27 Março 2023
Nas páginas do Settimana News informamos sobre as escolhas da Igreja portuguesa em relação ao drama dos abusos (Abusos na Igreja Portuguesa; Portugal: relatório sobre os abusos). “Em 486 páginas o Relatório sobre abusos na Igreja portuguesa recolhe as violências contra menores entre 1950 e 2022.
Após um ano de trabalho, a comissão, presidida por Pedro Strecht, identificou 4.815 vítimas. Os testemunhos recolhidos em nível nacional foram 564, dos quais 512 foram considerados válidos”.
Quando o abuso ocorre dentro de uma comunidade eclesial, as dimensões do fenômeno importam relativamente; o que importa é amadurecer a consciência das devastações que ela produz em cascata e assumir a responsabilidade por elas. Sobretudo para com as vítimas, para lhes oferecer o reconhecimento e o apoio de que necessitem. Conversamos sobre o Relatório sobre os abusos com mons.
Ornelas José Carvalho, bispo de Fátima e presidente da Conferência Episcopal, para aprofundar as escolhas de fundo que levaram à constituição e orientaram os trabalhos da Comissão Independente, recolher os ecos da apresentação do Relatório (13 de fevereiro) e conhecer a agenda da Conferência Episcopal em resposta.
A entrevista com Ornelas José Carvalho é de Lorenzo Prezzi e Marcello Matté, publicada por Settimana News, 24-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mons. Ornelas, o que aconteceu depois da apresentação do Relatório sobre os abusos e a assembleia dos bispos, em particular a renovação das comissões diocesanas, a discussão sobre os padres envolvidos no Relatório e a convocação ao Parlamento?
Sabíamos que haveria alguma reação por ocasião da publicação do Relatório sobre os abusos. Nós bispos estávamos na primeira fila durante a apresentação. Foi dado um destaque muito grande aos testemunhos das vítimas: apreciado, mas muito duro. Alguns o viram como uma forma de espetacularização ou exploração para fins midiáticos, uma exibição de mau gosto.
Outros temiam que as vítimas, ao ouvirem o relato de seu sofrimento, o sentissem mais forte. Foi muito difícil, mas também foi importante ouvir em detalhes os testemunhos das vítimas. Muitos na Igreja ainda não percebem a gravidade do que acontece nos abusos de menores. Foi um soco no estômago, mas acredito que faça parte daquele processo necessário tomar consciência da gravidade desses abusos.
Na Igreja ainda há muitos negacionistas, muitos que minimizam.
Em geral, foi reconhecida a coragem da conferência episcopal e da Igreja, que foi a primeira no país a realizar um estudo do fenômeno com as orientações que nós mesmos definimos.
O texto do comunicado é claro e equilibrado, também como programa. Alguns gostariam de ver cabeças caindo, a demissão de alguns bispos... Nada disso aconteceu. O que aconteceu é uma ponderação calma e serena das responsabilidades.
É da própria natureza do Relatório e do valioso trabalho realizado pela Comissão Independente que possibilitou esse resultado.
As comissões diocesanas e uma coordenação nacional haviam sido constituídas no final de 2019, mas houve pouquíssimas denúncias. Entendemos que dificilmente uma vítima teria se disposto a apresentar uma denúncia quando um seu vizinho de casa estivesse presente na comissão. As comissões terão um papel importante, mas não para esse fim. Já agora são percebidos de forma diferente, mas não são o instrumento adequado para pesquisar o fenômeno.
Muitas vítimas só de pensar na Igreja têm uma reação de rejeição. É preciso entender o significado realmente dramático na vida dessas pessoas.
Não há outra escolha: se queremos ir ao encontro das vítimas, devemos identificar as formas de acolhê-las com dignidade e respeito. A Comissão disse desde o início que os trabalhos continuariam enquanto se sentisse livre para implementar seu próprio programa.
Colocámos à frente da Comissão uma pessoa que escolheu a sua própria equipe, pessoas credíveis em nível nacional, e que trabalhou segundo uma metodologia definida autonomamente.
Damos agora continuidade ao programa decidido na Assembleia Extraordinária de 3 de março, no final da qual foi convocada uma conferência de imprensa.
Naquela oportunidade a comunicação não funcionou e eu assumo as responsabilidades de moderador. As expectativas eram de medidas imediatas, enquanto nós declaramos que queremos reservar um tempo adicional para avaliar as escolhas operacionais.
Apesar da diversidade de opiniões dos bispos, todas as decisões, incluindo o comunicado final e o roteiro, foram adotados em conjunto, mas seu significado não foi compreendido pela maioria. Numa entrevista que prestei ao semanário L’Espresso, tentei esclarecer melhor o percurso planejado.
No dia 14 de março realizou-se a reunião do Conselho Permanente à qual se seguiu um comunicado que foi acolhido positivamente, também porque prenuncia algumas consequências práticas em matéria de responsabilidades. No entanto, a imagem da reação da Igreja ao Relatório sobre os abusos não se recuperou na mídia. Será necessária a implementação das medidas previstas, que se encontram em fase de efetiva organização.
Algumas dioceses já tomaram medidas. 12 padres foram afastados do ministério por precaução e as dioceses envolvidas foram indicadas publicamente. Já está consolidada uma consciência que permite tomar decisões com firmeza.
A montante, é precioso o trabalho realizado nos arquivos das cúrias diocesanas e dos institutos religiosos. É a expressão mais clara do nosso compromisso e da vontade de enfrentar o problema. Nós trabalhamos juntos. Tínhamos preparado um questionário e uma lista de investigações a serem realizadas em nossos arquivos. Fizeram um trabalho inestimável, graças também à competência arquivística e histórica de quem o realizou, mesmo que orientado para o estudo quantitativo e qualitativo: identificar as constantes do fenômeno, as dinâmicas reconhecíveis, a condição das vítimas, os lugares…
Dedicaram muito tempo removendo do Relatório sobre os casos elementos de identificação pessoal. A maioria dos testemunhos não menciona o nome do abusador, a maioria das vítimas não quer ser identificada, mas a Comissão se dotou de instrumentos para reconhecer quando a situação poderia ser julgada crível.
Alguns nomes não aparecem, outros estão mortos. Mantiveram os nomes das pessoas falecidas, porque as vítimas ainda estão vivas. Não para publicá-los, mas para confirmar que não apagamos a memória.
Do ponto de vista da atribuição de responsabilidades, o Ministério Público - ao qual foi enviada a lista - exclui os mortos, pede a identificação de pelo menos uma vítima ou quem depõe e se reserva tempo para cruzar os dados com aqueles já em sua posse.
As dioceses maiores estão em dificuldade, também porque em muitos casos a identificação do crime ainda não foi aperfeiçoada.
São dois objetivos distintos: o do estudo e o da identificação de casos penais. Os resultados obtidos são fruto de uma colaboração que está continuando.
Como pretende dar espaço na Igreja à voz das vítimas? Haverá um sinal público de pedido de perdão?
Também em nosso comunicado, a questão das vítimas ocupa o primeiro lugar. É uma questão de atenção, respeito e reconhecimento do mal causado. Não deveria ter acontecido em lugar nenhum, muito menos na Igreja. Reconhecimento necessário, mas não suficiente.
Em reconhecimento, foi decidida uma memória de celebração (20 de abril, na conclusão da Assembleia Episcopal). Um sinal muito claro será dado na JMJ. Também será feito um memorial ainda em estudo.
O mais importante é o apoio incondicional às vítimas. Afirmou-se desde o início, embora não tenha passado completamente para a opinião pública, e foi reiterado nos últimos dias.
Não evitaremos nenhuma das nossas responsabilidades. Não podemos voltar no tempo e apagar a dor, mas o que for possível fazer hoje faremos. Também do ponto de vista econômico; por exemplo, sustentando as despesas necessárias para ajudar as vítimas a restabelecer às suas vidas e assisti-las nas suas necessidades.
Não somos nós a impor as modalidades. As escolhas são adotadas em colaboração com as associações de vítimas. Entendemos a recente constituição de alguns delas como reconhecimento da nossa boa vontade e da intenção de colaborar. Estamos efetivamente procurando todas as maneiras de ir ao encontro das vítimas.
Houve uma polêmica sobre a indenização. É uma questão individual e específica. Mas garantimos que não queremos nos isentar.
Não podemos identificar o valor econômico de uma dor, mas queremos fazer todo o possível, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento do mal.
O que distingue a tarefa da Comissão Strecht daquela da Comissão francesa?
A nossa comissão foi criada como vontade expressa da conferência episcopal, porém com total autonomia tanto na composição como na definição do método. Não tenho como fazer comparações.
Também no que diz respeito à contagem dos números, acabámos por constatar que eram mais do que o reportado, tendo também incluído os casos identificados por nós mesmos, nos nossos arquivos e nas investigações que promovemos.
Sempre houve uma colaboração estreita com a comissão, no pleno respeito da autonomia, sobretudo na abertura dos arquivos, que envolveu todos os bispos. Muitas normas ou entraves burocráticos foram superados quando eram um obstáculo para apurar a verdade. Fazer justiça para as vítimas sempre foi o primeiro objetivo.
A extrapolação dos números - 4.815 casos, se não me engano - não é apenas um dado aritmético, mas responde ao desejo de escutar as vítimas. Aconteceu que o estudo de um caso abrisse uma porta para situações análogas e relacionadas (por exemplo, aulas em um seminário) que eram impossíveis de verificar de modo adequado.
Avaliamos a questão do método. O cálculo parte sempre do testemunho das vítimas e não é um cálculo aritmético. Não leva em conta abusos que continuaram por meses e anos, porque não se buscou o cálculo dos episódios, mas sobretudo das pessoas.
No Relatório sobre os abusos fala-se de uma “ocultação sistêmica” em relação aos abusos, mas não de uma “questão sistêmica” para toda a Igreja. É isso mesmo? Poderia explicar?
No Relatório se fala claramente que, no que se refere aos abusos de menores, a consciência é muito recente. Antes, os abusos eram referidos ao sexto mandamento, mas isso não ajuda. A legislação civil os classificava entre os comportamentos imorais ou socialmente inadmissíveis. A vítima era excluída. De ambas as partes, era considerada apenas a imoralidade do comportamento: "Aconteceu um comportamento inaceitável". O sofrimento da vítima não era levado em conta, até porque não se conhecia cientificamente o efeito desastroso que o abuso tem sobre a criança.
O abuso geralmente causa uma incapacidade de falar sobre o mesmo com os mais próximos. A primeira ocultação depende das próprias vítimas. Alguns falaram pela primeira vez nesta ocasião. Alguns até haviam removido o episódio da memória.
A consciência da vastidão do mal é recente. No ordenamento jurídico português, fala-se das vítimas apenas no final da década de 1980; a denúncia passou a ser obrigatória apenas a partir de 2000 e, por enquanto, de acordo com a lei, diz respeito apenas aos servidores públicos.
Na práxis da Igreja, o abuso era considerado uma violação do sexto mandamento, aplicava-se uma penitência, absolvia-se e, para não causar escândalo, se seguia em frente. Isso, de fato, consolidou uma forma de ocultação, para defender a imagem da Igreja.
A dificuldade de superação das tendências não era conhecida e não era considerada. O fato era considerado apenas do ponto de vista moral, como pecado. Não conhecendo as modalidades de contraposição às tendências, pensava-se que a transferência fosse suficiente. Era uma ignorância que recaía tanto sobre a práxis eclesial quanto sobre aquela civil.
Com os conhecimentos de hoje não podemos fugir ao dever de uma leitura muito diferente e responsável. Se o segredo dos arquivos protege as pessoas, não é para esconder as maldades, mas para fazer justiça com dignidade e adequação à singularidade de cada caso.
Qual das recomendações finais considera mais urgentes?
Em primeiro lugar, o apoio às vítimas. E depois as recomendações à Igreja sobre a formação, a organização da vida ministerial, o acompanhamento dos padres que muitas vezes se encontram sozinhos no ministério.
Nas nossas orientações programáticas, está prevista a constituição de um lugar e uma colaboração profissional para a reconstrução das pessoas em dificuldade. Também está programada a revisão das normas a cargo da conferência episcopal; adiamos a publicação da Ratio formationis nos seminários, de modo a incluir as recomendações da Comissão.
As comissões locais são muito importantes para a formação, prevenção e educação. São compostas e dirigidas por leigos; os padres participam não como membros, mas como consultores espirituais.
Continua a ter o seu papel uma comissão que tenha credibilidade para com as vítimas, e que depois possa as acompanhar com a ajuda de que necessitam.
A comissão espera que o Estado também faça algo semelhante. A comissão foi ouvida por três ministros (saúde, bem-estar, justiça), que pediram que, em âmbito civil, seja feito algo análogo ao que foi feito pela Igreja.
Não se quer tirar nada da responsabilidade mais grave da Igreja, mas o problema não se limita à Igreja.
Como reagiram ao Relatório sobre os abusos a opinião pública e a política portuguesa?
Como eu disse antes, houve uma decepção em relação ao que foi percebido pelos meios de comunicação. As coisas estão melhorando. O Parlamento pediu por unanimidade que o Estado faça algo e que sejam abertos canais também de apoio às vítimas (pelo Ministério da Saúde, por exemplo).
Aprovaram chamar o presidente da conferência dos bispos e outros para relatar ao Parlamento. Quando chegar a convocação, irei com prazer, para reafirmar o quanto nos interessa ser parte desta colaboração e transmitir o tesouro da experiência.
Você faria tudo de novo?
Não tenho dúvidas, mesmo existindo muitas resistências na Igreja. “Vocês se meteram numa confusão demasiado grande... quem paga são os padres...”.
O que aconteceu na Igreja não explica a enormidade do fenômeno no país. Da parte da Igreja passou a mensagem de que, diante de cada episódio que aconteceu ou vai acontecer, serão adotadas respostas concretas. É uma questão que diz respeito não apenas aos padres, ainda que alguns padres me tenham dito: “Sinto-me mais aliviado”. Não queremos confundir a árvore com a floresta, mas também não queremos que ninguém se sinta ignorado.
O trabalho da Comissão portuguesa recebeu reconhecimento por parte italiana e internacional
Não tem sido tempos fáceis. A Igreja portuguesa não será mais a mesma. Muitos preconceitos contra a Igreja caíram, mas outros estão surgindo. Devemos agora confirmar as intenções com as ações.
Isso não é tudo, mas também como bispos, na definição do roteiro, entendemos que o caminho tinha que ser feito e que não teria sido possível se não estivéssemos unidos e convergentes. Esta é a Igreja Sinodal na qual acredito.
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Portugal-abusos: Igreja e sociedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU