Como país vizinho colocou ditadores no banco dos réus – e reconstruiu a memória coletiva. O exemplo de amor na política das Mães de Maio. Por que acertar contas com o passado é crucial para impedir novos ataques à democracia.
A entrevista é de Rosângela Ribeiro Gil, publicada por Outras Palavras, 30-11-2022.
Argentina, 1985, de Santiago Mitre, é um filme obrigatório diante dos tempos distópicos brasileiros. Mostra o que não fizemos em solo brasileiro. O luto coletivo (ainda) não vivido O nunca mais de fato e de direito que por construir. Um pedaço, grande aliás, que ainda falta na nossa democracia. Explica-se: é que em certa “bolha” digital, num misto de chororô e transe, exulta-se, numa adoração psicótica e alucinógena, a volta da intervenção militar de 1964. Precisamos entender como chegamos a isso – e como seguir daqui pra frente. O processo de justiça e reparação argentino – e como ele foi crucial para bloquear novas ameaças de golpismo, como as que o Brasil enfrenta – pode apontar algumas pistas para isso, então troquei impressões com a psicanalista e cientista política Nora Merlin, professora de universidades argentinas.
Afinal, o que calamos sobre o passado nos diz muito sobre o presente – e há uma sucessão de fatos que mostra que ainda não acertamos nossas contas com a história. Em 1979, o Brasil aprovou a lei de anistia, igualando civis perseguidos e militares envolvidos em crimes de sequestro, tortura e desaparecimento de vítimas. Ainda temos inúmeros logradouros e ruas com nomes de militares que integraram o regime de 1964. A nossa Comissão Nacional da Verdade (CNV) só conseguiu ser constituída em 2011, pela presidenta Dilma Rousseff – ou seja, 26 anos depois do fim da ditadura; 377 nomes entre os autores de graves violações aos direitos humanos foram apontados e a maioria deles não foi julgada, muito menos sentenciada. Reiteradamente, nosso presidente da República ainda em exercício elogia torturadores de 1964 e até de outros países, como Alfredo Stroessner, do Paraguai, e Augusto Pinochet, do Chile. E, neste mês, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse que o Brasil não poderia repetir o que fez a Argentina, que ficou presa na vingança, no ódio e olhava o passado pelo retrovisor.
Já a Argentina, como mostra o filme, colocou suas três primeiras Juntas Militares no banco dos réus: Jorge Videla, Emilio Massera, Roberto Viola, Armando Lambruschini, Orlando Agosti, Omar Graffigna, Leopoldo Galtieri, Jorge Anaya e Basilio Lami Dozo. O tribunal foi civil e não militar, em nove meses de julgamento, 530 horas de audiência, 839 testemunhas, 709 casos, seis juízes e dois promotores. A sentença, pronunciada em 9/12/1985, condenou Videla e Massera à prisão perpétua com destituição; Viola, a 17 anos de prisão; Lambruschini a 8 anos de prisão e Agosti a 4 anos e 6 meses de prisão, todos destituídos. Graffigna, Galtieri, Lami Dozo e Anaya foram absolvidos.
Isso só foi possível porque a sociedade argentina se organizou, se uniu e se mobilizou em diversas frentes de luta exigindo verdade, memória e justiça. Os argentinos entenderam que a sociedade não poderia prosseguir ou se reconstruir em cima de escombros, cadáveres, desaparecidos e roubos de crianças.
Além disso, no país vizinho a vigília em defesa dos direitos humanos é constante. Em 24/3/2004, por exemplo, o então presidente Néstor Kirchner deu a ordem – que ficou conhecida como Proceda – para a retirada dos quadros dos ditadores Rafael Videla e Reynaldo Bignone da Escola Militar de El Palomar, proferindo: “Senhores integrantes do Colégio Militar da Nação e das Forças Armadas, senhores generais e oficiais superiores: nunca mais, nunca mais, nunca mais a ordem institucional na Argentina terá que ser subvertida. É o povo argentino pelo voto e a decisão do mesmo, quem decide o destino da Argentina; vamos definitivamente terminar com as mentes iluminadas e os salvadores messiânicos que apenas trazem dor e sangue aos argentinos.”
Como disse Julio César Strassera, o promotor principal no caso contra os crimes da ditadura que no cinema é vivido por Ricardo Darín: “Senhores juízes: quero renunciar expressamente a qualquer pretensão de originalidade para encerrar esta requisitória. Quero usar uma frase que não me pertence, porque pertence já a todo o povo argentino. Senhores juízes: nunca más!”.
O que significou o julgamento de 1985 para a Argentina?
Foi uma ação fundamental para a história da democracia argentina. Até aquele momento os militares terroristas, golpistas, da pior ditadura de todas da Argentina, que se constituiu no Terrorismo de Estado de 1976, pretendiam ser julgados pela justiça militar. Importante esclarecer que a Argentina, ao longo de sua história republicana, sofreu muitos golpes de Estado com períodos mais curtos. Mas, sem dúvida, o golpe de 1976 foi o pior porque foi diretamente um terrorismo de Estado, sanguinário. Todo esse genocídio cometido contra o povo argentino pelas Forças Armadas se deu para tornar possível a implantação do projeto econômico neoliberal.
O julgamento dos militares, em 1985, foi uma construção da sociedade civil argentina, representada pelos familiares dos desaparecidos, pelas Mães e Avós da Praça de Maio, pelos artistas, pela juventude. Todos pediam verdade, memória e justiça.
O então presidente Raúl Alfonsín, por decreto, determinou que a hierarquia da Junta Militar, composta pelas três armas das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), seria julgada pela justiça civil. Foi um ato inédito e grandioso para a democracia. Foi um impacto enorme em toda a sociedade ver a justiça civil julgando, pela primeira vez, os militares terroristas. Posso dizer que o julgamento de 1985 significou um antes e um depois na história da democracia argentina, que foi refundada baseada na defesa intransigente dos direitos humanos.
O julgamento significou, além da punição aos culpados, a criação, pela via democrática e judicial, de um pacto simbólico que se pode resumir pelas palavras “Nunca mais”. Nunca mais ódio. Nunca mais Terrorismo de Estado.
Importante acentuar que o julgamento dos militares genocidas é um exemplo para o mundo em relação à política em defesa dos direitos humanos e contra o Terrorismo de Estado, considerando que o desaparecimento de crianças não é um crime que prescreve. Nenhum país teve essa consagração em defesa da memória, da verdade e da justiça. É um fato que continua inédito e único no mundo.
Um político, dentro de uma instituição do Estado de Direito na Argentina, poderia fazer apologia à ditadura, à tortura e elogio a qualquer torturador?
Esse ato político e jurídico sedimentou, nos argentinos, o dever de defender a vida e os direitos humanos de todos. Por isso, ninguém se atreve, nenhum político, jornalista, funcionário público, a fazer apologia à ditadura ou elogiar um torturador.
Todavia, estamos vendo crescer vozes do fascismo e da extrema-direita em todo o mundo. Por isso, vemos alguns atores sociais falando abertamente na necessidade de uma “mão dura”. Na Argentina, os que se atrevem a fazer isso são questionados pela sociedade de forma muito incisiva. Ou seja, temos um pacto simbólico ainda muito forte contra o discurso que atente contra os direitos humanos.
O julgamento acontece dois anos após o fim da ditadura militar na Argentina, em 1983. Antes, todavia, uma das primeiras medidas do presidente eleito Raúl Alfonsín foi a criação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), em 15 de dezembro de 1983.
A criação da Conadep teve como objetivo investigar as violações aos direitos humanos. A comissão reuniu pessoas probas, ilustres, confiáveis e dignas da cultura, periodistas, teóricos, escritores, representantes religiosos. Pessoas eticamente indiscutíveis. Ela foi presidida pelo escritor Ernesto Sabato.
A comissão investigou, por quase 10 meses, os crimes dos militares. Ela percorreu todo o país, buscando testemunhos dos sobreviventes, dos familiares e também dos próprios repressores. A comissão também recebeu muitas denúncias sobre centros ilegais de detenção e tortura. Todo esse trabalho, com testemunhos e provas, foi usado também no julgamento de 1985.
Nunca mais violações dos direitos humanos.
Qual a importância da recuperação da memória para uma sociedade? O quanto podemos debitar à falta dessa memória institucionalizada, vamos definir assim, ao rompimento entre passado e presente numa sociedade?
A investigação da Conadep só foi possível porque a sociedade argentina exigiu. Foram ações dos movimentos sociais e de direitos humanos, da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos, do movimento das Mães e das Avós da Praça de Maio, dos filhos buscando seus pais.
Para que haja memória é necessário elaborar um trauma coletivo. Na Argentina, ele se deu com o processo contra o Terrorismo Estado de 1976, quando todo tipo de violação aos direitos humanos foi levantado, provado e julgado.
Terrorismo que criou “os desaparecidos”, crime que surgiu no tempo de [Jorge Rafael] Videla, entre 1976 e 1981. Um crime terrível, porque não se está nem vivo nem morto. Depois toda a tortura realizada nos campos de concentração, que eram centros clandestinos, que havia em todo o país. Roubos de bebês e de filhos.
A memória é fundamental porque os direitos humanos não estão assegurados totalmente, é uma luta permanente, inclusive para as novas gerações. Na Argentina, todo 24 de março celebramos o Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, para evitar a repetição desse evento traumático.
Graças aos julgamentos temos evitado qualquer ação violenta das Forças Armadas. Neste momento, as Forças Armadas não constituem um perigo para a democracia argentina e não são consideradas como inimigas do povo. Sem vingança, sem ódio e com justiça temos criado um vínculo institucional satisfatório com essas instituições, que compõem o Estado de Direito. Na pandemia, se colocaram a serviço da comunidade com algumas ações importantes, como distribuição de máscara facial, mantimentos e remédios. Mas isso só é possível porque ocorreu o julgamento civil.
Qual foi o papel das mulheres, reunidas no movimento “Mães da Praça de Maio” e das “Avós da Praça de Maio”?
As mães dos desaparecidos eram donas de casa sem formação política, mas elas se transformaram num verdadeiro agente político com a pergunta: onde está meu filho. Elas ajudaram a criar essas demandas por verdade, memória e justiça. Essas Mães e Avós se caracterizaram por terem incluído amor na luta política. Elas não saíram a disseminar o ódio ou a matar os militares. Elas davam e dão voltas ao redor da pirâmide da Praça de Maio, por isso é um sítio histórico de memória de todo o povo argentino. Todas as quintas-feiras até os dias de hoje elas dão volta ao redor da pirâmide pedindo a aparição, com vida, dos seus filhos. [Em 1987, o governo Raúl Alfonsín criou o Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), que guarda a informação genética das famílias que buscam seus parentes roubados.]
As avós também foram fundamentais nessa luta política que culminou com o julgamento de 1985. Elas pedem pela aparição e a busca de seus netos, que foram roubados e vendidos, em alguns casos, pelos militares.
Muitos netos foram recuperados com essas ações. Inclusive, é a partir da luta das avós que se criou o Dia Nacional do Direito à Identidade [celebrado em 22 de outubro]. Toda pessoa tem direito a conhecer a sua identidade.
As Mães e Avós geraram o que conhecemos como memória coletiva. Quer dizer, a dor que significou o desaparecimento de um filho e de um neto se tornou uma dor coletiva, uma dor socializada. [O trabalho do BNDG e das instituições ligadas a ele conseguiram resgatar, até hoje, 130 netos roubados durante a ditadura. Em junho de 2019, Matías Darroux Mijalchuk foi o último. Calcula-se que cerca de 500 bebês foram sequestrados pelos militares.]
Pelo menos em três ocasiões, tentou-se anular ou desqualificar o veredicto do julgamento: no próprio governo de Raúl Alfonsín, depois com Carlos Menem. Mais recentemente, em maio de 2017, no governo de Mauricio Macri, a Argentina se mobilizou contra sentença da Corte Suprema que apontava para a redução de penas e até para a libertação de centenas de militares condenados por crimes de lesa humanidade durante a última ditadura entre 1976 e 1983.
Em 1987, o presidente Raúl Alfonsín, pressionado, assina o decreto denominado “Obediência devida”, que significava impunidade a alguns membros das Forças Armadas que estavam subordinados aos seus superiores, por isso não eram puníveis por terem agido em virtude de obediência devida. Mas antes, em 1986, tem a chamada Lei de Ponto Final [23.492], estabelecendo a paralisação dos processos judiciários contra os autores das detenções ilegais, torturas e assassinatos que ocorreram na de ditadura militar.
Esse retrocesso continuou com a presidência de Carlos Menem, que se dizia peronista, mas que, na realidade, trazia um projeto neoliberal. Foi a segunda onda neoliberal na Argentina, depois dos militares. Em 1989 e 1990, ele declara a anistia que são leis de impunidade, liberando os criminosos condenados.
Em 2003, quando assume Néstor Kirchner – iniciando o período de 12 anos de kirchnerismo, entre as presidências de Néstor e os dois governos de Cristina Kirchner –, ele retoma ativamente a questão dos direitos humanos, retoma os julgamentos e reabre as investigações e revoga a anistia aos genocidas.
Néstor Kirchner pede perdão, em nome do Estado, ao povo argentino pelos 30 mil desaparecidos.
O que foi a Escola de Mecânica da Armada (Esma) durante a ditadura militar argentina, e o que é a Esma hoje para o povo argentino?
Esta escola de atividades militares foi transformada, no período do Terrorismo de Estado, em centro clandestino de detenção, tortura e desaparecimento de pessoas. Graças ao governo de Néstor Kirchner o espaço se transforma num patrimônio de memória e direitos humanos. Nele, são realizadas atividades culturais diversas, como recitais, cinemas, mostras permanentes e itinerantes. Assim como se recupera a Esma, Néstor Kirchner recupera outros centros clandestinos de detenção e tortura e dá novas funções, principalmente as culturais.
Quais os valores sociais, políticos e humanos que emergem na sociedade argentina com o julgamento de 1985?
O principal está na frase “Nunca mais”, também proferida na alegação final do promotor Strassera. Ela representa um pacto social. Ela tem um valor simbólico de refundação da democracia no país. Nunca mais, golpe de Estado. Nunca mais, Terrorismo de Estado. Nunca mais fazer desaparecer a um dissidente político.
Como seguimos nos tempos atuais?
Hoje, são novos métodos de guerras políticas que desestabilizam governos, que tentam colonizar a população com discursos de ódio. Na sua essência, estão a favor da morte.
Creio que há de se trabalhar uma lei que regulamente as corporações de comunicação audiovisual e as empresas de tecnologia. E isso não é contrário à liberdade de expressão, porque liberdade de expressão não implica liberdade de ódio. A vida em sociedade requer um pacto social, em que todos renunciam.
Parece-me que o caminho para a desconstrução do discurso de ódio já foi criado e mostrado pelas Mães e Avós da Praça de Maio e que os feminismos nos ensinam, que é o amor político que articula as diferenças.
Há um ovo de serpente porque não se terminou de julgar os genocidas do terrorismo de 1976, porque temos uma justiça cúmplice do poder neoliberal, que vai encaminhando de forma muito lenta as causas e que precisa julgar grupos econômicos e da própria sociedade civil que colaboraram com o genocídio dos militares.
Esse grupo de poder que está concentrado nos meios de comunicação, no poder judiciário e nas corporações econômicas não deixa os governos populares da Argentina trabalharem. Há uma guerra judicial, como o lawfare, que atenta contra a democracia e que é cúmplice dos que não aceitam a política como pluralidade de vozes.
Por último, precisamos nos atentar, principalmente os povos da América Latina, para o poder paralelo que o Poder Judiciário vem projetando, no sentido de se transformar num “braço” do neoliberalismo e de apoiar vozes contrárias ao Estado de Direito, com forte inclinação ao golpismo.