11 Abril 2023
No documentário de Jordi Évole, Francisco conversa com dez jovens sobre aborto, identidades sexuais ou pornografia. Aproxima-se daquela geração para quem o catecismo soa como chinês.
A reportagem é de Ricardo de Querol, publicado por El País, 05-04-2023.
Não vimos outros papas nesta circunstância. Francisco reuniu-se com uma dezena de jovens muito diversos, na sua maioria distantes da instituição católica, para o documentário Amém: Francisco responde. Poderia ser melhor chamado Francisco escuta, porque o mais interessante aqui não é tanto o que Jorge Bergoglio diz aos vinte e poucos anos, mas também o que eles dizem a ele. O valor desta produção é que o Papa quer se aproximar daquela geração que, em grande parte, pôs os pés em poucas igrejas, não espera a vida eterna, considera o aborto um direito, vive a sexualidade livremente e à qual soa o catecismo para chinês. E a quem a presença do Pontífice não impõe muito: falam-lhe abertamente, uns o chamam pelo nome, alguns o saúdam com dois beijos. Ninguém beija seu anel. A conversa é muito cordial.
Amén é uma obra da Producciones del Barrio, dirigida por Jordi Évole e Màrius Sánchez, que estreia no Disney+ nesta quarta-feira. Évole convenceu Francisco não apenas a cercá-lo de pessoas distantes de seu mundo, mas a levá-lo a um ambiente diferente do Vaticano. O filme foi gravado no verão do ano passado num espaço de coworking nos arredores de Roma, onde trabalham artistas alternativos e onde o Papa chegou de elevador. “O que queríamos é que ele desse o passo de ir para um lugar mais apropriado para os jovens. E ele aceitou”, diz Évole. Antes de chegar, a equipe o filmou em seu quarto e em seu escritório. E o cinegrafista entrou no carro com ele para gravar o passeio e ouvi-lo dizer: "Roma é uma cidade muito bonita e muito suja".
Évole já entrevistou Francisco em 2019 em Salvados, para desgosto da mídia conservadora que aguardava sua vez. Eles mantiveram contato desde então. Este documentário tem o aroma de Salvados ou Lo de Évole, com aqueles planos mudos, making of, cenas do quotidiano, câmaras atentas a cada gesto. Desta vez, o repórter do Barcelona não se posiciona diante da câmera, mas permite que esses dez jovens carreguem o peso do diálogo. Cuidadosamente escolhidos, de diferentes origens, todos falantes de espanhol. Apenas uma das dez é católica incondicional, de uma família do Caminho Neocatecumenal, os kikos, e até ela conta ao Papa que passou por alguma crise na fé.
Há outra mulher que perdeu toda a fé depois de viver em uma instituição religiosa e que é lésbica. Há um ativista católico pelos direitos do aborto e ele pergunta se ela se considera uma boa cristã. Há um senegalês, muçulmano, que sintoniza com ele falando sobre os problemas dos migrantes. Há uma vítima de abuso sexual numa escola do Opus Dei que não só expõe o seu caso, como também denuncia que foi arquivado pela Igreja e posteriormente condenado pela justiça civil. Tem uma pessoa que se declara não binária, e pergunta se ela entende o que é isso. Outra jovem põe a sua saúde mental na mesa, depois de ter sofrido bullying, distúrbios alimentares e ideias suicidas. E, o mais polêmico, há uma mulher que faz performances pornográficas em uma página da web, e ela não se sente mal por isso.
Diz muito sobre o pontífice mais aberto, pelo menos desde João XXIII, a sua disponibilidade para ouvir aqueles que são tão diferentes do seu meio mais próximo, a que, aliás, se refere como corrupto. Nota-se amargura na forma como Francisco admite não ter acabado de limpar o Vaticano, daquela sujeira que o seu antecessor não conseguiu. Um menino pergunta a ele: você acha que tem pessoas más ao seu redor? O Papa concorda: ele tem.
Mas os meninos não parecem muito interessados na vida dentro dos palácios do Vaticano. Perguntam-lhe se percebe que a Igreja está cada vez mais distante das pessoas comuns, e Francisco explica nos seus próprios erros: os membros da Igreja não têm conseguido dar o exemplo de serviço à comunidade. O que preocupa esses jovens são as questões de seu tempo. E aí o Papa responde sem perder o tom amável nem sair do roteiro. O aborto ainda é condenado: ele chega a compará-lo (não pela primeira vez) com assassinatos de pistoleiros. Mas ele encoraja a Igreja a acolher as mulheres que abortaram. Ele é muito mais empático com a homossexualidade e as identidades sexuais alternativas: essa é uma grande novidade deste pontificado. Não há indício de condenação em suas palavras.
Manifesta seu repúdio à pedofilia, e se interessa pelo caso do menino presente, embora insista que se trata de um problema de toda a sociedade, mais frequente no ambiente familiar. Em relação à pornografia, ele não se choca ou repreende a garota que se dedica a ela. Mas ele responde que o prazer sozinho ou na frente de uma tela empobrece a sexualidade autêntica e limita o crescimento humano.
Eles perguntam ao Papa se ele veria uma mulher sentada em sua cadeira. Nisso Francisco fecha em banda: essa é uma questão doutrinária. Ele se envolve um pouco ao argumentar que o papel da mulher é muito importante na Igreja, e ele tem várias em sua equipe, mas que o ministério, do sacerdócio ao papado, é coisa de homem. Até parece machismo questionar isso.
Jorge Bergoglio nem sempre convence, mas sempre consegue. Francisco não é, do ponto de vista doutrinário, um papa tão revolucionário. São os gestos. Ele é um pai que ouve. Que demonstre empatia por aqueles que não compartilham de uma visão de mundo dominante há séculos no mundo ocidental. Isso apela a Jesus de Nazaré que se cercou de prostitutas e publicanos, que via mais perto do céu do que os poderosos. Os novos discursos nem sempre foram acompanhados de reformas. Não há mudanças no celibato (embora pareça aberto a isso), nem na ordenação de mulheres, nem na doutrina sobre sexualidade e reprodução. Ele ditou regulamentos para processar melhor o abuso sexual.
Évole chega a esta conclusão: “Acho que ele está fazendo o máximo que pode e não quis, pelo menos até agora, quebrar o baralho. Ele conhece a estrutura em que se move e a oposição interna que tem. Ele vai passo a passo. Mas com passos muito firmes”. Évole não consegue imaginar um Ratzinger ou um Wojtyla falando assim com esses jovens. Nisso Francisco é revolucionário.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘Amém: Francisco responde’: o Papa que escuta como ninguém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU