13 Dezembro 2022
Na capital do Uruguai, Montevidéu, os coronéis do Exército uruguaio Carlos Alberto Rossel Argimon e Glauco José Yannone de Leon foram presos na última quinta-feira (08/12). O motivo? Eles integraram o grupo que sequestrou o casal Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez e seus dois filhos, Camilo e Francesca, então com sete e três anos, em Porto Alegre, durante a ditadura militar.
Argimon e Yannone participaram da Operação Sapatos Quebrados, que sequestrou Rodríguez e Celiberti na cidade brasileira no dia 12 de novembro de 1978. Para dar certo, eles contaram com a cooperação de agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) local, chefiado por Pedro Seelig, uma espécie de Fleury gaúcho, além da Polícia Federal e Brigada Militar.
O objetivo da operação era prender o secretário-geral do Partido da Vitória do Povo (PVP) do Uruguai, Hugo Cores, que estaria no Brasil.
A operação de sequestro dos cidadãos uruguaios em território gaúcho foi uma combinação entre a repressão militar do país vizinho, que agia clandestinamente no Brasil, e o DOPS do Rio Grande do Sul. No entanto, havia uma integração maior nesse esquema: a Operação Condor.
Também contou com a participação do ex-jogador brasileiro de futebol Orandir Portassi Lucas, conhecido pelo apelido de Didi Pedalada, João Augusto Rosa e Janito Keppler, todos agentes do DOPS. Além do coronel reformado Eduardo Ferro e do capitão José Bassani, ambos do Exército uruguaio.
A denúncia contra os militares uruguaios e agentes brasileiros foi realizada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH-RS) no início da década de 1980. “Este é um caso muito importante para o Brasil. Há 44 anos nem imaginávamos que existisse Operação Condor. A atual condenação e prisão dos militares uruguaios só foi possível porque não houve prescrição das ações judiciais. A legislação uruguaia considera que crimes contra a humanidade – como o sequestro - são imprescritíveis”, explica o presidente da MJDH-RS, Jair Krischke, a Opera Mundi.
A primeira ação judicial contra os militares uruguaios fora aberta em fevereiro de 1984 pela equipe do Instituto de Estudos Jurídicos e Sociais do Uruguai, mas acabou arquivada posteriormente. O processo acusava os militares envolvidos de tortura, sequestro, privação de liberdade e subtração de menores. Uma nova denúncia foi apresentada em 2002, e o caso só foi reaberto quase uma década depois, em 2012.
Os dois coronéis presos na quinta-feira foram processados pela juíza criminal Silvia Urioste com base em investigação promovida pela Promotoria Especial para Crimes contra a Humanidade do Uruguai, chefiada pelo procurador Ricardo Perciballe.
Trata-se de uma prisão para que sejam preservadas as garantias do processo judicial. Aqui no Brasil se equivale a uma prisão preventiva. Os dois ficarão presos até a conclusão do processo judicial.
Perciballe, em maio de 2018, havia pedido a prisão de Argimon, Yannone, Ferro e Bassani acusando-os de privação de liberdade e dois crimes de abuso contra detentos. Um deles, o Ferro, está preso desde 2021, quando foi capturado na Espanha, ele também está envolvido em outro sequestro de militantes de esquerda. Já Bassani poderá responder ao processo em liberdade.
Quando o capitão Ferro foi preso na Espanha em janeiro de 2021, Camilo – filho de Rodríguez e Celiberti - divulgou uma carta onde contou a cena de seu sequestro, citando o militar: “primeiro nos levaram para uma delegacia em Porto Alegre, depois em uma van cheia de soldados armados até os dentes e nos trouxeram para o Uruguai. Cruzamos a fronteira e você nos separou de nossa mãe, você a levou para o Brasil e eles trancaram eu aos sete anos e minha irmã de três anos sozinha em um quarto vazio, me espancaram quando na manhã seguinte tentei abrir a janela para fugir daquele inferno”.
Aqui no Brasil, as denúncias realizadas pelo MJDH-RS levaram à condenação do delegado Seelig e do agente Didi Pedalada. O primeiro foi absolvido e depois transferido de Porto Alegre para outra cidade gaúcha. O outro foi condenado a seis meses de detenção, com direito a sursis.
“A denúncia levou à primeira condenação de policiais brasileiros integrantes da Operação Condor”, relata Krischke.
Naquele novembro de 1978, Rodríguez e Celiberti estavam em Porto Alegre para denunciar ações da repressão militar da ditadura no Uruguai. Mas a Companhia de Contrainformações do Exército uruguaio monitorava os movimentos dos dois e recebeu denúncias sobre suas localizações. Com a ajuda de militares e agentes brasileiros, os dois militantes foram sequestrados na capital do Rio Grande do Sul.
Rodríguez era recém chegado da Suécia a Porto Alegre. Já Celiberti vinha da Itália. Na capital gaúcha eles tinham maior facilidade de recolher informações sobre a ditadura uruguaia e depois fazer denúncias para organizações de defesa dos direitos humanos na Europa. Ocupavam um apartamento na rua Botafogo, bairro Menino Deus, a poucos quilômetros do estádio Beira-Rio.
Os dois filhos do casal também foram levados pelos militares. E por pressão da sociedade e da família de Celiberti foram devolvidas à avó materna 18 dia depois. Já o casal permaneceu preso por cinco anos, até novembro de 1984, libertados com o fim da ditadura uruguaia.
A prisão de ambos foi forjada, acusados de terem ingressado no país pela fronteira brasileira com muitas armas e “documentos subversivos”. “Essa versão dos militares uruguaios é conhecida como a Farsa de Bagé”, conta o presidente do MJDH-RS à reportagem.
A descoberta do envolvimento de agentes brasileiros atuando em conjunto com militares do Uruguai em território do Brasil na busca por opositores do regime militar do país vizinho foi provocada pela astúcia do então repórter Luiz Cláudio Cunha, em conjunto com o fotógrafo J. B. Scalco. Eles estiveram no apartamento da rua Botafogo onde morava a família sequestrada e chegaram a ser detidos por Seelig e Didi Pedalada.
O ex-jogador de futebol foi identificado pelos jornalistas que então descobriram todo o esquema da Operação Condor em pleno funcionamento em Porto Alegre.
A revelação dos nomes dos envolvidos na Operação Sapatos Quebrados, que resultou na denúncia, processo criminal e prisão, só foi possível devido ao depoimento de um ex-soldado uruguaio que participou da captura do casal e dos filhos.
Hugo Walter García Rivas estava lotado na Companhia de Contrainformações do Exército desde 1977. Após desertar, procurou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos em Porto Alegre, em 3 de maio de 1980. “Pediu ajuda. Queria asilo para ele e sua família. Assumimos o compromisso de procurar um país para irem e não divulgar nada até que estivessem num lugar seguro”, conta Krischke.
Mas o movimento gaúcho esbarrou numa negativa diante das Nações Unidas. “Nos disseram que não havia espaço para esse senhor (Hugo Walter García Rivas) por que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) existe para abrigar as vítimas desse senhor. Então partimos para outras alternativas. Foram mais de 40 dias de negociação com a Cruz Vermelha em Genebra. Conseguimos a Noruega, onde ele e a família vivem até hoje”, informa o ativista gaúcho.
O ex-militar do Exército do Uruguai deu diversos detalhes da operação planejada pela repressão uruguaia. Citou os nomes dos comandantes e participantes da ação, de Seelig e Didi Pedalada a outras pessoas integrantes da cadeia de comando da repressão e atuação na Operação Condor.
Na época, parte da imprensa brasileira fez diversas reportagens denunciando o sequestro do casal e de seus filhos. Contudo, nem o governo brasileiro, que vivia período de distensão ampla e gradual, nem a Polícia Federal classificaram o caso como sequestro.
As apurações dos repórteres brasileiros identificaram ainda a participação de outros dois agentes do DOPS gaúcho no sequestro: João Augusto Rosa e Janito Keppler.
O juiz Moacir Rodrigues, de Porto Alegre, condenou em 21 de julho de 1980, Didi Pedalada e Rosa a uma pena de seis meses de detenção pelo crime de abuso de autoridade. Ambos ficaram proibidos de trabalhar em Porto Alegre por período de dois anos.
Rosa recorreu e obteve recurso para não cumprir a pena. Pedalada ficou preso. Seelig e Keppler foram absolvidos por falta de prova.
Celiberti mora hoje no Uruguai, assim como seus dois filhos, Camilo e Francesca. Rodríguez morreu em 2012 e não pôde ver seus sequestradores condenados e presos.
Seelig morreu em março deste ano. Didi Pedalada faleceu em 2005.
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Após 44 anos, militares uruguaios são presos por participarem de sequestros em Porto Alegre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU