Hoje, a Argentina faz memória ao golpe de estado que originou a ditadura militar, em 24 de março de 1976. O país viveu à sombra do regime até 1983. Em lembrança destes 47 anos, o povo argentino vai às ruas em memória às vítimas, mortos e desaparecidos. Os protestos do Día de la Memoria, la verdad y la justicia ocorrem em maior concentração na capital, Buenos Aires, mas tomam conta das ruas por todo o país.
A Argentina acerta as contas com o passado, coloca ditadores nos bancos dos réus e faz memória coletiva.
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"A única maneira de cicatrizar feridas é com justiça", diz título de recente publicação do sítio das Abuelas de Plaza de Mayo. Jorge Radice, militar que se apropriava de pertences das vítimas da ditadura, é condenado pela Justiça argentina.
A reportagem é de Edu Montesanti, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Enquanto aproxima-se o Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça em que a Argentina, desde 2002, inunda as ruas de todo o país a cada 24 de março marchando pelo inglório aniversário do golpe militar de 1976, a fim de "honrar a memória dos desaparecidos e lutar pela continuidade dos julgamentos dos que cometeram crimes contra a humanidade" (Arg.gob.ar), mais desdobramentos dos crimes dos cruéis ex-ditadores militares argentinos vieram à tona nas últimas semanas. E com final feliz.
No último dia 15, o juiz federal Ariel Lijo encerrou o caso do ex-militar repressor Jorge Radice, que cumpre pena de prisão perpétua por ter alternado tarefas tanto operacionais quanto administrativas no macabro campo de concentração da Escola de Mecânica da Marinha (ESMA) em Buenos Aires, além de ter torturado e assassinado civis detidos.
Ao que tudo indica, a administração de bens não dizia respeito apanas aos recursos para o funcionamento da força-tarefa, mas também aos bens roubados dos detidos-desaparecidos. Por ter permanecido com propriedades, carros e até cavalos de corrida, mas sobretudo por ter criado mecanismos para apagar a origem ilegal desses bens, Lijo ordenou que o genocídio da ESMA fosse processado por branqueamento de capitais ao longo de toda a última ditadura militar na Argentina (1976-1983).
O mais exótico é que, desta vez, Radice não estará sozinho ou com um companheiro de armas na cela, mas com sua irmã mais nova, Norma Berta Radice, que participou de atividades criminosas visando ficar com os bens das vítimas da última ditadura.
Trata-se de fato comprovado que Radice interveio no plano de apropriação dos bens dos sequestrados no campo de concentração da Marinha, pelo menos, desde 22-11-1976, e que continuou fazendo negócios com aquele capital até recentemente. Com a ajuda de sua irmã, contadora e graduada em Administração de Empresas.
De acordo com a resolução da Lijo, os Radice guardaram bens de desaparecidos, adquiriram bens com o dinheiro que tiraram dos que estavam no cativeiro, compraram bens "substitutos" após a venda dos que inicialmente adquiriram com o que roubaram sequestraram, e montaram uma rede empresarial de âmbito transnacional com um único objetivo: apagar todos os laços com a ESMA, desta forma integrando aquele capital no circuito econômico formal. A rede de empresas contava com 17 pessoas jurídicas com atuação na Argentina, nos Estados Unidos, no Uruguai e Panamá.
A investigação sobre o roubo de bens dos detidos-desaparecidos da ESMA teve inicio em 2007. O saque foi parte essencial do que aconteceu naquele campo de concentração.
Ao mesmo tempo, Victoria Donda depôs no julgamento de sua apropriação quando menor de idade, época em que sua mãe, María Hilda Pérez, membro da Juventude Peronista na zona oeste da Grande Buenos Aires, foi sequestrada pelos ditadores, terminando desaparecida. Seu tio paterno e único réu, o genocida Adolfo Donda que atuava como chefe de Operações da ESMA, não quis estar no tribunal preferindo depor via Zoom.
Victoria relembrou outros sobreviventes que a ajudaram a reconstruir sua história, detalhou o caso da família Ruiz Dameri, cuja filha nascida na ESMA também foi apropriada, e leu uma emocionante carta escrita à mão que ela esconde do seu pai até hoje.
O repressor Donda está condenado por torturas e desaparecimentos. "A única maneira de curar feridas é com justiça", disse Victoria ao final de seu depoimento no tribunal portenho.