30 Março 2023
É horrível considerar quantos meninos e meninas foram agredidos sexualmente porque o papa, admirável em outros aspectos, afirma repetidamente que apoia a tolerância zero, mas não consegue decretar e impor essa noção globalmente.
A opinião é de David Clohessy, ex-codiretor por mais de 30 anos da Rede de Sobreviventes das Pessoas Abusadas por Padres (SNAP, na sigla em inglês). O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 29-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma figura mundial amplamente conhecida e respeitada está mais uma vez criticando a Igreja Católica pela sua crise de abusos, pronunciando-se com mais força do que nunca.
“Não basta pedir perdão”, diz ele.
As vítimas, diz ele, devem estar “no centro” de tudo.
Ele insiste que deve haver “ações concretas para reparar os horrores que as pessoas sofreram e impedir que se repitam”.
A Igreja Católica deve dar o exemplo para ajudar a resolver o problema e “trazê-lo à luz”, diz ele.
Palavras fortes, não?
Aqui está o problema, porém: o homem que diz essas coisas é o homem que pode fazer essas coisas.
O próprio Papa Francisco, em um novo vídeo cuidadosamente coreografado e lançado no início deste mês (2 de março), fala sobre os abusos, como se fosse alguém de fora da Igreja olhando para dentro.
Mas é ele, é claro, o último “insider” da Igreja, o homem no topo de uma hierarquia muito clara e rígida, a pessoa que tem mais poder – de fato, um poder quase ilimitado – para prevenir abusos, expor malfeitores, abrir arquivos, reconquistar a confiança e ajudar as vítimas a se curarem.
Mas ele se recusa a fazer isso. Ao invés disso, ele repetidamente apenas pontifica (desculpe o trocadilho) sobre a crise, muitas vezes de modo eloquente, até mesmo comovente, mas sem seguir com reformas concretas e eficazes.
Para muitos sobreviventes como eu, isso é absolutamente enlouquecedor. À medida que nos aproximamos da marca de 40 anos do escândalo na Igreja nos Estados Unidos, parece que a lacuna entre aquilo que as principais autoridades católicas dizem sobre o abuso e aquilo que elas fazem a respeito disso nunca foi tão grande.
Reconhecidamente, Francisco se encontrou com mais vítimas e se desculpou de forma mais objetiva do que Bento ou João Paulo II. Ele ajustou ou manejou mais políticas e protocolos internos da Igreja sobre os abusos (o que seus apoiadores tentam, então, retratar como algo muito mais substancial do que realmente é).
Ele ampliou a definição de abuso para incluir os adultos vulneráveis. E expandiu a prática de longa data de bispos que investigam e julgam os padres acusados para bispos que investigam e julgam também os bispos acusados.
E empoderou os bispos não apenas para investigarem e julgarem os padres abusadores acusados, mas também para fazer o mesmo com os bispos acusados.
Mas consideremos o que Francisco poderia fazer e não fez. E imaginemos as ondas de choque que reverberariam por toda a hierarquia da Igreja – e os encobrimentos que seriam dissuadidos – se ele agisse com ousadia:
- Ele poderia impor a pena mais severa, a excomunhão, contra uma dezena ou mais de autoridades da Igreja que permitiram os abusos de modo flagrante (ele não fez isso para nenhum facilitador ou predador).
- Ele poderia insistir que todas as dioceses e ordens religiosas entregassem todos os arquivos que tivessem sobre agressores suspeitos e conhecidos para a aplicação da lei.
- Ele poderia ordenar a todos os prelados do planeta que postem em seu site diocesano os nomes de todos os clérigos molestadores de crianças comprovados, admitidos e acusados com credibilidade (imaginemos como as crianças estariam mais seguras se a polícia, os promotores, os pais e o público tomassem conhecimento da identidade desses homens potencialmente perigosos).
- Ele poderia rebaixar pelo menos uma dezena ou mais de burocratas vaticanos e quatro ou cinco dezenas de bispos que ocultam ou ocultaram crimes sexuais infantis conhecidos ou suspeitos e denunciá-los abertamente, expondo a cumplicidade deles (nos últimos anos, a indignação pública forçou Francisco a tomar medidas contra um punhado de bispos. Mas ele perpetua um padrão pontifício de longa data de deixar discretamente que um bispo em apuros “se aposente” ou “renuncie”, citando enganosamente “razões de saúde” ou não dizendo nada, enquanto permite que esses maus bispos mantenham seus títulos e pensões enquanto vivem luxuosamente e participam de importantes ritos eclesiais, e enquanto a maioria de seu rebanho e de seus coirmãos agem como se nada de errado tivesse acontecido).
Em todo o mundo, existem mais de 5.600 bispos, então o punhado de prelados que foram ou podem ter sido removidos por Francisco empalidece diante da tarefa que ainda há pela frente. Ele fez tudo, menos o tipo de limpeza completa necessária para proteger as crianças e tranquilizar os paroquianos.
Nos últimos anos, longas investigações – algumas feitas por autoridades seculares, a maioria por órgãos eclesiais – apresentaram estimativas impressionantes sobre o número de vítimas em várias nações (Portugal: 4.800; Austrália: 4.444; Alemanha: 3.677; França: mais de 215.000).
Com números dessa magnitude, alguém pode negar que Francisco precisa dar passos muito mais fortes e ousados?
As autoridades da Igreja, nesses poucos países desenvolvidos, mal e tardiamente começaram a enfrentar o escândalo, e fizeram muito menos para implementar medidas corretivas. Na maior parte do mundo, quando se trata de abuso e de encobrimento na Igreja, as poucas mudanças reais que ocorreram se devem em grande parte a forças externas e foram adotadas apenas em níveis locais.
Ironicamente, mais de 20 anos atrás, cerca de 200 bispos agiram com mais ousadia contra o abuso do que Francisco.
Ao longo dos anos 1990, pequenos grupos na SNAP, a Rede de Sobreviventes das Pessoas Abusadas por Padres, se reuniram com mais de duas dezenas de prelados estadunidenses, implorando pela adoção de uma política nacional de “tolerância zero” aos abusos. Sem exceção, eles insistiram que isso não poderia ser feito, que a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos era mais um grupo fraterno que respondia apenas ao papa, e não uns aos outros.
Mas, em Dallas, em 2002, esses mesmos bispos finalmente sucumbiram à pressão do público e dos paroquianos, e fizeram o que havíamos pedido. Esse movimento – como a maioria das políticas de Francisco – foi mais um gesto dramático do que uma reforma efetiva (ele é seguido esporadicamente e praticamente não há nenhuma sanção para os violadores).
Mesmo assim, é mais do que Francisco fez. Apesar de seu discurso considerável, esse papa ainda não impôs um requisito “um erro e você está fora” em todo o mundo. A grande maioria dos bispos ainda pode manter no trabalho ou até mesmo colocar molestadores condenados ou admitidos para trabalhar nas paróquias (geralmente depois de serem enviados para o exterior ou para longe).
Por exemplo, apenas no mês passado, uma comissão em Portugal encontrou ainda no trabalho mais de 100 clérigos acusados de molestar crianças.
Aqui em minha cidade natal, St. Louis, o Pe. Alex R. Anderson continua sendo pároco, apesar de ter enfrentado penalmente cinco acusadores, incluindo um processo civil pendente. Ele nunca foi suspenso nem por um dia, embora a Carta dos Bispos para a Proteção de Crianças e Jovens exija que um suposto clérigo predador seja suspenso enquanto se aguarda uma investigação completa.
É horrível considerar quantos meninos e meninas foram agredidos sexualmente porque esse líder mundial, admirável em outros aspectos, afirma repetidamente que apoia a tolerância zero, mas não consegue decretar e impor essa noção globalmente.
Como muitos apontaram, desde o momento em que ele apareceu naquela sacada em Roma há uma década, Francisco surpreende continuamente seus seguidores, seus coirmãos clérigos e, de fato, o mundo inteiro, rompendo o velho e rígido molde papal, repetidas vezes, de muitas maneiras.
Mas, em relação à crise central que abala a Igreja, Francisco fala muito, embora obstinadamente permaneça nas rotinas que caracterizam o restante da confortável hierarquia da Igreja e que deixam as crianças em risco, os corruptos no controle e o rebanho se debatendo.
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Os decepcionantes 10 anos do Papa Francisco no combate aos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU