFRJ) que integra, de forma mais ampla, a Rede de Laboratórios Moitará.
Murilo Duarte (Foto: Arquivo pessoal)
Murilo Duarte é graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, leciona na Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e integra a rede de copesquisa Uninômade da UFRJ. É autor de Filosofia Black Bloc (Circuito, 2020).
IHU – Que novos desafios o uso da Inteligência Artificial – IA lança para o mundo do trabalho, especialmente para a vida dos trabalhadores
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – O desemprego tecnológico é um problema teórico e político abordado desde os primeiros economistas políticos clássicos. Está na obra, por exemplo, de David Ricardo, na 3ª edição de “Princípios de economia política e tributação” (1821), em seu capítulo 18, intitulado “Sobre o maquinário”. O pano de fundo das análises do economista inglês é a insurreição ludita. Ricardo não cita, mas a onda de protesto dos trabalhadores na Inglaterra da primeira Revolução Industrial é o motor oculto das reflexões sobre solucionar a destruição permanente de postos de trabalho. Nas duas primeiras décadas do Oitocentos, aconteceram sucessivos quebra-quebras provocados por operários têxteis descontentes com suas substituições por máquinas de tear. Os sabotadores e vândalos ficaram conhecidos por luditas, ou seguidores de Ned Ludd, um herói mítico da causa dos trabalhadores que perdiam a função.
Ao longo de duzentos anos desde o início da mecanização do trabalho manual em larga escala, o desemprego tecnológico foi tratado como uma problemática diacrônica, no jogo entre curto e longo prazos. Economistas neoliberais ou neoclássicos tendem a enxergá-lo como uma mazela somente no curto prazo. Ou seja, a destruição e a obsolescência de vagas de trabalho causadas pelas evoluções da técnica traria desequilíbrios apenas momentaneamente. A intervenção do governo, portanto, é cabível apenas para atenuar o ciclo da inovação, remediando os trabalhadores que são pegos de surpresa pela franja de obsolescência. Segundo essa linha de raciocínio neoliberal, o governo deve compensar tais disfunções por meio de políticas de requalificação das capacidades, realizando o aggiornamento da força de trabalho até alcançar o patamar exigido pelas tecnologias emergentes. Com isso, os tornados obsoletos e ultrapassados poderiam ser retornados ao espaço da concorrência, sem retardar os ganhos em produtividade.
Nesta lógica, no longo prazo, a interação das forças de mercado exerceria uma pressão pelo reequilíbrio do mundo do trabalho, recriando vagas na fronteira da inovação, em empregos ligados às máquinas e técnicas. O mesmo número de postos de trabalho destruídos pela tecnologia reapareceria na outra ponta, requalificados e mais produtivos. É por isso, olhando o quadro geral do longo prazo, que os economistas neoclássicos e neoliberais falam na existência de uma “falácia ludita”: para eles, quebrar as máquinas ou temer as tecnologias seria um erro, pois o aumento da produtividade favorece o conjunto geral da sociedade e, no fim das contas, serão recriados postos mais qualificados, bem remunerados e gratificantes, onde os trabalhadores afetados poderão ser reempregados.
Outro bloco de posicionamentos e análises pode ser encontrado nos críticos da economia política capitalista. Para eles, o desemprego tecnológico é estrutural, isto é, o problema não se resolve pelas dinâmicas da concorrência nem mesmo no longo prazo, pois subsiste uma descompensação tendencial: os avanços da técnica apenas aumentam a taxa de exploração do trabalho humano, favorecem uma minoria cada vez menor e mais rica, com os meios políticos e o acúmulo de capital para apropriar-se da renda derivada do aumento de produtividade, ao passo que massas cada vez maiores de trabalhadores são escanteadas do sistema produtivo, relegados a bolsões de miséria e violência à margem dos ganhos.
No século XXI, em que vivemos um novo verão da IA, o ritmo dos impactos ao mercado de trabalho adquiriu uma feição exponencial, quer dizer, há um processo de retroalimentação com retornos acelerados, que simplesmente colapsou a relação diacrônica entre curto e longo prazos. Pela primeira vez desde a Revolução Industrial está em vigor a Lei dos Retornos Acelerados, como formulado pelo futurista Ray Kurzweil na década 1990. Isso significa que as políticas compensatórias orientadas pelo curto prazo (a renda mínima ou o seguro-desemprego) ou políticas mais estruturais, orientadas pelo longo prazo (renda universal, quebra de paradigma do trabalho) não conseguem responder às mudanças na velocidade dos problemas que aparecem. Essa rapidez dissolvente pode não ser mais capaz de ser reabsorvida pela reforma do sistema, o que nos coloca numa situação de grandes incertezas, como também potencialidades.
Pensemos na emergência do ChatGPT em suas últimas versões, 3.5 e 4.0, que já põem em risco o desemprego tecnológico de uma larga fração de trabalhadores, desta vez ligados ao capital cognitivo ou ao cuidado. Imaginemos os efeitos vindouros, quando os veículos autônomos se tornarem comercializáveis a baixo preço, suprimindo a renda de milhões de motoristas e entregadores de aplicativos que vão ser substituídos.
IHU – Como fugir de uma visão extremamente pessimista, de que a IA será catastrófica para o mundo do trabalho, gerando desemprego e crises econômicas e sociais? Como fugir também de uma visão ingênua, de que a IA vai emancipar e libertar o homem do trabalho, assegurando qualidade de vida equânime para todos?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Voltemos à história da primeira Revolução Industrial. A indústria têxtil significou um aumento da produtividade cuja consequência direta foi a redução do preço das roupas, ampliando os mercados potenciais de consumidores. Muito mais gente teve acesso a mais e melhores vestimentas. Isto alargou o espaço para a formação de um proletariado com poder aquisitivo, paulatinamente transformado em consumitariado.
Os efeitos na organização social e nos comportamentos foram devastadores ao longo do século XIX. Um preço menor significa, na prática, um aumento relativo do poder de compra dos trabalhadores, um ganho indireto do salário. O aumento do salário não se reduz a um quantum maior de ordem econômica, como também um incremento dos desejos e necessidades, a formação do que Marx chamava de “indivíduo social”, isto é, atravessado pela cooperação social na medida em que se apropria de mais objetos. A transformação precipitada pela revolução industrial é, sobretudo, subjetiva ou antropológica, criando “novos sujeitos para novos objetos”.
Outro exemplo é a telefonia celular no Brasil, que chegou em escala nos anos 1990, com a abertura do mercado à globalização de um marco regulatório de incentivo. Antes, a linha telefônica era artigo de elite, declarado no imposto de renda, e hoje o aparelho celular está massificado. Em geral, o aumento da produtividade implica o maior acesso e a inclusão.
Essa passagem, entretanto, não resolve tudo. Pelo contrário, ela desloca o antagonismo e muda a configuração da exploração e do mecanismo do lucro, gerando novos problemas. Por exemplo, a entrada da Uber no mercado brasileiro em 2014 baixou os preços do transporte privado e contribuiu para democratizar a mobilidade urbana nas metrópoles, onde o transporte coletivo costuma ser mal gerido e ele próprio objeto de toda sorte de exploração e desvios. A chegada da Uber gerou uma reação de tipo ludita da parte dos taxistas organizados, que realizaram piquetes e greves para frear a transformação. No final, o próprio táxi e o trabalho do taxista acabaram sendo uberizados, adaptando-se à tendência.
O drama é que a redução dos preços, a criação de vagas de trabalho autônomo e o aumento geral da mobilidade acontecem ao custo da precarização do trabalho (o motorista ou entregador) e da concentração da rentabilidade num conjunto pequeno de plataformas, como a Uber ou iFood. O mesmo vale para a uberização da logística, com empresas como a Amazon dominando o mercado, o que não exclui as vantagens trazidas ao consumidor: fretes mais econômicos e ágeis.
O mesmo vale para os saltos das tecnologias de Inteligência Artificial: o aumento exponencial da produtividade não significa, por si só, uma redução das desigualdades, na medida em que sobre o produto aumentado se estabelece uma luta. Por mais que, realmente, a IA contenha usos potenciais em ampliar e baratear serviços de saúde, educação ou infraestrutura, nada garante que os ganhos de produtividade não sejam apropriados por uma minoria, melhor posicionada devido a seu capital acumulado ou relações de clientela com os governos. É de suspeitar-se, na década de 2020, quanto ao efeito concentracionário, o surgimento de um “capitalismo de plataforma”, que acompanha e pode se agravar com a “corrida ao ouro” da IA. Isto não significa, em contrapartida, que a tendência seja unívoca, quer dizer, que estejamos condenados a agravar as chagas sociais e colapsar a economia por força de uma compulsão estrutural – como um grande Moloch que nos devora à semelhança do poema de Ginsberg, o pressuposto maligno na maioria das leituras tecnofóbicas da atualidade, como de um Evgeny Morozov ou Eliezer Yudkowsky.
Existe a outra subjetividade no interior da relação do capital, que é a subjetividade. A outra face da moeda consiste no empoderamento que as novas tecnologias possibilitam aos trabalhadores e suas redes de organização, suas formas de mobilizar e protestar, uma temática que também remonta aos anos 1990, prefigurada ao longo do ciclo de lutas do altermundialismo.
Se, por um lado, modelos gerativos de linguagem, como ChatGPT, vão tornar milhões de vagas de trabalho dispensáveis, por outro lado, eles empoderam os usuários com novas potências de conhecimento e ação, que podem ganhar outras aplicações. A história não chega ao fim com a IA, nem no sentido do colapso nem do idílio. Na década passada, a massificação das mídias sociais foi o terreno da eclosão das revoluções 2.0, como a revolução do Twitter, no Egito, ou Junho de 2013, no Brasil, que contou com ferramentas disponibilizadas pelo Facebook.
É verdade que movimentos sociais antigos tendam a desqualificar tais experiências, mas eles próprios buscam atualizar-se com as mídias sociais, sob pena da obsolescência. Existe um processo ainda mais abrangente de empreendedorismo potenciado por essas transformações das comunicações e das organizações que não se resume à precarização e cansaço. Claro que, num segundo momento, as plataformas e algoritmos são reconfigurados para recolocar o gênio de volta à lâmpada, com a monetização das plataformas, a criminalização de condutas na internet e o bloqueio da cultura do compartilhamento, sobretudo em países com regimes autoritários. Dito isso, como encarar a natureza exponencial dos impactos decorrentes da IA? Por exemplo, o que vão fazer os trabalhadores de Uber ou delivery quando a entrega se tornar automatizada?
Somente uma plataforma das plataformas, do lado do trabalhador precário, das autonomias em movimento no interior do mercado, pode estar à altura desta conjuntura desconcertante em que a IA está chegando ao mundo do trabalho. Aqui posso apenas sugerir um eixo de recomposição das lutas: o programa da Renda Universal, começando pela renda básica da cidadania. A luta da renda universal e da renda de cidadania fortalece e serve de anteparo para as demais mobilizações e coletivos políticos, um terreno de repolitização do trabalho em tempos de aceleração tecnológica, de maneira semelhante como tinha sido, na era do fordismo-taylorismo industrial e do New Deal, a luta pelo “salário social” ou welfare state.
IHU – De que modo a IA pode ser um instrumento para requalificar o trabalho e transformar as atividades de trabalho?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – O esclarecimento sobre a condição degradante, extenuante, de um ambiente ou de função só se dissemina quando se compara esse mesmo trabalho com o efetuado pelas máquinas. No passado, o trabalho era considerado inferior quando podia ser executado por escravos, ainda que fossem escravos domésticos ou de ganho. Não era exatamente o fato de os trabalhos serem manuais ou desqualificados o que definia a sua indignidade, mas, sim, poderem ser realizados por escravos, mesmo que fossem músicos para entretenimento das elites, ou amas especializadas no ramo do cuidado. Os escravos eram vistos como máquinas biológicas com uma variedade de capacidades.
Quando são introduzidas em grandes proporções nas economias industrializadas ou centrais, as máquinas são vistas como escravos mecânicos, enquanto o trabalho passa a ser, como regra, assalariado, ou seja, que contrata livremente seu trabalho.
Ocorre que a crítica ao novo trabalho “livre”, digamos, em Marx, não se dirige apenas à falsa liberdade contida na relação de trabalho, como também nas condições mecânicas da fábrica: o trabalhador industrial é escravo porque é tratado como maquinário. As máquinas propiciam, assim, um autoesclarecimento dos próprios seres humanos quanto ao regime de trabalho a que são constrangidos a aceitar e no qual viver.
Tomemos dois exemplos contemporâneos dessa discussão: o ascensorista e o cobrador de ônibus. A questão política crucial é compreender se o cobrador e o ascensorista são “libertos” do trabalho pouco qualificado, libertos para outras funções mais gratificantes e remunerações melhores, ou se são “libertos” para a pobreza, para se verem constrangidos a venderem ainda mais barato suas capacidades e potencialidades. A resolução desse dilema se dá em diversos níveis: mercado, governo e lutas.
Em parte, os mecanismos de mercado tendem a gerar novas vagas na outra ponta, mais desenvolvidas, mas esses novos postos tendem a absorver apenas a camada mais atualizada, dinâmica e, em geral, mais jovem da população economicamente ativa. O mesmo vale para a próxima geração de tecnologias emergentes em IA, se pensarmos como se multiplicam novas funções ligadas à gestão e desenvolvimento de aplicativos e plataformas, ou então nas atividades de marketing, ou as mais propriamente técnicas.
Outra parte da abordagem do problema depende de políticas públicas desenhadas para amparar os trabalhadores sem as mesmas condições de adaptação, políticas voltadas a compensar os desarranjos estruturais, com a redução da jornada de trabalho e mais direitos. Seria preciso ainda assimilar os impactos e as potências das tecnologias de conhecimento, incorporando novas ferramentas para o aprendizado e sua aplicação prática.
O ChatGPT, por exemplo, esclarece o sentido do trabalho escolar ou acadêmico à luz da subjetividade das gerações que já nasceram no mundo das mídias digitais: trabalho maçante, repetitivo, lento e mecanizado. Em certo sentido, o ChatGPT intercepta o modo de funcionamento dos jovens estudantes, propiciando a desautomatização, desmecanização de determinadas capacidades, mais inventivas e pouco valorizadas segundo a lógica produtivista, focada no quantitativo. O movimento da Slow Science, que critica o imperativo publish or perish, só tem a se fortalecer se souber aproveitar algo como o ChatGPT, ao elucidar, em seu uso mesmo, como parte da lógica de publicação se tornou uma rotina quantitativista em moto-contínuo.
IHU – Como a ação política pode nos fazer sair das duas posições que marcam o debate em torno do impacto da IA no mundo do trabalho: ou a catástrofe ou o mundo idílico? Nesse sentido, qual a centralidade e o papel da política e das lutas sociais nesta discussão e os desafios de engajar as pessoas em lutas por melhores trabalhos e novos regimes de trabalho?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – O universo do maquinismo moderno é atravessado por dois polos que, a título de simplificação, podemos dividir em deslumbramento-diurno-iluminista e depressivo-noturno-romântico. Essa polarização própria da modernidade funciona como um transtorno ciclotímico: o primeiro momento tecnutópico da adesão incontida ao desenvolvimento das tecnologias é seguido pelo momento tecnofóbico, marcado pela percepção agônica e a sensação de dilaceramento ante perturbações e mazelas técnicas.
O primeiro polo é composto por vertentes progressistas eufóricas que não enxergam futuro nas lutas dos trabalhadores que não estejam alinhadas às tendências industriais e pós-industriais. Já o segundo polo é ocupado por críticos românticos ou antimodernos, que desde as fornalhas da revolução industrial vaticinam criaturas monstruosas e moinhos satânicos tomando o lugar dos seres humanos e suas relações concretas.
Em meados do século XXI não é diferente, tais matizes reaparecem na forma de uma polarização entre grupos de cientistas e empresários favoráveis e contrários à aceleração dos resultados obtidos pelas últimas versões dos chatbots de IA. Uns, entusiasmados pela visível aceleração dos resultados obtidos – um evento da percepção; os outros, clamando por moratórias e congelamentos de pesquisas e desenvolvimentos. No entanto, além de integrarem um mecanismo bipolar entre euforia e melancolia, ambos os grupos são simétricos quanto à colocação ruim do problema. Ambos tropeçam na mesma pedra. O problema não está, propriamente, nas tecnologias em si (meios de produção), mas no sistema de organização da sociedade e do trabalho (modo de produção), que compele as máquinas a serem dispostas em oposição ao humano, ou seja, voltadas a comprimir os salários e aumentar a taxa de exploração por meio do mais-valor relativo.
O agenciamento humano-máquina, originário da aparição da espécie humana (antes tecnogênese do que antropogênese), é assim reduzido à figura da contradição. Mas o caso não é quebrar as máquinas como finalidade, e sim reapropriar-se delas, na gênese e no uso, contra o sistema mesmo. Nesse sentido, mesmo os luditas históricos, na Inglaterra do começo do século XIX, não quebravam as máquinas como um fim em si mesmo, como se preferissem um retorno romântico à vida comunitária e naturalista. O movimento que foi das sabotagens localizadas a um caráter insurrecional, protagonizado por operários anônimos que compartilhavam o pseudônimo Ned Ludd, não pode ser confundido com propostas tecnofóbicas de recuo a um socialismo primitivo ou a uma natureza mistificada. Era uma luta antissistêmica, como descrito por Gavin Mueller, em seu livro sobre a temática, que não por outro motivo contribuiu para fortalecer o grande movimento do proletariado industrial no século XIX.
Ao fim e ao cabo, as lutas dos trabalhadores determinam a banda flutuante de conquistas de direitos e salário, ao passo que forçam o sistema a reestruturar-se, acelerando a dinâmica de mecanização e automação, como uma estratégia capitalista. As máquinas embutem vitórias passadas dos trabalhadores e se tornam o terreno de um antagonismo perene.
IHU – Como as lutas de trabalhadoras e trabalhadores se transformam com a incorporação da IA no mundo do trabalho?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Esse nos parece o “x da questão”. E essa é a pergunta que menos temos ouvido ser formulada a respeito da incorporação massiva das tecnologias de IA no cotidiano das atividades, que incluem o trabalho assalariado, mas, evidentemente, se referem a horizontes muito mais amplos de ação.
Ainda que não tenhamos uma resposta definitiva para isso, porque essa entronização da IA no circuito da atividade ainda é muito recente – quer dizer, nos encontramos numa fase exploratória, experimental –, podemos projetar uma transformação das lutas. Façamos o exercício de olhar pelo retrovisor. Como a entronização da técnica da escrita produz uma operação política e existencial na polis grega? E nos recordamos que a escrita era vista com certa suspeita. A inscrição da linguagem em suportes materiais levantava a suspeita de uma involução da capacidade mnemônica; implicava uma espécie de traição à Mnemosýne, a deusa que corporificava a memória, mas também mãe das musas que inspiraram os poetas, ao mesmo tempo em que era a fonte de autoridade das palavras dos reis. Quer dizer, o fato hoje banal de conservar palavras através do tempo em suportes materiais estáveis colocava em jogo toda uma compreensão de si e do mundo, uma mitologia e uma cosmologia, mas também as dimensões da produção coletiva do sensível, bem como a palavra portadora de autoridade.
Se saltarmos à emergência da imprensa, e pensarmos do século XV da nossa era em diante, veremos que em torno dela nascem progressivamente noções como o direito de autor e a propriedade intelectual. Mais tarde, isso terá repercussões na formalização desses mesmos direitos na esfera da música, gerando uma destruição do modo de vida vagabundo dos menestréis. À medida que a vida passava a girar mais em torno dos espaços urbanos nascentes, e menos em torno das itinerâncias que a dispersão da vida agrícola requeria, os cantores e músicos se especializam e sedentarizam. Passam a compor orquestras privadas de reis e aristocratas que mais tarde serão levadas a público. Na medida em que as classes burguesas se fortaleciam, aparecia a dimensão imaterial dos trabalhos de composição musical. E isso serviu por muito tempo (ainda hoje serve) como um mecanismo muito eficiente para separar o autor dos rendimentos de sua obra, tornando possível que um compositor possa transferir, por exemplo, a uma editora musical (hoje, a um “selo”) os direitos imateriais de reprodução de uma obra. A imprensa terá um papel fundamental nisso, afinal são as editoras de partituras que primeiro abocanham os direitos de imprimir partituras de compositores célebres. A chamada indústria cultural levará isso a um outro nível: a uma massificação das obras de arte – passando das partituras à tecnologia de gravação musical – que faz com que os preços caiam, gerando, ao mesmo tempo, economia de escala e acesso sem precedentes à cultura.
Esse processo, que os frankfurtianos enquadraram pesarosamente como a perda da aura da obra de arte, que passa a tomar a forma vil da mercadoria infinitamente reprodutível, poderíamos ver como uma fabulosa abertura das franjas então constritas do acesso à cultura. Que isso imponha certa homogeneidade pela economia de escala, também significa que se dá um acesso à dimensão espiritual de uma cultura (por mais industrial que seja) que gera vanguardas aberrantes, críticas internas, dissoluções de forma, hibridações estéticas, selvagerias sensíveis. As lutas mudam quando uma geração pode ouvir Jimi Hendrix ou Patti Smith. Quando os brancos do Sul escravocrata americano podem ouvir o jazz negro (ainda que Adorno não goste). Quando a juventude pode ir de Villa Lobos, Guerra Peixe e Tom Jobim, a Mc Carol, Gloria Groove, ao reggaeton e à pisadinha.
Com a IA se passa a mesma coisa. As lutas mudam quando se dá acesso (ainda que parcial e restrito) a um naco volumoso de bilhões de dados que foram produzidos pelo corpo da própria multidão a essa mesma multidão que os produziu. Aos poucos, nos aproximamos de um General Intellect aumentado e exponencializado pela IA, que prolonga a inteligência em novas direções e em novos ritmos. As revoluções do precariado cognitivo urbano e da infraestrutura das redes sociais nos trouxeram as primaveras globais. Elas foram mortas no ovo e restauradas, como um recuo da maré. Quem sabe que levantes um Intelecto Geral aumentado pela IA e exponencializado por sua capacidade de processamento nos preparam? É no antagonismo maquínico, no corpo a corpo entre as multidões de usuários e a comunhão capitalista que condiciona as máquinas, que esses levantes já podem estar sendo testados no silêncio e na sombra.
IHU – No que consiste a ideia de “chapação maquínica” em Félix Guattari? Como essa ideia pode ser explicada no nosso tempo e, em especial, com relação às transformações do mundo do trabalho desde a incidência da IA?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Nos anos 1980, Guattari sugeriu a noção de chapação maquínica a partir de uma definição ampliada de droga, de doping. É uma noção interessante porque parece dar conta das ambiguidades dos agenciamentos sociotécnicos em que já estamos. Ou melhor, é uma noção que adiciona a esses agenciamentos, e faz ver, a dimensão afetiva inescapável que nos relaciona nas ambiguidades desses meios. O maquinismo traz um aporte junkie, que é também um aporte existencial.
Quando usamos a expressão “brincar com fogo” é porque o fogo – uma das conquistas técnicas que foram fundamentais para o processo de hominização e civilização, para o advento da própria cultura – é uma chapação. É só ver como as crianças pequenas se iluminam quando veem uma caixa de fósforos, um isqueiro, a tela de um celular. Isso é muito mais do que uma mera fascinação prometeica. É uma abertura do corpo, do sistema cérebro-mão-instrumento, para outros possíveis. Para prolongamentos da ação que o advento de técnicas permite. E isso é também um implicar-se dos corpos numa luta existencial pelos sentidos e pelos usos. Os chapados maquínicos não são apenas os junkies, absortos e absorvidos nas telas amoled dos seus celulares. São todos aqueles que alavancam nas múltiplas técnicas, cujo desenvolvimento nossas culturas conheceram, formas impensadas de ação, prolongamentos do novo.
Mas é claro que esse conceito não é apenas positivo. Uma vez que as técnicas estejam incorporadas e fixadas a agenciamentos capitalísticos, elas podem se transformar em meios de conduzir essas ações, estimulando umas e inibindo outras. Podem gerar esquematismos, maneirismos, axiomáticas em que os possíveis que as técnicas liberam, os agenciamentos capitalísticos, fixam, moderam, limitam, castram. Deixam evoluir apenas até certo ponto.
A chapação não serve para explicar transformações, mas ajuda a entender a ambiguidade dos aspectos existenciais das transformações que enfrentamos. Ajuda a entender que estamos brincando com fogo, e que isso pode ser perigoso, sim – mas mais perigoso do que enfrentar esse perigo politicamente são as recomposições de subjetividade que se arvoram no medo e na inação.
As fobias induzem um pânico que não apenas imobiliza, mas desmobiliza. As chapações são um antídoto não menos perigoso, não menos sujeito ao desastre ou à abolição, mas mais consciente e aberto a experimentações selvagens das condições existenciais que as transformações infundem. A chapação não apela a qualquer romantismo junkie. Antes, reinsere o junkie como a condição ambígua nas quais a nossa existência se decompõe ou se recompõe com os agenciamentos sociotécnicos. Ela é um chamado para a ação experimental e para a experiência da ação – aquilo que os romantismos humanistas ou os pânicos dos melodramas tecnófobos interditam de antemão.
IHU – Desde o final do ano passado, quando foi lançado, o ChatGPT tem suscitado muitos debates. Na opinião de vocês, qual a questão de fundo de toda essa discussão? Que pontos esses debates têm levantado e silenciado?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Para nós, a questão de fundo de toda essa discussão é renitente: como compreender as condições em que já estamos de tal forma que essa compreensão sirva para articular lutas, para reconhecer as transformações por que passam hoje, e por onde as lutas escoam nessas novas condições. Isto é, como as novas configurações tecnológicas reconfiguram as lutas, e como as lutas podem avançar, por sua vez, reconfigurações do presente.
Algumas dessas lutas hoje estão ligadas a formas do que Gavin Mueller chamou de high-tech luddism (ludismo de alta tecnologia). Em sua análise dos movimentos de quebra-quebra de máquinas de tecer e frameworks têxteis na Inglaterra dos anos 1811-1812, fica claro que o comportamento de quebrar as máquinas não tinha um pingo sequer de tecnofobia. Não era uma revanche romântica do homem e da sua autenticidade (natural, linguística ou neuropsíquica) contra a suposta artificialidade da máquina. Nem uma vingança do trabalho manual contra o maquínico.
Convencidos de que as máquinas portadoras de ferramentas (como chamava Marx) eram detratoras das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, os ludistas se utilizavam do quebra-quebra de máquinas como uma tática entre muitas outras (cartas, ameaças, assédios aos donos de manufaturas, pressões políticas variadas, instauração de um ambiente de pânico iminente etc.), como um meio negocial constituinte de direitos. Isso fez com que os luditas fossem farta e violentamente reprimidos, prescrevendo-se a pena capital para o quebra-quebra de máquinas. Mais tarde, o movimento foi traído, e seus sequazes identificados, presos e executados, pondo fim à agitação.
O que Muller enfatiza corretamente, mas extrapola para o high-tech contemporâneo (e isso impõe alguns problemas a nosso ver), é que o ludismo visava a uma composição de classe. Quebrar máquinas era uma tática de composição da subjetividade política – isto é, quebrar máquinas também é uma chapação maquínica de outro tipo, mas ainda assim uma chapação maquínica... Não é por acaso que filmes como “Um dia de fúria” (Falling Down) fazem tanto sucesso. Porque eles são o esquematismo sensível dessa chapação ludita contra toda uma formação social (não propriamente contra as máquinas). Nem é casual que haja modelos de negócios, como o americano “The Rage Cage” (um espaço fechado em que os usuários podem ingressar com tacos de baseball, martelos e outros instrumentos contundentes para destruir objetos diversos, inclusive objetos técnicos), sejam construídos em torno da dissipação emocional e afetiva em atividades furiosas de depredação, mas que ocorrem em ambientes controlados e domesticados. Get your rage on! é o slogan deles.
Nos alongamos nos exemplos porque nos parece que nenhuma discussão sobre a linguagem natural, a autenticidade do humano, a diferença das inteligências, ou sobre os controles como um efeito do determinismo econômico proveniente de um capitalismo de extração puro e simples, seja realmente o fundo do problema. Eles são mais a poeira da batalha. A batalha mesma consiste nessa brecha que as lutas dos luditas exprimiram bem, entre a profusão da emoção política e a tática da composição da subjetividade de classe, mas que hoje se colocam de outras formas – aquém e além da individuação de classe, e mais próximos da formação de coletivos em que o humano é um elemento entre outros (o ecológico, o tecnológico, o geológico etc., também ajudam a reticular essas composições de subjetividade).
O problema é identificar os antagonismos maquínicos que atravessam a emergência dessas novas tecnologias. Esse é o problema das redes sociais, que conheceram e alavancaram as primaveras globais. Esse é o problema do ChatGPT, como poder e acesso à percepção variável do Intelecto Geral distribuído. Esse é o problema quando os perfis de um casal agenciam miríades de coletivos de usuários críticos, e sua plusvalia de amplificação reticular, em torno do combate ao financiamento involuntário de sites que promovem a desinformação e o discurso de ódio – e então se afirmam um movimento de consumidores (o caso Sleeping Giants Brasil).
Ainda é a composição de classe? Talvez, muito provavelmente; mas ela já não se funda na identidade laboral, e sim na acelerada dispersão técnica do trabalho (remunerado e não remunerado) por todo o campo social. É interessante ver como as críticas mais regressivas às tecnologias se aplicam arduamente em descrever como elas intensificam o trabalho, e produzem conceitos poderosos, como o ghost work, a human cloud, o consumer labor; mas esses mesmo críticos não conseguem produzir conceitos tão poderosos quanto à intensificação das lutas nos meios técnicos.
A questão, para nós, passa por aí. A intensificação das lutas. Como elas se reconfiguram. E como elas se desprendem de uma profusão emotiva que recompõe as formações subjetiva – chamemos isso de classe (num conceito ampliado de trabalho e transindividual de subjetividade), de multidão ou de grupos de usuários (humanos e não humanos, singularidades ou meios estruturados).
IHU – Por que o ChatGPT tem sido quase que como inaugural aos usos da IA e, a partir disso, tem provocado tantas reações, como se antes não tivéssemos contato com outras ferramentas com tradutores de idiomas on-line, GPS, navegadores e uma série de aplicativos ligados à saúde e ao bem-estar?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Já dissemos em algumas oportunidades diferentes (em texto e em podcast) que o ChatGPT é um advento, é um evento de percepção. Um acontecimento repentino. Mais ou menos como alguém que descobre que “A carta roubada” que procurávamos em vão estava em cima da mesa o tempo todo.
Mas um evento de percepção não é só um evento de reconhecimento de uma realidade que já se fazia presente. Ele implica um colapso e uma reorganização da sensibilidade geral precisamente pelo que tem de inédito, de novo, e que produz esse efeito massivo do “dar-se conta”. Um evento tem sempre duas faces: ele nos faz reconhecer um presente já predisposto, algo que corre no nosso tempo, mas ele também escapa. Quer dizer, puxa o tapete da nossa percepção, prova a obsolescência da nossa sensibilidade, e é precisamente isso que nos faz perder a vidência do que está se passando.
O que víamos não é mais o que vemos, mas o que vemos tampouco é tudo o que nos aconteceu. Então, há como que um desafio cognitivo, sensível, mas também etológico e comportamental, de corresponder ao evento que abalou a nossa percepção. O que não é tentar chegar ao fundo dele, mas conseguir cruzar algumas das suas linhas definidoras. O que tentamos fazer é traçar algumas dessas linhas, porque percebemos que a crítica pela crítica (romântica ou negativa) apresenta sérias dificuldades em fazê-lo, e isso desde muito antes do ChatGPT.
Não se pode pensar por condicionamento, e as críticas que em geral rondam as novas tecnologias são, em grande parte, formas de condicionar o sensível e o cognitivo, de impedir ou de bascular o pensamento. Taxonomias recursivas que colocam quem as repete na esfera confortável dos bem-pensantes. Isso vai formando uma massa crítica que, embora tenha os méritos de mapear muitos dos perigos, é ineficaz quanto a perceber as deserções e alternativas que a ambiguidade dos agenciamentos tecnossociais contêm. Para ficarmos com o exemplo do ChatGPT: é claro que ele pode ser uma ferramenta de intensificação da exploração do trabalho, mas ele não pode sê-lo sem ter, ao mesmo tempo, de distribuir poder de processamento de linguagem de maneira multitudinária, nas mãos das pessoas, que podem fazer dele usos comezinhos e usos divergentes e selvagens. Redações podem usar o ChatGPT para incrementar suas margens de lucro, mas há nações de redatores freelancers e precários, por exemplo, alavancando sua renda com o incremento de processamento de linguagem do ChatGPT.
IHU – Em que medida podemos compreender a IA como uma tecnologia de propósito ou uso geral, na sigla em inglês GPT (General Purpose Technologies)? Nesse sentido, o que diferencia adventos como a luz elétrica, a mecanização, por exemplo, dos algoritmos e IA ligados às tecnologias comunicacionais?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – É preciso problematizar essa ideia de uma inteligência artificial de uso geral, que se assemelha à busca quimérica por uma mathesis universalis. Toda inteligência é circunscrita aos usos e práticas na qual se implica, nos corpos em que se impregna e, nesse sentido, não existe uma inteligência absolutamente genérica. Por exemplo, quando você aprender a surfar, aprende uma determinada relação dinâmica entre diversos pontos de seu corpo, certas relações de repouso e movimento nas várias interações entre as partes do corpo e as superfícies igualmente moventes e plásticas ao redor: a prancha, a água, o próprio ar. O pensamento não se dá como uma consciência clara e evidente de um sujeito unificado, mas por meio de uma faixa de micropercepções que se articulam sem centro irradiador.
O aprendizado não acontece à frente da mente, como um processo de manipulação de símbolos, mas às costas, na forma de um inconsciente multíplice, uma consciência distribuída e rigorosamente incorporada. Pode-se pensar que a matemática e a elaboração dos códigos fontes de fundo matemático seriam protótipos para a mathesis universalis, mas isto passa pela quimera da modelização absoluta, da parametrização universal. Não é preciso recorrer à física quântica ou à filosofia pós-estruturalista para deslegitimar tais pretensões de alcançar a cifra derradeira: o teorema da incompletude de Gödel faz isso muito bem no nível formal da matemática moderna.
A versão mitigada da superinteligência seria uma IA capaz de superar o ser humano em todas as suas atividades. Ocorre que, fora de um quadro de pressupostos cognitivista e dualista (praticamente gnóstico), um robô para superar o ser humano em tudo precisaria de um corpo que pudesse repetir todas as microcapacidades e micropercepções de um corpo humano, do que ele pode. Mesmo assim, teríamos que chegar à segunda camada de pressupostos, que é imaginar a inteligência artificial como um sujeito, em vez de um “processo inteligência”, que se dá na relação do corpo com o fora, às costas da consciência subjetivada. Seria um caso de avançar para pensarmos numa mente supraindividual, na hipótese panpsiquista ou em um General Intellect, como Marx escreveu em “Fragmento sobre as máquinas”, integrante dos Grundrisse. É nisso que o ChatGPT e outros modelos grandes de linguagem, em versões futuras, nos instilam maior otimismo quanto à aceleração de um intelecto geral de massa. Mas esse intelecto geral autômato é composto do orgânico e do mecânico, de múltiplos acoplamentos ou concatenamentos entre diferentes naturezas: humana, não humana, maquínica. Nossa reflexão, neste momento, tangencia a inquirição pelo corpo do Big Data, o que alimenta tais algoritmos probabilísticos gerativos de linguagem “natural”: não seria a multidão o corpo do Big Data, a multidão em sentido spinozano?
IHU – As revoluções industriais 1 e 2, de meados do século XVIII e XIX, geraram milhares de empregos assalariados. As revoluções 3 e 4, último quarto do século XIX e século XXI, já não geram mais empregos como antes. Não está na hora de incluir nesta equação não mais apenas a necessidade de trabalho, mas também de renda?
Bruno Cava, Carolina Salomão e Murilo Duarte – Certamente. A nosso ver, esse é um dos efeitos mais imediatos e produtivos que o chamado desemprego tecnológico poderia gerar politicamente. Não se trata, por certo, de um “quanto pior, melhor”, mas de compreender que se as transformações que a IA prepara forem mesmo estruturais – como parecem ser –, haverá uma série de empregos que irão para não voltar. O que é espantoso é que muitas atividades geradoras de renda que parecem ser o suprassumo da inteligência – atividades genuinamente cognitivas, como redigir um texto, criar conteúdos, preparar aulas, filtrar informações, ou mesmo atividades afetivas e de cuidado, como a escuta analítica, o apoio psicológico, o serviço social – estão mais ameaçadas pela IA do que trabalhos manuais, artesanais. E aí teríamos que lembrar uma série de fatores que tornam a renda um problema central.
Se esses empregos vão embora para não voltar, talvez isso ocorra numa velocidade impossível de ser acompanhada por políticas públicas de requalificação do capital humano. Então, só vão restar as políticas de renda. A aparente parada econômica, seguida do que Giuseppe Cocco chamou de sua “aceleração algorítmica”, que vimos acontecer durante os lockdowns da pandemia de covid-19, mostrou que não estamos nem um pouco preocupados com o trabalho, mas com a renda. Ela é a questão transversal que atravessa as lutas do século XXI, que continuam a ser um conjunto de lutas biopolíticas num meio tecnopolítico, em que vida e técnica se atravessam, constituem e bloqueiam mutuamente.
Basta lembrar que foram as infraestruturas de plataformas que permitiram a circulação econômica durante os piores momentos do lockdown; ou que o DNA do vírus da covid-19 foi decodificado em tempo recorde, e se podem gerar vacinas mais eficazes pela técnica do RNA mensageiro, precisamente pela intervenção de técnicas algorítmicas e de machine learning. Então, se o vivo e a vida continuam a ser o alfa e o ômega da produção capitalista – o que evidentemente impõe que ela esteja no centro das estratégias de poder e de contrapoder –, a própria existência de um mercado consumidor na perenidade, tal como vimos de relance durante os piores meses da pandemia, passa pela renda universal e incondicionada.
Num momento em que o keynesianismo dos Estados ricos respira por aparelhos, a parafernalha do bem-estar social é desmontada peça por peça e as condições ecológicas para viver estão ameaçadas em escala planetária, a renda passa a ser tanto uma transversal das lutas quanto um problema estratégico à sobrevivência do próprio capitalismo contemporâneo.