12 Dezembro 2022
A Maria que conhecemos a partir da catequese, da pregação, das devoções populares e espirituais, dos livros de exaltação, da arte... tem pouco a ver com a bíblica. Maria faz parte da Bíblia, mas a tradição a separou dela, descontextualizando-a.
A reflexão é da teóloga e psicóloga espanhola Mercedes Navarro Puerto, professora da Universidade Pontifícia de Salamanca e cofundadora da Associação das Teólogas Espanholas. O artigo foi publicado no caderno Donne Chiesa Mondo do jornal L’Osservatore Romano, de dezembro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há nem nunca houve um único rosto de Maria. Desde as primeiras tradições que conhecemos, sua figura é poliédrica, múltipla e rica. Uma pluralidade já presente nos quatro relatos evangélicos e que depois, muito em breve, sofreu novas diversificações a partir de outros pontos de vista.
Apenas alguns traços dela permanecem definidos até hoje. Quanto ao resto, sua figura sofreu um processo de amplificação e de diversificação. É grande a distância entre o início da história de Maria de Nazaré e toda a história posterior.
Limito-me aqui a considerar apenas a dimensão bíblica da diversidade e da pluralidade de rostos dessa figura, porque é o que confere uma intensidade interessante e muitas vezes desconhecida a um personagem evangélico que, à primeira vista, parece sóbrio e de poucas palavras em relação aos demais. É um daqueles casos em que não é a quantidade de citações que faz a profundidade do personagem narrativo, pois sua caracterização depende de outros parâmetros, como o lugar que ocupa no relato, as relações com outros personagens, sua função e a especificidade de cada autor evangélico e de seu contexto.
Assim, concentro minha atenção nos evangelhos, fazendo apenas uma rápida referência a outros textos do Novo Testamento. Recuperar a Maria de Nazaré bíblica a partir das narrativas evangélicas significa para mim removê-la do patriarcado, ou seja, de 2.000 anos de interpretações que se distanciaram das fontes bíblicas, obstruindo-as, assim, também às pessoas e, de maneira totalmente particular, às mulheres.
Marcos conecta a importância de Maria com a crise da família patriarcal judaica provocada por Jesus. Lemos em Mc 3,21.31-35:
“Quando souberam disso, os parentes de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus tinha ficado louco. (...) Nisso chegaram a mãe e os irmãos de Jesus; ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo: havia uma multidão sentada ao redor de Jesus. Então lhe disseram: ‘Olha, tua mãe e teus irmãos estão aí fora e te procuram’. Jesus perguntou: ‘Quem é minha mãe e meus irmãos?’. Então Jesus olhou para as pessoas que estavam sentadas ao seu redor e disse: ‘Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’” (trad. Bíblia Pastoral).
Em apenas cinco versículos, o narrador condensa o processo evolutivo do personagem que parte de uma posição óbvia, patriarcal e obrigatória em relação ao filho considerado louco e chega a uma posição que é fruto de uma escolha livre, revolucionária em relação a um grande pilar da sociedade e da religião israelitas.
A partir dessa crise, Maria progride até passar a fazer parte, não sabemos se constantemente ou apenas esporadicamente, do grupo das mulheres que seguem Jesus e aderem a seu projeto. Partindo de uma forma de entender a tradição religiosa judaica, a implementação do projeto divino se coloca como alternativa à família israelita e às suas implicações.
O breve relato de Mc 6,1-6 (“Esse homem não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco?”) e os dois momentos pascais da presença das mulheres na crucificação (15,40-41) e no sepulcro vazio (16,1-8) confirmam a hipótese dessa evolução.
Mateus apresenta Maria de um modo diferente. Ele utiliza gêneros literários, símbolos e elementos míticos nos relatos da infância de Jesus: o infanticídio e a perseguição do rei Herodes obrigam a mãe a fugir com o menino e o pai. Destaca-se a imagem da díade mítica divina da mãe com o menino (seu filho). Porém, o que dá maior intensidade ao personagem é seu histórico bíblico, que começa na genealogia, em que Maria é a última da significativa lista de quatro mulheres “irregulares” – que criam uma diversidade na própria continuidade – e continua no midrash [método de exegese bíblica seguido pela tradição judaica dos relatos da infância].
Se não for levada em conta a Bíblia hebraica, tal intensidade não é percebida. Além disso, é preciso ver a Maria de Mateus em estreita relação com o José de Mateus, pois o modo como José é apresentado modifica e ilumina Maria naquele contexto social e histórico. Sem essa relação, não se compreende o fato de que, no Evangelho de Mateus, Maria é menos patriarcal do que parece, e isso também vale para José.
Lucas usa o gênero literário da anunciação do nascimento do herói à futura mãe (2,26-38), que se baseia nos mitos greco-latinos e remete a vários textos da Bíblia hebraica.
Lucas propõe Maria como uma mulher jovem, consciente, inteligente e independente, e a liberta do suposto destino inapelável da maternidade das mulheres. Para muitos, passa despercebido o momento em que Maria, que não entende o que o anjo lhe diz, lhe faz perguntas para obter esclarecimentos, e também aquele em que ela aceita sem consultar o noivo prometido, fato que rompe com a tradição da relação homem-mulher.
Lucas é o narrador mais patriarcal e, apesar do perfil narrativo luminoso com que apresenta Maria na anunciação, na visitação a Isabel e no texto sobre o primado da escuta da Palavra sobre a dignidade materna (11,27-28), é também aquele que busca recolocar as mulheres no lugar pré-determinado a elas pelo patriarcado.
O autor do quarto Evangelho confere à figura de Maria um lugar estrutural em sua obra com base em sólidos fundamentos bíblicos. Ele a apresenta ao inaugurar a vida pública de Jesus (Jo 2,1-8), sob o símbolo da nova humanidade, sobre a base evocativa de uma Eva fundamental no nascimento do humano, porta da vida, livre porque pode escolher e portadora de novidade.
Maria é mulher para Jesus e mãe de Jesus. A relação entre essas duas formas de mencioná-la (nunca com seu nome) condensa símbolos, mitos e significados teológicos inovadores no Evangelho. A Maria de João não pode ser compreendida sem uma leitura libertadora do que ocorre nas bodas de Caná: “Enquanto isso, faltou vinho, e a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho!’” (Jo 2,3).
O evangelista volta a mostrá-la no fim da vida de Jesus (19,25-27), abrindo e fechando seu ciclo vital e histórico. É novamente porta de nova humanidade e de uma história comunitária inovadora.
Há outros escritos do Novo Testamento que evocam Maria. O mais próximo dos relatos evangélicos é o dos Atos dos Apóstolos (At 1,14) que a nomeia no contexto do Pentecostes, à frente da família de Jesus em um quadro de luto e de conflito pela liderança de sua herança.
Lucas não lhe dá a palavra, mas um lugar muito significativo. Infelizmente, sua menção foi entendida como uma exceção: ela sozinha entre homens. Em vez disso, o texto inclui homens e mulheres, seguidores, familiares...
A Maria que conhecemos a partir da catequese, da pregação, das devoções populares e espirituais, dos livros de exaltação, da arte... tem pouco a ver com a bíblica. Maria faz parte da Bíblia, mas a tradição a separou dela, descontextualizando-a.
O Concílio Vaticano II tentou desmistificá-la e devolvê-la às fontes, para reinterpretá-la, mas sua figura sofreu um processo simplista. Tiraram-lhe as joias e a coroa, fizeram-na descer das nuvens, transformando-a em uma camponesa judia, quase sem significado evangélico e teológico, com pouca capacidade de animar e conferir poder às mulheres e a toda a humanidade com o projeto de Jesus.
Sua força libertadora foi reduzida ao Magnificat, e hoje Maria continua sendo uma figura escassamente bíblica. Ela recuperou de longe seu lugar no patriarcado.
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Os múltiplos rostos bíblicos de Maria. Artigo de Mercedes Navarro Puerto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU