29 Março 2023
As acusações que surgiram de algumas investigações jornalísticas sobre o fato de Karol Wojtyla ter encoberto vários casos de abusos cometidos por padres quando era arcebispo de Cracóvia (1964-1978), estão no centro de um embate político na Polônia.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Domani, 28-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
De fato, tanto a Igreja como o governo, através do primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, membro do partido de direita Pis (Direito e Justiça), força política de inspiração nacionalista e xenófoba em constante conflito com Bruxelas, defenderam a herança histórica de João Paulo II denunciando uma campanha de difamação que teria como objetivo minar a integridade espiritual e cultural do país. Palavras que talvez também devam ser lidas com o pensamento voltado para as próximas eleições políticas marcadas para o outono europeu. O próprio Presidente da República Andrzej Duda, também membro do partido Direito e Justiça, interveio com palavras fortes e retóricas: “Para nós poloneses, a memória de São João Paulo II é parte essencial do nosso patrimônio nacional e pertence à razão de estado da Polônia, que devemos defender com absoluta devoção e determinação, independentemente das consequências. Esse é o nosso dever cívico, patriótico e histórico."
No dia 14 de março, a Conferência Episcopal Polonesa seguiu a mesma linha, afirmando em nota dedicada ao pontífice nascido em Wadowice: “São João Paulo II é um dos maiores compatriotas de nossa história. Ele também é o pai da nossa liberdade. Ele caminhou diante de nós como Moisés: tirou-nos da casa da escravidão, conduziu-nos através do Mar Vermelho e recordou-nos as tábuas dos mandamentos de Deus”. A nota do episcopado polonês entrava depois no mérito da questão: "Diante das recentes tentativas em larga escala para desacreditar a pessoa e a obra de São João Paulo II, mais uma vez apelamos a todos para que respeitem a memória de um dos nossos mais eminentes compatriotas. O processo de canonização realizado, incluindo uma análise histórico-científica aprofundada, não deixa dúvidas sobre a santidade de João Paulo II". “Vamos permitir – era a questão finalmente colocada – que este tesouro nos seja tirado com base numa discussão jornalística de materiais produzidos pelo serviço de segurança comunista?”. Sim, porque, pelo menos em parte, os documentos que acusam o arcebispo Wojtyla vêm dos arquivos da antiga polícia secreta (SB) que remontam à época da Cortina de Ferro. Mas não exatamente todos.
Tais reações virulentas foram desencadeadas por duas matérias, uma transmitida no canal TVN24 e realizada pelo jornalista Marcin Gutowski, a outra contida no livro Mea Máxima culpa [em tradução livre] do jornalista holandês Ekke Overbeek. Segundo as duas investigações, que citam vários casos, Wojtyla, já como arcebispo de Cracóvia, não só tomou conhecimento de casos de pedofilia cometidos por alguns padres de sua diocese, mas sobretudo contribuiu para escondê-los, transferindo os padres em questão de uma diocese para outra. Segundo a investigação da TVN24, o futuro João Paulo II teria mandado transferir para a Áustria um dos padres abusadores. O cardeal Wojtyla também havia escrito uma carta de recomendação ao cardeal Franz König, então arcebispo da capital austríaca, sem, no entanto, informá-lo das acusações contra o padre.
O porta-voz da diocese vienense, Michael Prüller, confirmou à agência noticiosa católica da Áustria, Kathpress, que nenhuma informação havia sido recebida de Cracóvia sobre os abusos cometidos pelo sacerdote em questão. “Investigamos esse aspecto – acrescentou – quando recebemos um pedido da Polônia no início de janeiro deste ano”. Além disso, disse, “em nossos arquivos não há provas de possíveis crimes cometidos pelo padre durante sua estada em nosso país”. A investigação conduzida por Gutowski para a TVN24 é também acompanhada por vários testemunhos de ex-vítimas de abusos.
Em suma, o assunto é intrincado. Em primeiro lugar, os bispos e o governo contestam a confiabilidade da documentação proveniente dos arquivos da polícia secreta: poderia ter sido usada para chantagear e manter sob controle uma igreja que se opunha veementemente ao regime? A suspeita tem fundamento, como também pode ser constatado pelos temores que o arcebispo Wojtyla expressava sobre a consistência de algumas acusações, dúvidas que em alguns casos o levaram a agir com prudência. Por outro lado, justamente a atividade de controle social capilar exercida pela polícia secreta poderia depor a favor da veracidade do que hoje se encontra nos arquivos. Além disso, a igreja não concedeu aos jornalistas acesso aos arquivos eclesiásticos, o que certamente representa uma limitação sobre todo o caso.
Deve-se lembrar que, num primeiro momento, a reação da igreja polonesa foi mais articulada, embora pela defesa decisiva de João Paulo II. De fato, no dia 9 de março, o presidente dos bispos poloneses, o arcebispo de Poznań, D. Stanislaw Gądecki, divulgou um comunicado no qual afirmava, entre outras coisas, que “defender a santidade e a grandeza de João Paulo II obviamente não significa que ele não teria podido cometer erros. Ser pastor da igreja na época da divisão da Europa entre Ocidente e bloco soviético significava enfrentar desafios difíceis. Também temos de estar conscientes de que naquele tempo, não só na Polônia, havia leis diferentes daquelas vigentes hoje, a consciência social e as modalidades habituais de resolver os problemas eram diferentes”. E talvez uma parte da verdade que se busca pode estar escondida nessas afirmações. Resta dizer que os bispos poloneses disseram sim à instituição de uma comissão independente para investigar o escândalo dos abusos como um todo.
Por fim, é preciso enfatizar que a querela em torno de Wojtyla e os abusos cometidos pelo clero - evento que colocou em crise o vínculo tradicional entre os poloneses e a Igreja nos últimos anos - corresponde àquele processo progressivo de secularização que está afetando também o Polônia como o resto da Europa. Por isso, defender a figura de João Paulo II torna-se agora um fato político. Nessa perspectiva, portanto, deve ser lido o que o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki afirma sobre os ataques contra Wojtyla. Estes últimos "vêm - disse - de ambientes que querem introduzir uma revolução no lugar da tradição, da cultura e da normalidade, que irá revolver a vida da maior parte da sociedade". “Hoje – prosseguiu o primeiro-ministro – a guerra acontece não só além da nossa fronteira oriental. Infelizmente, existem ambientes que estão tentando provocar não uma guerra militar, mas uma guerra civil na Polônia." Para Morawiecki “como cristãos devemos defender a memória do pontífice nascido em Wadowice”.
Deve-se dizer que a defesa da herança de Wojtyla como herói nacional da libertação da Polônia da opressão, mesmo que contenha alguma verdade, é bastante incompleta, pelo menos do ponto de vista da igreja universal. De fato, é geralmente deixado de lado o João Paulo II do diálogo inter-religioso, do abraço com o rabino-chefe de Roma Toaff, aquele disposto a tudo para parar a guerra no Iraque, o papa que foi o primeiro a levantar com força o problema do acolhimento dos migrantes.
Ao mesmo tempo, sem dúvida, a luta contra o comunismo soviético travada por Wojtlya teve várias consequências. Por um lado, sua ação certamente contribuiu para a queda do Muro de Berlim, por outro, ele sacrificou muito para esse objetivo: a começar pela série de escândalos financeiros devido a alianças inconfessáveis com poderes opacos ou criminosos que rondaram o IOR, o banco do Vaticano, por onde transitavam os fundos destinados ao sindicato polonês Solidarność. Sem esquecer a desconfiança excessiva - fechado na lógica da Guerra Fria - com que o papa polonês tratou o bispo de San Salvador Oscar Romero, morto em 24 de março de 1980 por esquadrões da morte.
E, sobre os abusos dos padres, é verdade que, de fato, os primeiros tímidos passos no sentido de uma conscientização do problema por parte da Igreja remontam ao pontificado de Wojtyla, mesmo assim muitos dos casos mais graves de encobrimento ocorreram durante seu pontificado, não raramente implementados por seus colaboradores mais próximos.
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Pedofilia e abuso na Igreja. A Polônia se questiona e se divide sobre as acusações contra São João Paulo II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU