09 Dezembro 2016
"Confesso que hesitei em escrever esta nota e faço-o apenas frente a essa situação desesperadora. Joaquín Morales Sola, Carlos Pagni e Ricardo Roa me estimularam a escrever de maneira definitiva com as suas colunas no domingo, segunda e terça-feira, respectivamente. Os três usaram uma imagem de mártir para descrever a situação de Milagro Sala. Sem que haja prejulgamento entre as diferenças de nossas motivações, Morales Sola, um dos primeiros a demarcar as irregularidades deste processo kafkiano, manifesta de maneira fria uma ideia que é compartilhada por muitos de nós. Frente às maquinações daqueles que querem ver sangue, tentamos abrir os olhos cegos do engenheiro Mauricio Macri, o único que pode e deve 'evitar que Milagro se converta em mártir'", escreve Juan Grabois, Advogado, Membro do Secretariado Nacional da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular e Membro Consultor do Conselho Pontifício Justiça e Paz, em artigo publicado por Página/12, 07-12-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O martírio, por definição - embora não esteja explícito nas notas mencionadas -, implica em morte. Já não tenho a menor dúvida de que é precisamente a morte de Milagro Sala o que alguns setores do poder estão buscando, mais especificamente, mas não exclusivamente, em Jujuy. Não é uma metáfora nem uma sugestão: me refiro à sua morte física. E se for um suicídio ou um conflito carcerário, melhor para eles. Em seu ódio ideológico, classista, xenófobo e misógino, demonstrado amplamente, eles enxergam Milagro como um troféu de guerra e querem colocar a sua cabeça em uma de suas paredes da sala. Também têm motivos menos passionais. Eles mergulharam em um atoleiro jurídico cujas repercussões internacionais já não podem ser cobertas: sobra papelada circulando na imprensa, mas falta no expediente. Por outro lado, se for mantida a teoria do crime que impulsiona a promotoria, isto necessariamente comprometerá diversos personagens do establishment político e judicial de Jujuy, muitos deles vinculados a Gerardo Morales. Nada seria melhor do que extinguir a ação causa mortis. "A índia pé-sujo cometeu suicídio", "as presidiárias se mataram entre elas". Seu microclima autorreferencial, de ódio infeccioso, faz com que eles acreditem que têm a impunidade já garantida.
Sem ir muito longe, o atual prefeito de San Salvador de Jujuy, Raúl "Chuli" Jorge, companheiro de partido de Gerardo Morales, duas vezes presidente do Colégio de Arquitetos de Jujuy, durante 8 anos aprovou os certificados das habitações atribuídas a Milagro Sala.
O ex-auditor geral da nação, o radical Leandro Despouy, nunca fez denúncias penais contra Sala. Se realmente existiram as infrações que foram dirigidas a ela, Despouy seria responsabilizado por incumprimento dos deveres de funcionário e acobertamento ou omissão. O mesmo poderia ser dito do ex-governador Eduardo Fellner e seus funcionários, sobre os quais é mantido um silêncio cauteloso. Todos eles, que exerceram o poder institucional durante os anos do suposto estado paralelo, permanecem em cargos públicos, desfrutando tranquilamente de suas liberdades. Todos eles sabem que nas causas contra Sala há muito barulho por nada. É hora de falar abertamente.
A resposta local à crescente pressão internacional para que cesse a prisão arbitrária de Sala tem reforçado o assédio a ela, o que indica uma tentativa de desestabilizá-la psicologicamente, induzindo sentimentos de desproteção, desamparo, ansiedade, angústia, isolamento, abandono, culpa e frustração.
Em julho, o procurador Diego Cusel afastou a licenciada Laura Aguirre, psicóloga designada oficialmente, com quem Sala havia estabelecido um excelente vínculo terapêutico, com o argumento patético de que, conforme o chefe do serviço penitenciário, Victor Morales, a profissional "fortalecia" a interna. Aguirre foi sumariamente ameaçada e substituída por voluntários do poder judiciário que pareceram atuar no sentido oposto, tentando enfraquecê-la deliberadamente. O mesmo ocorreu com todos os funcionários que estabeleceram algum vínculo de empatia ou neutralidade com Sala: foram afastados e substituídos por pessoas hostis a Milagro. Chegou-se ao extremo de substituir a diretora da Unidade Carcerária Nº 3, para Mulheres, pelo Subchefe de Polícia, Omar Arce, um homem de inimizade manifesta por Sala, para que coordenasse a constante "execução" que sofre a interna. Além disso, há um claro assédio contra os defensores de Milagro Sala. Os médicos Paz, Ruarte e Alvarez têm recebido denúncias, ameaças e ataques durante o exercício de sua profissão. Inclusive a Dra. Elizabeth Gómez Alcorta, uma acadêmica de trajetória respeitada no campo dos direitos humanos (copatrocinadora de Sala no processo pela privação ilegítima de sua liberdade, que lentamente faz seu caminho rumo à Côrte Suprema), foi denunciada por "usurpação de títulos e honrarias" pelo tribunal federal de Jujuy, que se diz muito neutro, como uma acusação irrisória cujo único objetivo era amedrontá-la.
Também estão sendo induzidos os familiares dos integrantes da Tupac Amaru, atribuídos de rejeitar a Milagro, em público e no privado, a situação de seus entes queridos. O mais grave são as "pressões físicas e psicológicas" que sofreram alguns dos denunciantes, das testemunhas e das pessoas envolvidas, que não precisamente estão com Milagro Sala, diz o procurador anticorrupção, Joaquín Millón Quintana, outro partidário de Morales. O caso de Mabel Balconte é talvez o mais grave. Horas antes da expansão de sua declaração, puseram-na em um carro, ameaçando prender um de seus filhos por uma causa de abuso sexual que estava sendo retardada, exigindo que fossem trocados os advogados, assim como sua declaração para incriminar Milagro Sala, Andrés Larroque e Maximo Kirchner. Em 15 de janeiro de uma estranha noite, em plena feira judicial, um grupo de cooperativistas apresentou uma denúncia, mas a procuradora substituta, Liliana Fernández de Montiel, considerou que suas declarações não eram suficientes para prender Sala. Ela deixou esse despacho para depois e prosseguiu com a maçã envenenada: a famosa causa para a insubordinação que finalmente levou Sala para detrás das grades. Cinco dias depois, como em um passe de mágica, perante a fragilidade dos motivos para a prisão, os delatores noturnos mudaram radicalmente sua declaração e, pouco depois, Montiel foi promovida a promotora de justiça. Esplêndido. A investigação sobre o caso Balconte tramita lentamente no tribunal da juíza Servini de Cubria. As falsas testemunhas, também denunciadas, dormem o sono dos justos nos tribunais de Jujuy, enquanto se estabelece, no marco dessa estratégia de desestabilização psicológica, o primeiro julgamento expresso para o dia 15 de dezembro que – como alguns insinuam com brutal insistência - será um cenário de humilhação e desprezo no qual farão desfilar a soberana maldita que a "TV Führer" já tem condenado. Um empurrãozinho a mais para o abismo.
Ontem, para dissipar qualquer dúvida de que o lobby de um pequeno grupo de advogados exóticos da ONU, um punhado de ONGs, a Côrte Interamericana de Direitos Humanos, um rosário abençoado, um primeiro-ministro e um par de Prêmios Nobel da Paz não abdicariam da liderança de ferro do Grande Irmão Morales, o juiz radical Pullen Llermanos - homem violento, preconceituoso e adepto das armas de fogo - emitiu a prisão preventiva desnecessária de Sala, em uma acusação digna de um tratado do direito penal mágico: a instigação de uma tentativa de homicídio incriminando a parte instigada, Jorge Páes, coautor foragido de tal tentativa, que foi de fato... absolvido pelo mesmo juiz! Eles não se privaram do envio de forças especiais com homens encapuzados e armas de alto calibre para transportar uma mulher algemada. Outro empurrão oportuno.
A este quadro aterrorizante soma-se o que talvez seja o elemento mais desestabilizante: o desespero que se reforça a cada declaração que chega da Casa Rosada, endossando o que acontece em Jujuy. Não posso imaginar a angústia de Sala quando vir pela televisão, com o rosto colado na tela, a chegada dos órgãos de direitos humanos caminhando até ela com a liberdade nas mãos e, em seguida, o Presidente da Argentina surgindo para detê-los. Na semana passada, frente às resoluções das instituições do sistema internacional de proteção dos direitos humanos dos quais a Argentina é membro, o nosso chefe de Estado fez declarações cuja gravidade foi notavelmente despercebida para os defensores da ordem republicana e da institucionalidade. Justificou a prisão arbitrária de Milagros Sala da pior maneira possível: com as pesquisas. "As recentes declarações do Presidente endossam o que está acontecendo em Jujuy", afirmou o ministro de Justiça da província, no dia seguinte. Em um segundo momento, começou com argumentos patrióticos já desgastados, quase como um eco do "somos direitos e humanos", para desqualificar a resposta unânime da comunidade internacional em todo o seu espectro ideológico.
Do ponto de vista da mercadotecnia política de curto prazo, é provável que o presidente tenha razão. Ainda que a consciência da natureza arbitrária da sua prisão comece a crescer na sociedade Argentina, a percepção geral sobre Milagro ainda é ruim e é possível que tanto Morales quanto Macri tenham politicamente faturado sua prisão arbitrária, e inclusive que algum consultor de imagens tenha recebido por semelhante êxito publicitário. Populismo puro e duro que, longe de justificar a situação, agrava-a. Outros atores políticos que confundem a verdade com as pesquisas, como Sergio Massa, unem-se ao círculo de preconceito. O que talvez Macri não queira ver é que, como chefe de um Estado ameaçado pela ordem pública internacional, a responsabilidade é sua e o restante dos envolvidos joga de graça: em suas mãos está a vida e a liberdade de Sala. A lógica pretensiosa da realpolitik que, como confessou Ernesto Sanz, levou Sala para trás das grades, também pode levá-la para a sepultura. Talvez entre a elite de uma província feudalizada e um país embrutecido seja simpático gabar-se de um pragmatismo viciado de ilegalidade, abusos e autoritarismos, desprovido de qualquer ética ou senso de justiça. Não será assim frente à história nem à comunidade internacional.
Chega o final do ano: são momentos de balanço e de tomada de decisões, tanto para aqueles que apreciam o poder quanto para os desamparados. O Natal se aproxima e muitas vezes esquecemos que sob a estrela de Belém não só caminhavam os Reis Magos, mas os assassinos enviados por Herodes. Aqueles que amam Milagro não a querem como mártir. Queremos uma noite de paz, não de morte. Queremos ela livre.
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O assassinato de Milagro Sala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU