25 Mai 2012
“Esta Comissão terá uma missão: bater na porta dos quartéis e pendurar o bilhete no pescoço do tigre. Nos quartéis têm documentos, e a Comissão tem o direito de vê-los”, assinala o historiador.
Confira a entrevista.
Ao analisar a instalação da Comissão da Verdade, que busca investigar os crimes políticos e os desaparecidos do período militar, Jair Krischke questiona a proposta sancionada pela presidência da República. Entre suas propostas para garantir a eficácia do trabalho que será desenvolvido nos próximos dois anos, está a de rever o período a ser examinado, de 1946 a 1988. “Desde o primeiro momento nós trabalhávamos para que o período a ser examinado fosse de 1964 a 1985. Nós lutamos lealmente pela modificação do texto, o que não foi permitido. O senador Paulo Paim (PT/RS), quando a matéria estava no Congresso para ser apreciada, convocou uma audiência pública para que a sociedade civil discutisse as inconformidades com o texto. Essa audiência pública foi esvaziada pelo Executivo, inclusive pela ministra Maria do Rosário”, informa.
Outro ponto que poderá dificultar as investigações da Comissão da Verdade é o número de assessores que terão a função de investigar os crimes políticos e os desaparecidos. De acordo com Krischke, a Comissão terá um número limitado de 14 assessores, e não se sabe como e quando eles serão nomeados. “A experiência do mundo tem nos mostrado algumas coisas como, por exemplo, que a Comissão da África do Sul funcionou com mais de 400 assessores. Na Guatemala, tiveram mais de 200 assessores, além de assessorias que vieram da ONU e da OEA”, compara. E dispara: “Esses sete comissários são pessoas notáveis na sociedade brasileira, mas não são eles que irão a campo e, sim, os 14 assessores. Os comissários são exímios concertistas, mas alguém tem de carregar o piano para que eles possam nos assegurar o concerto”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Jair Krischke assinala os desafios e limites da Comissão da Verdade e enfatiza que, após a conclusão dos trabalhos, o material produzido deve ser encaminhado ao Ministério Público Federal, embora isso não esteja determinado na lei que deu origem à Comissão. “Todo o produto da investigação da Comissão da Verdade será enviado para o Arquivo Nacional. Acho ótimo que enviem, mas uma cópia deve ser enviada ao Ministério Público Federal – MPF para que ele, com as atribuições que a Constituição Federal o confere, faça aquilo que deve fazer: denunciar aquilo que julga ser denunciado. Esse é o aspecto jurídico”, ressalta.
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Jair Krischke (foto abaixo) é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor reage à instalação da Comissão da Verdade e às sete nomeações feitas pela presidente Dilma?
Jair Krischke – As nomeações foram muitíssimo boas, porque as pessoas são muito qualificadas e não há nenhum reparo a fazer.
IHU On-Line – Como vê a proposta do advogado José Carlos Dias de que a Comissão deve apurar fatos cometidos pelos dois lados: do Estado, pelos militares, e da esquerda que optou pela luta armada?
Jair Krischke – Conheço o Dr. José Carlos Dias há mais de 30 anos. Ele atuou fortemente na Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e é uma atuação importante no enfrentamento à ditadura. Estou surpreendido com esta postura. Deve haver algum equívoco aí. Não posso acreditar que ele tenha dito isso, ou seja, apurar os fatos dos dois lados, porque não existem dois lados. Existe um lado: o das vítimas.
IHU On-Line – A atuação dos grupos de esquerda foi uma reação à ditadura?
Jair Krischke – Exatamente. E mais do que isso. A maioria daqueles que tomaram em armas contra a ditadura foram condenados. Quando se fecham todas as vias civis que uma sociedade civil organizada pode e deve exercitar, condena-se a juventude a pegar em armas. Não havia outro caminho. Essa é uma questão.
Uma outra questão diz respeito ao Estado violador dos Direitos Humanos. Não gosto quando costumam apontar nomes, porque a Ditadura foi uma política de Estado. E um Estado absolutamente terrorista. Então, os jovens que tomaram em armas têm este particular.
Na Alemanha e na Itália também existiram grupos que pegaram em armas. Na Itália, por exemplo, havia as brigadas vermelhas. Os Estados alemão e italiano não foram terroristas. Eles usaram a lei para reprimir esses grupos, mas ninguém foi torturado, desaparecido, ou assassinado. Quer dizer, o Estado Democrático de Direito funcionou, respeitando as leis e os direitos humanos. No Brasil, não se pode aceitar essa justificativa de analisar os dois lados, porque ela é improcedente.
IHU On-Line – As divergências existentes na Comissão podem prejudicar os trabalhos?
Jair Krischke – Num primeiro momento, fiquei assustado porque as declarações dos integrantes da Comissão da Verdade eram divergentes não só nessa questão de analisar os dois lados, mas em outros aspectos, como o período a ser analisado, que era de 1946 a 1988, ou de 1964 a 1988. A Comissão tem de ter uma unidade, porque do contrário, prejudica os trabalhos e isso é muito ruim. Acredito que nos próximos dias os integrantes da Comissão irão se reunir para unificar um discurso.
IHU On-Line – O período a ser examinado está correto?
Jair Krischke – Não. Desde o primeiro momento nós trabalhávamos para que o período a ser examinado fosse de 1964 a 1985. Nós lutamos lealmente pela modificação do texto, o que não foi permitido. O senador Paulo Paim (PT/RS), quando a matéria estava no Congresso para ser apreciada, convocou uma audiência pública para que a sociedade civil discutisse as inconformidades com o texto. Essa audiência pública foi esvaziada pelo Executivo, inclusive pela ministra Maria do Rosário. Nenhum representante do Executivo esteve presente, e pressionaram o senador Paim para que não realizasse a audiência pública.
Além da questão do período a ser examinado, também queríamos modificar outras questões. Foram escolhidos sete comissários. Costumo dizer que poderiam ser três, dez, porque o número de comissários não é importante, mas o número de assessores é fundamental. Conforme a proposta aprovada, a Comissão terá 14 assessores, e não se sabe quem serão os assessores, nem a qualificação que eles terão. A experiência do mundo tem nos mostrado algumas coisas como, por exemplo, que a Comissão da África do Sul funcionou com mais de 400 assessores. Na Guatemala, tiveram mais de 200 assessores, além de assessorias que vieram da ONU e da OEA. Então, 14 é um número muito limitado.
Esses sete comissários são pessoas notáveis na sociedade brasileira, mas não são eles que irão a campo e, sim, os 14 assessores. Os comissários são exímios concertistas, mas alguém tem de carregar o piano para que eles possam nos assegurar o concerto.
Outra observação que fazemos diz respeito ao tempo de atuação da Comissão da Verdade. Dois anos, como ficou instituído, é pouco tempo, e com tão poucas pessoas trabalhando é impossível alcançar os resultados. As organizações de direitos humanos já estão pensando em, organizadamente, pleitear junto à presidente Dilma uma avaliação da Comissão e, quem sabe, a possibilidade de enviar um novo Projeto de Lei, ampliando o tempo de atuação da Comissão para quatro anos.
IHU On-Line – Por quais razões se ampliou o período a ser examinado? Qual a justificativa?
Jair Krischke – A justificativa é de analisar um período que corresponde de uma Constituição a outra Constituição. Portanto, a última Constituição Democrática antes do Golpe de 64 era a de 1946, e a primeira Constituição Democrática após a Ditadura Militar, foi a de 1988. Essa justificativa é pífia. O correto seria analisar de 1964 até 1985. Ampliou-se demais o período a ser examinado para que a Comissão não atinja, em dois anos, a expectativa.
IHU On-Line – A Comissão ficou com um caráter técnico demais no sentido de se limitar a investigar os crimes e os desaparecidos ou, pelo contrário, esse é seu papel? Para ela ser completa, caberia ter um caráter jurídico, ético-político sobre todo o período do regime?
Jair Krischke – Não ficou técnica demais. A minha maior preocupação são os 14 assessores que irão a campo. Quem serão eles? Porque para fazer esse processo de investigação, é preciso conhecimento. Eles irão investigar documentos, e um argumento forte que aparece é que os arquivos estão fechados. Os arquivos da Marinha e do Exército estão fechados, mas a Força Aérea, em 2010, entregou cerca de 60 mil documentos. Então, existe uma boa documentação, que está disponível.
Como eu disse, para analisar os arquivos da Ditadura não basta ser alfabetizado, tem que saber ler. Então, se esses 14 assessores não estiverem preparados, não saberem o que estão investigando, vão ler os documentos e não irão entender nada. Essa é uma preocupação que eu tenho.
IHU On-Line – Qual deveria ser o perfil dos assessores?
Jair Krischke – Em primeiro lugar, a lei diz que serão 14 assessores, mas não diz se serão nomeados pela presidente. Não está claro como serão escolhidas essas pessoas. Cada comissário terá o direito de escolher dois assessores?
A qualificação pode ser historiador, arquivologista, alguém do campo jurídico. Mas o importante é que essas pessoas tenham conhecimento do que aconteceu neste país, para poder tomar em mão o documento e saber lê-lo.
Eu tenho dito também que esta Comissão terá uma missão: bater na porta dos quartéis e pendurar o bilhete no pescoço do tigre. Nos quartéis têm documentos, e a Comissão tem o direito de vê-los. É mentira quando dizem que os arquivos foram queimados.
IHU On-Line – Então a Comissão não precisa ter um caráter jurídico?
Jair Krischke – Não precisa. A função dela é investigar. O produto final desta investigação, sim, deve ser encaminhado ao Ministério Público. Esse é outro aspecto da lei que queríamos ter discutido, mas não foi permitido. Todo o produto da investigação da Comissão da Verdade será enviado para o Arquivo Nacional. Acho ótimo que enviem, mas uma cópia deve ser enviada ao Ministério Público Federal – MPF, para que ele, com as atribuições que a Constituição Federal o confere, faça aquilo que deve fazer: denunciar aquilo que julga ser denunciado. Esse é o aspecto jurídico.
O cientista político, sociólogo, historiador, arquivologista que investigar esses casos não têm absolutamente nada a ver com o mundo jurídico. Eles investigam. Nenhuma Comissão da Verdade que aconteceu no mundo teve essa função. À Comissão cabe investigar. Qualquer punição, num Estado Democrático de Direito, cabe à justiça.
IHU On-Line – Como o senhor vê a participação da sociedade brasileira nesse debate? Quando se fala em Ditadura Militar e Comissão da Verdade, apenas uma parcela pequena da sociedade sabe do que se trata. Quais os limites e os desafios de expandir essa discussão?
Jair Krischke – Essa Comissão resgata essa verdade histórica e socializa com a sociedade. Eu viajo muito pela região do Conesul, e dia 26 de março presenciei uma marcha em Buenos Aires, que é uma lembrança à data do Golpe Militar que aconteceu na Argentina. Tinham 120 mil pessoas na rua. Era algo fantástico. No Uruguai teve, na semana passada, a marcha do silêncio, em que os cidadãos fazem uma caminhada silenciosa pelas ruas com as fotos dos desaparecidos. Não sei precisar o número de pessoas que participaram, mas era uma multidão.
IHU On-Line – Por que ações como essa não acontecem no Brasil? Falta memória do que foi este período?
Jair Krischke – Isso me chamou muito atenção, e verifiquei uma coisa que realmente é impactante: 75% da atual população brasileira não era nascida no período da Ditadura Militar. Lembrei de que, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo na década de 1970, tocava a música “Pra frente Brasil”, que era mais ou menos assim: “Noventa milhões em ação / Pra frente Brasil / Do meu coração... / Todos juntos vamos / Pra frente Brasil / Salve a Seleção!” Hoje a população do Brasil é de 192 milhões.
A imprensa brasileira, que tem o dever de informar as pessoas, mas não o faz. Houve uma longa ditadura no Brasil, censura à imprensa, mas isso terminou em 31 de dezembro de 1978. Porém, isso também acabou entrando no DNA e há uma autocensura, porque a imprensa não cumpre seu papel de informar.
Uma outra questão diz respeito ao mundo acadêmico que, neste aspecto de resgate, produz pouca pesquisa nas diversas áreas, seja da psicologia, da sociologia, da história, da antropologia, do direito. Todos esses campos da vida acadêmica estão em dívida com a sociedade, porque não estão produzindo aquilo que deveriam. Em Buenos Aires e Montevideo, a academia tem introduzido muita pesquisa sobre este período. No Brasil é somente agora que as universidades estão despertando para este resgate. Nos países da América Latina há produção de documentários e livros sobre o tema, enquanto que no Brasil a sociedade ainda está desinformada.
IHU On-Line – Nos demais países da América Latina foram instituídas Comissões da Verdade? É possível fazer comparações?
Jair Krischke – Nem todos os países tiveram Comissões da Verdade. Muitos falam da Comissão da Verdade da Argentina, mas lá não teve uma Comissão desse tipo. O que houve foi uma Comissão presidida pelo Ernesto Sabato [1], cidadão, intelectual, escritor de proa. Mas eles receberam as denúncias dos familiares e das próprias vítimas. Às vezes chamavam uma pessoa ou outra para conversar, mas o levantamento feito na Argentina esteve relacionado à contribuição das pessoas. Eles não tiveram um papel investigativo.
No Peru, a Comissão da Verdade desempenhou um papel muito importante, que resultou na prisão e condenação do Alberto Fujimori [2]. No Uruguai, houve uma Comissão da Paz que não disse muito há que veio.
IHU On-Line – Qual é o maior problema da Lei de Anistia? Seria o caso de se revê-la?
Jair Krischke – O Supremo Tribunal Federal – STF não tem que reinterpretar a Lei de Anistia. Eu sempre digo que não precisamos reinterpretar nada, mas quero que se leia a Lei de Anistia tal qual ela está escrita. O STF entendeu que a Anistia brasileira também alcançou os militares e funcionários civis do Estado.
Por que a Corte Interamericana não aceita essa Anistia? Porque é uma autoanistia, que anistia aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos. Conexos a quê? A crime político.
No parágrafo segundo da lei diz assim: Não estão anistiados os crimes de terrorismo e os crimes de lesões pessoais. Onde se encontra o crime de terrorismo no Código Penal brasileiro? Não existe crime de terrorismo no Código Penal. Mas lá na Lei de Anistia está escrito. Mas o que é crime de terrorismo? Se alguém praticou crime de terrorismo no Brasil, foram os agentes do Estado.
A Lei de Anistia é de agosto de 1979 e, em fevereiro de 1980, presos políticos, que continuavam em prisão, fizeram greve de fome, como a imprensa registrou fartamente à época. Então, como pode se tratar tudo de forma igual? Até hoje não foram anistiados os crimes de terrorismo, porque não existe no Código Penal brasileiro, e não foram anistiados os crimes de assalto a bancos, os crimes de lesões pessoais. Crimes que estes agentes do Estado cometeram. Não quero que mude o texto da lei, mas que se aplique tal qual está escrito. Como foi aplicado para os que estavam enfrentando a ditadura.
IHU On-Line – Que locais de Porto Alegre foram ambientes de tortura?
Jair Krischke – Por enquanto foram mapeados onze locais em que as pessoas ficaram presas ou torturadas. Entre eles está o Dopinha, um Departamento de Ordem Política e Social – DOPS clandestino, localizado na Rua Santo Antônio, número 600. Esse foi o primeiro aparelho de repressão clandestina do Brasil, que fechou em 1966 por causa do escândalo do assassinato do sargento Manuel Raimundo Soares. Mas dentro da estrutura da Secretaria de Segurança foi criado o DCI, de onde comandavam o DOPS. Outro local é a Ilha do Presídio. Inclusive, será colocada uma pedra no Cais do Porto com o nome de todos que estiveram presos na Ilha. O local que hoje é ocupado pelo Daer também irá receber uma placa, da mesma forma que alguns quartéis de Porto Alegre e o prédio onde funcionava o DOPS, além do Palácio da Polícia, e o atual prédio da Fase.
Notas:
[1] Ernesto Sabato (1911-2011): romancista, ensaísta e artista plástico argentino.
[2] Alberto Fujimori (1938): engenheiro agrônomo e político nipo-peruano que ocupou a presidência do Peru de 28 de julho de 1990 a 17 de novembro de 2000. Em 2005, Fujimori mudou-se para o Chile na condição de exilado político, onde vivia desde então. Em setembro de 2007, a justiça chilena atendeu pedido de extradição do ex-presidente feito pelo Peru, para ser levado a julgamento por corrupção, enriquecimento ilícito, evasão de divisas e genocídio, pela morte de 25 peruanos durante manifestação contra seu governo.
(Por Patricia Fachin)
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"A Lei de Anistia é uma autoanistia". Entrevista especial com Jair Krischke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU