"É possível compreender o caminho de Jesus, que nós também caminhamos no ano litúrgico, como um trilhar no gerúndio, assumindo aquele gesto de ir fazendo o que se espera que no futuro seja. É a nova ideia de vigilância, oposta totalmente a de uma passividade arrogante de achar que logo tudo se resolve sem que coloquemos nossas mãos nas massas, elas que gritam e sentem as dores do hoje", escreve Ismael Oliveira, leigo, graduando em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e Francisco Leiva Neves Carvalho, presbítero da Diocese de Iguatu, Vigário na paróquia São Francisco, na área pastoral Trussu.
Assim como no ciclo da Páscoa, há um tempo de preparação para o Natal, o Advento. Importante essa relação com a Páscoa, que é centro gravitacional da fé cristã e do ano litúrgico. O texto de Lucas possui um paralelismo com os textos pascais: anjos, anúncio, gruta, envolto em panos. O Natal não é lido em si mesmo, sua importância e teologia está na Páscoa. Sem Páscoa não há vitória sobre o mal e as trevas. A vida não vencerá. Mas também não há Páscoa sem carne, sem encarnação, sem tocar a fragilidade da criação até a morte. É no Natal, a entrada de Deus na história humana, que a encarnação da Palavra Criadora assume em si a criação. É o ápice da Criação. Agora sim, a criação foi completada e cristificada.
No processo histórico, o Advento formou-se progressivamente ao longo de dois séculos, IV a VI. No fim do século IV e no decorrer do V, na Gália e na Espanha. Somente no século VI esta preparação chega a Roma. Lentamente os aspectos ascéticos vão sendo absorvidos pela celebração litúrgica. O termo Adventus tem origem pagã e civil, designava a vinda, a visita de uma divindade, de um deus, do soberano, do rei, do imperador aos seus domínios. Os cristãos aplicaram este termo para designar a vinda de Cristo na carne e na glória final. Na perspectiva da vinda, perguntamo-nos: Que Rei? Que Senhor? Que divindade esperamos? Vamos visitar o Salmo 72 (71) para visualizar o Adventus Domini.
No salmo, o desejo do orante, a súplica do fiel a Deus por um “rei que vem” ou que é coroado. Este salmo dedicado ao Rei Salomão expressa um ideal de Rei, e era utilizado nas cerimonias reais. O salmo é dirigido a Deus, reconhecendo-o como fonte do poder real, dispõe as funções do rei, deseja que o seu reinado justo chegue a todos os povos, invoca a bênção sob seu reinado justo, que é motivo de ação de graças ao Senhor. Enfatiza o reinado abençoado por Deus, o rei que governa segundo a Aliança, realiza a justiça em todo território – montes e colinas, que a paz é uma construção da justiça – paz pela justiça – ou ainda, como expressa o Salmo 85(84): “Já se aproxima a salvação dos seus fiéis, para que a Glória habite em nossa terra. Lealdade e Fidelidade se encontram, justiça e paz se beijam. Fidelidade brota da terra, justiça assoma do céu” (Sl 85(84) 10-12). A glória de Deus é a fidelidade, a justiça e a paz. Construções coletivas que proporcionam um desenvolvimento humano em todas as suas potencialidades: sociais, individuais, espirituais e materiais. Justiça e paz não são conceitos abstratos, mas passam por ações de defesa da vida, como, ainda no salmo 72: “Que montes e colinas tragam ao povo paz pela justiça. Que defenda a gente oprimida, salve as famílias pobres, esmague o opressor”. Não só salvar as famílias pobres, que já seria de grande valia, mas também ir à raiz da opressão aos pobres, combatendo o opressor, aquele que sabota a justiça e paz e bebe “o sangue”, a vida dos pobres.
O salmista suplica ao Deus da Aliança que este “Rei que vem” possa reinar quanto dure o tempo, e este reino de justiça e paz não se restrinja ao seu povo, mas a todos os povos; que a opressão cesse em toda parte e que aos pobres e aos miseráveis faça-se a justiça. Por este reinado deve-se rezar e fazer ação de graças, pois diz o Sl 72(71): “Que dure em companhia do sol diante da lua, de idade em idade. Que domine de mar a mar, do Grande Rio até aos confins da terra. Que viva que lhe deem o ouro de Sabá, que rezem por ele continuamente e todo dia o bendigam” (Sl 72(71) 5.8.15). Este “Rei que vem” receba os tributos das nações (cf. Sl 72(71), 10-11), mas de forma muito destoante, não por ser um rei poderoso, não por seu poderio bélico ou por suas riquezas nem por suas conquistas. Talvez aqui se encontra a mais clara referência ao Rei Messias esperado, porque ele receberá livremente os tributos das nações e sua submissão, por causa de sua justiça e solidariedade com os pobres e desvalidos: “Porque ele liberta o indigente que clama e o pobre que não tem protetor. Ele tem compaixão do fraco e do indigente, e salva a vida dos indigentes. Ele os redime da astúcia e da violência, porque o sangue deles é precioso aos seus olhos” (Sl 72(71), 12-14).
Este “Rei Messias que vem”, em resposta à súplica do povo ao Deus da Aliança, faz eco ao texto do Êxodo: “Eu vi a humilhação de meu povo no Egito e ouvi seu clamor por causa da dureza dos feitores. Sim, eu conheço seu sofrimento. Desci para livrá-los das mãos dos egípcios e fazê-los sair desta terra para uma terra boa e espaçosa” (Ex 3,7). Um novo Moisés que conduz o povo para libertação de seus opressores e para uma terra para todo povo; o julgamento e a justiça são confiados a um filho de rei (Sl 72 1), um novo Davi, que governe com justiça e fidelidade a Aliança.
Após expor a expectativa deste “Rei que vem” instaurar Justiça e Paz universais, o salmista irrompe em bendição e louvor ao Deus da Aliança que tem compaixão do povo oprimido e vem libertá-lo do opressor e reconhecer a dignidade dos pobres e desvalidos: “Que seu nome seja eterno, diante do sol brote o seu nome. Que todos os povos o felicitem e o invoquem como bênção. Bendito o Senhor Deus de Israel, único que faz maravilhas! Bendito para sempre o seu nome glorioso que sua glória encha a terra! Amém! Amém!” (Sl 72(71) 17-19).
Revestidos e revestidas por uma lógica de novidade, não se pode negligenciar os sinais que são esperados de todos e todas nós. Quando nos colocamos prontamente disponíveis diante de uma espera tão afável e terna, também nos provocamos de que espera estamos falando ou, simplesmente, que novidade esperamos. O Advento, o tempo da espera em esperança que nos acalenta para celebrar a festa do “Rei que vem chegando”, que nos empurra para a construção e a reconstrução de um novo mundo, nos educa a um olhar novo. Imaginemos a força vigilante daqueles e daquelas que esperaram, como nós, a concretude do reino. Eles e elas ensaiaram e nos ensinaram o gostinho de sentir que a novidade que os pobres tanto esperam escutar já está bem perto de nós.
Em Ponte dos Carvalho, Pernambuco, entre os anos de 1960 e 1980, o querido Geraldo Leite Bastos, presbítero e artesão da música, junto com a sua comunidade orante, cantavam: “Muito suspira por ti, teu povo fiel, tua Israel...” e repetiam a cada lembrança que “O Santo Messias” vem vindo logo. Por fim, com uma força divina e através de uma melodia que lembra um canto de ninar, o povo suplicava: “Apressa-te em vir libertá-la, em vir salvá-la, bendito Senhor!”. Com todas as reverências à poesia de Geraldo Leite Bastos, esta obra encontra-se no Hinário Litúrgico da CNBB, sugestão de repertório para o Advento. Aprendemos com eles e elas a esperar com mais vontade e verdade o “Rei que vem chegando”. É a lógica do “faz escuro, mas eu canto” superando a lógica da escravidão e do reino da morte. Uma peça entre as tantas heranças que nossas mães e nossos pais na fé nos guardaram. Delas e deles recebemos muita sustância poética para a oração e para a luta, incluindo, é claro, os salmos e as cantigas, hinos, súplicas e agradecimentos, todos encontrados na Sagrada Escritura, frutos da experiência do povo com Deus. O desejo perene pela chegada de uma novidade. No Natal, um menino. No fim de tudo, um reino em plenitude: “reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino de justiça, do amor e da paz” (Prefácio da solenidade de Cristo Rei).
O desejo apressado pela chegada do Cristo, em nós e no mundo, é a base da nossa atitude espiritual no Advento. Ainda que muito difícil ter forças de esperanças em um Brasil marcado pelas dores da intolerância, do ódio gratuito e do flerte à ordem de opressão, corre em nosso corpo, em nossa mente e em nosso coração um sonho que é regado pela singeleza das gotas do orvalho, como cantamos: “Das alturas orvalhem os céus e as nuvens que chovam justiça, que a terra se abra ao amor e germine o Deus Salvador” (Versão e música: Reginaldo Veloso, refrão do salmo 84, ODC), e assim acaba sendo um imperativo para as nossas liturgias e orações, um pano de fundo que dá voz e clarão a esse desejo tão iminente: o de superar a dor e viver a libertação que vem de nosso Deus.
É possível compreender o caminho de Jesus, que nós também caminhamos no ano litúrgico, como um trilhar no gerúndio, assumindo aquele gesto de ir fazendo o que se espera que no futuro seja. É a nova ideia de vigilância, oposta totalmente a de uma passividade arrogante de achar que logo tudo se resolve sem que coloquemos nossas mãos nas massas, elas que gritam e sentem as dores do hoje. Para elas, é tão difícil esperar quanto viver. E assim, nossas ações acabam sendo questionadas: esse é o modo que a comunidade de Jesus prepara sua chegada? O tempo da vinda de Jesus em nossa carne faz de nós uma comunidade que exala odores combinados e distintos. Ora nos movemos pela chegada d'Ele nas nossas fragilidades, em nossas condições; ora nos colocamos de pé, na entrada da porta, com luzeiros acesos, prontos e prontas para sair na construção do aqui, do agora e do já. Esse movimento que acontece dentro de nós, e que envaidece toda nossa comunidade de seguidores e seguidoras com um espírito mais vigilante que corretor, colabora com o nosso fazer no mundo, tornando todos e todas consistentes da participação ativa na concretude do que suplicamos no Advento.
Cabe a nós, amigos e amigas, um pedido. Que seja vindoura a profecia do Senhor que em Isaías nos disse: “Céus, gotejem lá de cima, e as nuvens chovam a justiça. Que a terra se abra e produza a salvação, e junto com ela brote a justiça” (Is 45,8). O desejo pela vinda do Cristo, o Deus-com-a-gente, o Emanuel esperado, implora e pede que se complete a salvação.